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Prezadas leitoras, caros leitores —

Não estamos conversando sobre Israel e Palestina. Nos dividimos em grupos, cada um do seu lado xingando o outro. Usamos palavras fortes, tratamos o lado do qual não gostamos como a pior gente que existe. Às vezes, os debates fazem parecer que este conflito nasceu no 7 de outubro de 2023. Ou em 1967. Ou, mesmo, em 1948. É muito mais antigo do que isso.

Pedro Doria esteve por dez dias, em Israel, em fevereiro deste ano. Conversou com políticos árabes e judeus, com ativistas representando ambos os lados, com gente nas ruas. Foi do Norte ao Sul do país. Ao voltar pro Brasil, mergulhou na pesquisa. E o resultado deste trabalho ficou pronto agora: no próximo dia 10 de julho estreiam no streaming do Meio três episódios especiais do Ponto de Partida, a série. Estão lá a história e a política. Está lá a profunda ligação àquela terra de ambos os povos.

No conjunto, concebemos estes três filmes não apenas como um clamor pela paz mas, principalmente, como um argumento. Uma defesa da solução de dois estados, um para cada povo. Não há solução justa que não essa.

Você quer entender o que acontece naquele canto do mundo, numa versão sem heróis ou vilões? Assinantes do Meio Premium poderão assistir aos três episódios num estirão só, todos publicados no dia 10. Baixe nosso app. No dia 10, na sua televisão, no seu celular, tablet ou computador.

Os Editores.

Edição de sábado: Três mil anos de Irã

Há 46 anos o Irã invadiu os assuntos do cotidiano, quando a Revolução Islâmica de 1979 substituiu a brutal monarquia pró-americana do xá Mohammad Reza Pahlavi (1919-1980) pela brutal teocracia antiamericana do aiatolá Ruhollah Khomeini (1902-1989). O impacto dessa mudança atingiu em todo o mundo a geopolítica, a economia e até a cultura popular. Xiita, corrente muçulmana do novo regime, virou sinônimo de radical, e até a MPB entrou na onda — “tem sempre um aiatolá pra atolar”, escreveu Rita Lee e cantou Elis Regina.

Apesar dessa exposição, até hoje nem todos têm uma ideia da real importância do Irã, especialmente porque, cá no Ocidente, o país era, até a primeira metade do século 20, conhecido pelo tradicionalíssimo nome Pérsia. Se muito da cultura mudou, ainda é a mesma terra e o mesmo povo que produziu um dos maiores e mais duradouros impérios da Antiguidade, cuja cultura influenciou profundamente as duas maiores religiões do mundo e, paradoxalmente, implementou um ambiente de liberdade religiosa invejável até mesmo para padrões modernos.

Arianos de verdade

O Irã é, de certa forma, anterior aos iranianos. Susa, que viria a ser uma das capitais de seu império, foi construída por volta de 4400 a.C., apenas um século depois de Uruk, na Mesopotâmia. Era, porém, um outro povo, os autóctones elamitas, que chegaram a estabelecer um império. Segundo registros dos vizinhos assírios, no início do segundo milênio a.C. tribos vindas das estepes ao norte começaram a migrar para o Planalto Iraniano. Eram os arianos, não o delírio racista criado por europeus, mas, como explica o livro póstumo Aryans, do historiador britânico Charles Allen, um povo que também ocupou o Norte da Índia.

Pouco a pouco, os arianos foram expulsando os elamitas ou se misturando a eles até ocuparem todo o planalto, ao qual chamaram de ary?n?m, terra dos arianos, de onde vem Aiyran, ou simplesmente, Irã. Ao longo dos séculos seguintes, essas tribos se consolidaram em pequenos reinos, especialmente como resistência ao poderoso Império Assírio, que dominou a região entre os séculos 10 e 7 a.C. O primeiro deles a se destacar foi a Média, cujo rei Ciaxares, aliado ao babilônio Nabopolassar, derrotou os assírios em 612 a.C. e estabeleceu o próprio império. Mas havia uma outra potência prestes a emergir do planalto e mudar o mundo.

O conquistador tolerante

Na região de Persis, outra confederação de tribos arianas se condensou em um reino sob a dinastia Aquemênida, da cidade de Pasárgada, ainda vassalo da Média. Seu terceiro sha (xá, rei), Ciro II, iniciou uma revolta que durou de 553 a 500 a.C. e culminou com a derrota dos medos e sua incorporação ao agora Império Aquemênida, ou, como ficou conhecido na História, o Império Persa.

Ciro, justamente chamado “o Grande”, tomou gosto pela coisa e enfileirou conquistas: Frígia (hoje Anatólia, na Turquia), Lídia (Oeste da Turquia), Elam, virtualmente todas as tribos arianas em regiões hoje equivales ao Afeganistão e, finalmente, em 540 a.C., Babilônia, tornando-se o shahansha, rei dos reis. Estendendo-se do Mar Negro e do Levante aos limites do Vale do Indo, era o maior império já visto, embora fosse crescer mais, e um dos mais estáveis, em parte pela postura de Ciro, um conquistador de postura tolerante.

A filosofia do Império Aquemênida era basicamente: se os povos nos prestam vassalagem sem se rebelar e pagam tributos, pouco importa que deuses adorem ou que língua falem. Ao tomar Babilônia, libertou os judeus ali cativos, financiou a reconstrução de Jerusalém e lhes permitiu restabelecer seu próprio reino, vassalo do império. O que é particularmente notável se pensarmos que a Pérsia foi o berço da primeira religião monoteísta prosélita bem-sucedida, o zoroastrismo.

O monoteísmo como o conhecemos hoje

A primeira experiência monoteísta da qual se tem registro aconteceu no Egito, no século 14 a.C., quando o faraó Aquenáton buscou substituir a religião politeísta local pela adoração a um único deus, Áton. Mas após sua morte em 1334 a.C., o antigo culto foi restaurado, não deixando vestígios da reforma monoteísta. No Planalto Iraniano, a história foi diferente.

Não há um consenso sobre o período em que viveu Zaratustra Espítama, chamado pelos gregos de Zoroastro. Análises linguísticas dos textos que lhe são atribuídos apontam para algo entre 1500 e 1000 a.C., embora outras fontes o apontem como contemporâneo de Ciro, o Grande, o que é pouco provável, pois sua religião já estava consolidada e oficializada ali.

Zoroastro se proclamava profeta de Aúra-masda, o Sábio Senhor, deus único, criador do Universo e da Humanidade, em constante conflito com seu gêmeo maléfico, Arimã. Dizia que os homens tinham livre arbítrio para escolher qual dos dois seguir, mas que havia uma consequência para suas almas imortais: o paraíso ou o inferno. Os conceitos de Messias e Juízo Final também vêm de Zoroastro. Tudo isso foi incorporado com algumas diferenças ao judaísmo e, principalmente, ao cristianismo e ao islã — que viria a suplantar o zoroastrismo, aliás. A ideia cristã e islâmica de Satã, por exemplo, remete a Arimã, não ao “adversário” mencionado no Velho Testamento.

Embora defendesse que seu deus era único e deveria ser aceito por todos os povos, o zoroastrismo não foi imposto pelos Aquemênidas. Mas a tolerância não era o único segredo do império. Ciro era um administrador brilhante e dividiu seus domínios em satrapias (províncias) com governadores leais, tropas profissionais e estradas bem conservadas, que lhe permitiram mobilizar rapidamente suas forças.

Ainda maior

Ciro morreu em combate contra os citas, uma tribo nômade do Oeste do Irã, em 530 a.C., mas sua morte não comprometeu a grandeza do império, pelo contrário. Seu herdeiro, Cambises II, anexou o Egito em 522 a.C., mas morreu durante essa campanha. Sua sucessão foi confusa, com o irmão e herdeiro Bardia sendo acusado se um impostor da casta sacerdotal. Ao final, Dario I, vagamente aparentado com a casa real, assumiu o trono e levou o império a seu zênite, recebendo também o título de “o Grande”.

Sob Dario, os persas conquistaram o Vale do Indo, a Trácia e boa parte das ilhas do Mar Egeu, enquanto a Macedônia se submeteu como um estado vassalo. Mas ele não conseguiu subjugar as principais cidades estado gregas, em particular Atenas, derrotado na Batalha de Maratona em 490 a.C. O rei morreu quatro anos depois, e coube a seu herdeiro, Xerxes I, derrotar os atenienses e arrasar a cidade, embora ao final da campanha tenha sido repelido e perdido o controle sobre a Macedônia e a Trácia.

O assassinato de Xerxes em 465 a.C. e ascensão de seu filho Artaxerxes marcaram o início de um período de estabilidade, fora uma ou outra revolta local, do império, até a chegada, em 331 a.C., do macedônio Alexandre, o Grande, que derrotou Dario III em três batalhas anexando e pondo fim ao Império Aquemênida.

A Pérsia macedônia

A alegria de Alexandre durou pouco. Uma febre o matou em 323 a.C., e após o assassinato de seu único filho, em 309 a.C., seu império foi dividido entre os generais macedônios, cabendo a Seleuco I Nicátor o Irã, a Mesopotâmia e a Síria. O Império Selêucida era fundamentalmente grego na cultura e no idioma e viveu às turras com o Egito, governado pela dinastia de Ptolomeu, outro general de Alexandre. No século 2 a.C., o imperador Antíoco III tentou conquistar a Grécia, mas foi repelido com a ajuda de uma nova potência, Roma.

O domínio selêucida sobre a Pérsia começou a ruir um pouco antes. Em 247 a.C., Ársaces I, líder dos parnos, outra tribo ariana, conquistou a satrapia da Partia. Nascia o Império Parta, expandido no século seguinte pela conquista por Mitrídates I da Mesopotâmia e da Média. Ao tentar anexar a Armênia, o Império Parta entrou em conflito com a República de Roma, numa sucessão de guerras que duraria séculos e avançaria para o império seguinte.

Conquista e conversão

Em 224 d.C., com o império Parta desarticulado pelas constantes guerras, tribos persas se rebelaram sob o comando do sassânida Artaxerxes I, fundador do império de levaria o nome de seu clã e retomaria para a Pérsia o posto de grande potência mundial. Seu filho, Sapor I, além de expandir o império, foi a Nêmesis de Roma. Durante seu reinado, em 260, o imperador Valeriano foi capturado e mantido prisioneiro até a morte. Um século depois, o imperador Juliano morreu em campanha na Pérsia (uma região hoje no Iraque) contra Sapor II. No reinado deste, a relação tensa entre os impérios persa e romano ganhou outro elemento. Constantino I tornou o cristianismo a religião oficial de Roma, em detrimento das demais crenças (embora não as banisse), o que levou Sapor II a perseguir os cristão em seu império.

A guerra entre as duas potências — com o Império Romano do Oriente ou Bizantino assumindo o confronto — só terminou no século 7, com outro evento que mudaria os rumos da História. Em 632, após a morte de Maomé, os árabes muçulmanos iniciaram uma onda que conquistas que se estenderia por três continentes. No ano seguinte, aproveitando o enfraquecimento do Império Sassânida por uma guerra civil, o futuro califa Omar invadiu o Irã, conquistado com a morte do rei Isdigerdes III.

Mais que a perda da autonomia política para uma força estrangeira, a conquista implicou uma mudança cultural profunda, com o islã suplantando quase totalmente o zoroastrismo e os persas adotando o alfabeto árabe — os conquistadores tentaram impor também seu idioma, mas não foram bem-sucedidos. O domínio dos califados, primeiro o omíada, depois o abássida, foi longo. No último, porém, a elite iraniana começou a exercer cargos cada vez mais importantes na corte da capital Bagdá, enquanto pequenos reis controlavam de quando em quando pedaços do Irã.

Ao longo dos séculos 9 e 10, iranianos e alguns turcos e berberes, iniciaram um resgate de cultura persa, dentro de um contexto muçulmano. Como escreveu o historiador anglo-americano Bernard Lewis no artigo Iran in History, “os persas permaneceram persas, e, após um intervalo de silêncio, o Irã reemergiu como um elemento distinto no islã”.

Diversas pequenas dinastias, vassalas ou não dos abássidas, sucederam-se até que, em 1219, o Irã foi invadido pelos mongóis de Gengis Kahn. Foi uma guerra de conquista tanto quando de destruição, com massacre da população e incêndios de cidades, em particular bibliotecas e instalações de infraestrutura. Mesmo com a dissolução do império de Gengis Kahn, os mongóis dominaram o Irã, assimilando aos poucos a cultura persa, até 1370, quando o general turco-mongol Tamerlão conquistou o país, fundando o Império Timúrida.

A virada religiosa

Os iranianos só retomaram o controle de seu país em 1501, quando, após uma série de conquistas militares, Ismael I se declarou xá e fundou o Império Safávida. Em seu auge, englobou, além do Irã, Azerbaijão, Kwait, Afeganistão, Iraque e partes da Geórgia e da Turquia, entre outras regiões. Mas a grande mudança trazida pela nova dinastia foi religiosa.

Até então, 90% dos iranianos eram muçulmanos sunitas, embora os xiitas tivessem uma presença cultural forte. A queda do Califado Abássida, sunita, e a destruição causada pelo mongóis fizeram com que partes das tribos paulatinamente se convertessem ao xiitismo. Ao assumir o trono, Ismael I decretou que o islã xiita seria a religião oficial do Irã, situação que prevalece até hoje. O fato de esta corrente então pregar a separação entre o clero e o poder temporal era um atrativo a mais para o governante.

Fora das mesquitas, os safávidas também foram ativos. Enfrentaram o Império Otomano e expulsaram, com a ajuda da Inglaterra, os portugueses de suas possessões no Golfo Pérsico, além de estabelecerem fortes laços diplomáticos e comerciais com a Europa. Mas, a partir da segunda metade do século 17, governantes incompetentes, crises e revoltas levaram à decadência do império, com grandes perdas de território para os russos e os otomanos.

Caos e reconstrução

Entre 1724 e 1736, o país viveu o caos, até que o general Nader expulsou invasores e, após um breve período de restauração safávida, se proclamou xá. Sob seu comando, o Irã atacou o Império Mogol (não confundir com Mongol) na Índia, arrasando Déli e saqueando suas riquezas. Revoltas internas, porém, se sucediam, até Nader ser assassinado em 1747, dando início a um novo período de anarquia, perdas territoriais e guerras civis que duraria até 1796, com o início da longa dinastia Qajar.

Maomé Qajar reunificou o país e buscou retomar os territórios do Cáucaso, vistos como fundamentais na defesa contra a Rússia e o Império Otomano. Antes de ser coroado xá, reconquistou a Georgia, levando mais de 15 mil prisioneiros. No início do século 19, porém, duas guerras com a Rússia levaram à perda definitiva da Geórgia, do Azerbaijão, da Armênia e do Daguestão, provocando uma ampla migração de muçulmanos dessas regiões para o Irã.

Nasser Qajar, quarto xá da dinastia, procurou modernizar o país, mas se viu forçado a fazer uma série de concessões comerciais e territoriais à Rússia e ao Império Britânico, potências mais fortes. A morte de dois milhões de pessoas na “Fome Persa” entre 1870 e 1871 abalou de vez a confiança nos Qajar, que tentaram se manter no poder transformando o país em uma monarquia constitucional limitada e convocando um Parlamento em 1906. Mas a própria independência do país era relativa, com russos e britânicos estabelecendo “áreas de influência” e ocupando de fato partes do território desde 1904.

Riqueza embaixo da terra

O golpe de morte na dinastia começou 1908, quando os ingleses descobriram petróleo na província do Cuzistão, no Sudoeste do Irã, então sob controle britânico, o que acentuou o interesse das grandes potências pelo país. Com a Revolução Bolchevique em 1917, os russos saíram da equação, e os ingleses tentaram, sem sucesso, estabelecer um protetorado sobre o Irã, como fizeram com grande parte do Oriente Médio.

Em 1921, um oficial chamado Reza Kahn liderou um golpe militar que, embora mantivesse formalmente o xá no trono, privava-o do poder. Quatro anos depois, Reza depôs o último Qajar e se fez coroar xá Reza Pahlavi, instituindo um regime ditatorial que, por um lado, modernizou de fato o país, mas, por outro, promoveu uma repressão brutal e uma secularização forçada da sociedade. Entre outras mudanças, Reza solicitou que o nome Pérsia deixasse de ser usado oficialmente pelas outras nações, com Irã sendo o termo adotado. Ele manteria o poder até sua morte, em 1941, quando novos fatores externos pesaram sobre o país.

Um jovem xá e (mais) um golpe

A mudança de poder, coincidindo com uma guerra mundial, trouxe de volta ao Irã os mesmos ares de revolução que colocaram fim à dinastia Qajar. Da mesma forma que no início do século, o centro da discussão estava na indústria petrolífera do país, ainda sob o domínio da Grã-Bretanha — em larga escala — e da Rússia — em menor escala. Os dois países haviam invadido o Irã em 1941 e o ocuparam até o fim da Segunda Guerra Mundial.

O filho de Reza Pahlavi, o jovem e inexperiente Mohammad Reza Pahlavi, assumiu o poder enfraquecido, precisando ceder apoio ao Parlamento após a morte do pai nos meses subsequentes à invasão. Entre os deputados que emergem após a saída de britânicos e russos do país, um ganha destaque e fama popular como um líder incorruptível, dedicado a lutar não só pelos nobres e aristocratas, mas principalmente pelo bem-estar do povo.

Mohammad Mossadeq assumiu o poder em maio de 1951 com forte viés nacionalista, e promessas ousadas e polêmicas. Sua principal bandeira era a nacionalização da indústria petrolífera iraniana, havia décadas sob o domínio britânico. Mossadeq também defendia valores liberais pouco comuns à história iraniana, como conceder o direito a voto a analfabetos, excluir o domínio político e econômico das grandes potências no país e a construção de uma monarquia estritamente constitucional, como nos moldes ingleses. Nesse processo, ele retirou quase todo o poder político e militar do xá e promoveu, como prometera, a estatização da companhia de petróleo Anglo-Iraniana (AIOC, na sigla em inglês).

O choque nacionalista teve sucesso internamente, mas trouxe muita insatisfação externa. Os britânicos dependiam do petróleo iraniano de forma profunda — 85% da demanda de combustível para a marinha inglesa vinha do Irã, e cerca de 75% dos lucros da AIOC iam diretamente para os cofres britânicos. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos passaram a temer que o Irã se tornasse um importante exportador de petróleo para a União Soviética, que já havia construído um gasoduto. Em 1953, sob o pretexto de que Mossadeq estava se transformando em um Hitler comunista do Oriente Médio, a CIA e o MI6 inglês organizaram um golpe de Estado e o depuseram. O sonho iraniano de ter soberania sobre seus recursos naturais só ressurgiria 25 anos depois.

Apoiado pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, Reza Pahlavi voltou ao controle do país disposto a não dividir mais o poder com o Parlamento ou com qualquer segmento da sociedade. Iniciou reformas estruturais que ampliaram ainda mais o controle do Estado sobre a vida dos cidadãos, estivessem eles em Teerã ou nos mais remotos vilarejos do Baluchistão.

Com o choque do petróleo no início dos anos 1970, passou a imaginar o Irã novamente como o centro de uma nova civilização. Construiu ferrovias cortando o país, pavimentou dezenas de milhares de quilômetros, abriu escolas, universidades e deu início ao programa nuclear iraniano. Reza Pahlavi prometeu investir US$ 33 bilhões em pesquisas atômicas para construir ao menos 20 reatores nucleares até 1994. Nos círculos diplomáticos ocidentais, o xá era visto como megalomaníaco e repleto de ilusões de grandeza napoleônicas.

Se Luís XIV dizia ser o Estado, Reza Pahlavi passou a acreditar que era o sol. Em um dos maiores monumentos construídos por ele em Teerã, a Torre Shayad, lia-se literalmente: “Lembre-se do Xá Arya Mehr (luz dos arianos)”, em uma clara referência ao passado zoroastrista do Irã pré-islâmico. Com a concentração de poder, vieram as tensões sociais. Mesmo com a abundância de recursos advindos do petróleo, o Irã se tornou um país ainda mais desigual sob o comando de Reza Pahlavi. Houve mais concentração de renda, alienação de setores tradicionais da sociedade nas tomadas de poder — inclusive local —, um espetacular êxodo rural causado por uma política de reforma agrária que beneficiou poucos e empurrou muitos para a miséria. Teerã, a capital da nova civilização imaginada pelo xá, se transformou em um imenso aglomerado de favelas. Sua população saiu de 1,5 milhão de habitantes em 1953 para impressionantes 5,5 milhões em 1979.

Reza Pahlavi também passou a intervir em questões culturais e religiosas entrincheiradas na sociedade iraniana. Passou a condenar o uso do véu pelas mulheres, autorizou o aborto antes de 12 semanas de gravidez, alterou as leis de divórcio, concedendo mais liberdade às mulheres.

Ações como essas ganharam apoio da classe média intelectualizada de Teerã, mas enfureceram as camadas mais populares e mais religiosas. Ao fim, Reza Pahlavi dizia que já não precisava dos clérigos para dialogar com o divino. Em entrevista a uma jornalista italiana, o xá afirmou que recebia mensagens diretamente dos profetas, como Imã Ali, e do próprio Deus.

Quando o aiatolá Ruhollah Khomeini entrou em cena, o Irã já estava em chamas. Reza Pahlavi havia perdido apoio de praticamente toda a sociedade iraniana — da intelectualidade, dos comerciantes, dos religiosos e mesmo daqueles que ainda acreditavam em uma monarquia. Para conter tanta insatisfação, Pahlavi ampliou ainda mais a política repressiva no país, aprisionando tudo e todos, inclusive os clérigos. A temida Savak, a polícia secreta criada por Pahlavi, agora controlava o que se falava, se ouvia, se pensava. Qualquer deslize: cadeia, tortura e, muitas vezes, morte.

Um aiatolá, dois discursos

Khomeini adotou dois tipos de discurso, para dois públicos. Para a população em geral, era um clérigo nacionalista, inimigo das potências ocidentais que dominavam o petróleo e das elites internas sustentadas por elas. Para os clérigos, como ele, defendia uma reinterpretação do islã xiita. Ele agora pregava, ainda que sem base factual nas escrituras sagradas do islamismo, que os líderes espirituais também deveriam ser os líderes políticos, jurídicos e econômicos de uma nação. Apesar de ser taxado simploriamente de fundamentalista, Khomeini assumiu o poder por meio de uma complexa combinação de nacionalismo, populismo político e radicalismo religioso. Por certo, ele não era a liderança sonhada por quase nenhum dos opositores da monarquia quando a revolução de 1979 eclodiu. Mas, sem alternativas viáveis, se tornou o líder inconteste após a queda do xá.

Khomeini restringiu os direitos das mulheres e adotou códigos de conduta estritos, como a exigência do uso do véu em público e a implementação de polícia de costumes religiosos. Curiosamente, foi sob o regime teocrático que o Irã viu uma ampliação importante das mulheres tanto no mercado de trabalho quanto na educação. Enquanto em 1977 a participação das mulheres nas universidades não passava de 3%, em 2015 elas representavam 67% do corpo discente na educação superior iraniana.

Principal apoiador do xá, os Estados Unidos passar a ser o Grande Inimigo. Em novembro de 1979, uma manifestação na frente da embaixada americana em Teerã terminou com o prédio invadido e diplomatas e funcionários tomados reféns. Nas semanas seguintes, alguns deles, principalmente mulheres e não-brancos, foram libertados, mas 52 pessoas foram mantidas em cativeiro até janeiro de 1981. A humilhação imposta ao governo americano foi apontada como um dos (muitos) motivos para a derrota do presidente Jimmy Carter para Ronald Reagan nas eleições de 1980.

Khomeini iniciou a teocracia autocrática iraniana sob profunda oposição da intelectualidade e dos trabalhadores urbanos, mais propensos a um regime que se aproximasse de uma república nacionalista. Consolidou seu poder com um regime tão repressivo quanto o de Reza Pahlavi e com a reação à invasão iraquiana patrocinada pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha. Por oito anos, o país lutou uma guerra existencial contra o vizinho sunita, que deixou mais de 500 mil pessoas mortas — a maior parte delas, iranianas. Khomeini utilizou o conflito para unir o país e reforçar a ideia de que ele combatia, de fato, as potências ocidentais que sempre exploraram o Irã, agora com um novo componente: Israel.

Khomeini, ao assumir o poder, rompeu relações com Israel e afirmou não reconhecer o Estado judeu, prometendo eliminá-lo para que os palestinos fossem os governantes do território. Os dois países mantiveram relações frias na década seguinte e passaram a confrontar-se de forma aberta após a Guerra do Golfo de 1991. Apesar disso, só em 2024 atacaram-se mutuamente pela primeira vez. Indiretamente, no entanto, os dois países vêm se confrontando há décadas.

O Irã, por meio de alianças regionais, como a ditadura de Bashar al-Assad na Síria, o Hezbollah no Líbano, os Houthis xiitas no Iêmen e, também, com o Hamas. Muitos dos ataques terroristas perpetrados pelo Hamas em Israel foram vistos como operações do Irã. Apesar das relações turbulentas com Israel, o Irã ainda abriga a maior comunidade judaica no Oriente Médio, com mais de 10 mil judeus persas que optaram por não deixar o país mesmo após a criação do Estado de Israel.

Nas últimas duas décadas, o Irã passa por momentos de mais abertura quando o regime se sente confortável, e mais repressão quando se vê ameaçado, como agora. No início dos anos 2000, o sucessor de Khomeini, o aiatolá Ali Hosseini Khamenei, retomou o programa nuclear iraniano. Apesar de repetir insistentemente que o país tem pretensões puramente civis, ao longo dos últimos anos passou a ampliar sua capacidade de enriquecer urânio a níveis de pureza próximos daqueles necessários para a construção de uma bomba atômica.

Brasileiros desafiam favoritismo europeu no Mundial de Clubes

Antes da partida, memes e provocações eram quase uníssonos: perder de pouco já seria uma vitória. O Botafogo, atual campeão brasileiro e da Libertadores, teria pela frente o Paris Saint Germain (PSG), atual campeão da Champions League. O título dos parisienses veio após a maior goleada da história de uma final europeia: 5 a 0 contra a organizada Inter de Milão. Na estreia da Copa do Mundo de Clubes outra goleada, 4 a 0 contra o Atlético de Madri. Mas futebol se resolve dentro de campo, já dizia o clichê.
Aos 36 minutos de um primeiro tempo equilibrado, Igor Jesus, centroavante botafoguense, é lançado, encara os zagueiros e bate firme no canto. Um a zero para o Botafogo. No segundo tempo, o time brasileiro seguiu sua disciplina tática e segurou o placar. Nas arquibancadas e entre os atletas a comemoração parecia a de um título. Além de tudo, a equipe carioca foi a primeira a não sofrer gol do PSG desde março. Pura sorte? Zebra?

Na tarde seguinte, o Flamengo enfrentou o Chelsea. Apesar de o clube inglês não viver o seu auge, a liga inglesa é considerada a mais competitiva do mundo. No começo do primeiro tempo, um erro individual do rubro-negro colocou os adversários na frente. Ainda assim, o time jogava bem. No segundo tempo, o jogo virou: o Flamengo fez 3 a 1 no Chelsea, com propriedade. Enquanto a torcida cantava sobre colocar “os ingleses na roda” (menção ao título mundial de 1981, contra o Liverpool), o clube europeu estava irreconhecível e mostrava perder a calma em muitos momentos. A vitória flamenguista garantiu não apenas a classificação, mas a primeira colocação do grupo já na segunda rodada.

Apesar de jogos menos épicos, o Palmeiras e o Fluminense também conseguiram se classificar para as oitavas de final. O time paulista passou em primeiro após empatar com o Inter Miami, de Lionel Messi. O carioca, foi o segundo de seu grupo, tendo empatado com o alemão Borussia Dortmund, mesmo jogando melhor.

Durante os êxitos brasileiros, a internet e o jornalismo esportivo se dividiram nas teorias acerca do desempenho. Se os mais empolgados bradavam contra a hegemonia europeia, construída, nesta visão, mais pelo eurocentrismo do que pela qualidade, outros menos ufanistas ponderavam que o futebol europeu se encontra no final da temporada, então há desgaste, reformulação de elencos e até suposto desinteresse da parte deles. E claro, há aqueles que se encontram no meio entre a euforia e o desânimo.

A Copa do Mundo de Clubes

Antes de avançar, um passo para trás. O torneio é inédito e é quase um consenso entre fãs do esporte. Antes, a Fifa tinha “apenas” a Copa do Mundo de Seleções como seu carro-chefe. Já há quem diga, todavia, que a Liga dos Campeões da Europa, organizada pela Uefa, ultrapassou a Copa como a competição mais importante. A Fifa precisava de uma cartada para ser mais relevante entre clubes.

Apesar de existir um mundial interclubes, o formato parece saturado, à medida que os europeus eram sempre muito favoritos, os jogos quase sempre desinteressantes, além de ser muito curto. Entrou em cena então, o mesmo formato do mundial de seleções: um torneio a cada quatro anos, com 32 equipes de todos os continentes, divididas em oito grupos. Todos do grupo se enfrentam. Os dois melhores passam de fase. A partir das oitavas de final, é mata-mata até a final.

Para Idelber Avelar, professor de estudos culturais na Universidade Tulane, em Nova Orleans, a Copa do Mundo de Clubes da Fifa tanto revitaliza competições entre clubes, quanto acentua essa disputa com a Uefa. “Esse mundial deve ser entendido como primordialmente uma tentativa da Fifa de abocanhar para si uma fatia significativa da renda gerada pelo futebol de clubes, ao qual no momento ela não tem acesso. Porque as competições que realmente geram dinheiro, no que se refere a competições de clubes, são as europeias, especialmente a Champions League e as ligas nacionais. A Champions no ano passado gerou de receita total 3,5 bilhões de euros. Só de direitos de transmissão televisiva são 2,4 bilhões de euros. Esse é um dinheiro que fica na Europa. Esse é um dinheiro da Uefa”.

Ainda sobre a relação entre Fifa e Uefa, em uma reunião do conselho da federação no Paraguai, oito membros indicados pela associação europeia abandonaram o encontro em protesto contra prioridades políticas do presidente Gianni Infantino, que teria privilegiado encontros com Donald Trump e chegado atrasado ao congresso.

Além disso, a Copa de Clubes contou com uma controvérsia quanto ao direito de transmissão. O streaming DAZN, que ainda não conseguiu se firmar como a marca global do streaming esportivo, comprou os direitos de transmissão, em uma espécie de triângulo estratégico entre a plataforma, a Fifa e a Arábia Saudita. O principal investidor da DAZN, Leonard Blavatnik, investiu US$ 1 bilhão nos direitos globais do torneio, que será transmitido gratuitamente mediante cadastro, com foco em conversão de usuários, coleta de dados e ampliação de capilaridade. Ocorre que em abril, a SURJ Sports Investment, ligada ao fundo soberano saudita, comprou uma fatia minoritária da DAZN também por US$ 1 bilhão. Em 2034, a Copa do Mundo de Seleções será na Arábia Saudita, que não teve concorrência na disputa.

Voltando ao esporte

Haverá pelo menos um time brasileiro nas quartas de final da Copa, já que Palmeiras e Botafogo se enfrentam neste sábado. Flamengo e Fluminense terão jogos difíceis contra o Bayern de Munique e a Inter de Milão, respectivamente. Depois dos feitos da primeira fase, no entanto, apesar de o favoritismo seguir com os europeus, não é loucura imaginar novas surpresas. Idelber Avelar diz que já era sabido que os clubes brasileiros entrariam em boas condições nesse torneio e que disputariam com muita motivação, já que eram 13 anos desde que um clube brasileiro havia derrotado um clube europeu em uma competição mundial.

Já Diego Ambrosini, apresentador, com Avelar, do programa Meio de Campo, com estreia prevista para julho no Meio, pondera que o desempenho dos times brasileiros, de certa forma, superou as expectativas, mas que também os times europeus foram todos colocados em uma única “caixinha”. “A partir daqui ficou mais claro o quanto a gente deveria separar os clubes europeus em pelo menos duas ou três prateleiras. Tem os chamados ‘superclubes’, do tipo PSG, Bayern de Munique, Manchester City, Real Madrid. Eu acho difícil que os times brasileiros consigam fazer frente a eles. Claro que o Botafogo ganhou do PSG, mas ali, numa situação específica, o jogo ainda pela fase de classificação, pela primeira fase, eu acho que agora que vão começar os playoffs, os times europeus realmente vão jogar com mais dedicação. Mas existem os clubes um pouco abaixo, como o Atlético de Madri, os clubes portugueses, Benfica, Porto, talvez o Borussia Dortmund”.

O aspecto da dedicação foi levado em consideração em muitas análises, como se os clubes europeus dessem menos importância à Copa que os sul-americanos. Porém, há diferentes declarações a esse respeito. Enquanto o técnico do Bayern, Vincent Kompany, elogiou as equipes das Américas e disse não estar surpreso com o bom desempenho delas, além de dizer que está com “fome de título”, o goleiro do Benfica, após vitória contra o próprio Bayern, foi perguntado sobre os sentimentos de passar em primeiro lugar no grupo, ao que respondeu. “Sinceramente, não sinto nada. Estou realmente exausto e só quero descansar e me preparar para o próximo jogo”. Mesmo fora do torneio, o atacante brasileiro Raphinha, do Barcelona, disse que os atletas não foram consultados sobre o campeonato e que seria nocivo abdicar das férias.

No entanto, se é um argumento para diminuir a vitória dos brasileiros dizer que os europeus estão em fim de temporada, o mesmo poderia ser dito do Mundial Interclubes, nos quais times sul-americanos é que estão no limite.

Fora do campo, as festas das torcidas das Américas e da Ásia também se destacam. É possível encontrar imagens de torcedores brasileiros “tomando as ruas” dos Estados Unidos, seja próximo aos locais de jogos, ou em pontos turísticos, como a Times Square, em Nova York. Além disso, segundo dados do Google Trends obtidos pelo Globo, o Flamengo foi o terceiro clube mais buscado no mundo entre 14 e 22 de junho, atrás apenas de Real Madrid e PSG. Botafogo e Palmeiras aparecem no top-10. A visibilidade internacional se refletiu ainda em buscas disparando para times menos badalados, como o semiprofissional e simpático Auckland City, da Nova Zelândia, e o Al-Ain, dos Emirados Árabes.

Futebol brasileiro no divã

O Brasil faz história na Copa do Mundo de Clubes, com os quatro times classificados para o mata-mata e é destaque no continente há anos. Desde 2019, apenas brasileiros vencem a Taça Libertadores, sendo que em 2020, 2021, 2022 e 2024 a final ocorreu entre clubes do país. A discrepância fica evidente também quando se observa que os dois times argentinos, Boca Juniors e River Plate, foram eliminados da atual competição. Até mesmo o presidente argentino, Javier Milei, reclamou do fato nas redes sociais e criticou a Associação de Futebol Argentino.

Os times brasileiros vêm também conseguindo atrair bons jogadores de outros países ou mesmo craques brasileiros repatriados. Técnicos estrangeiros, como Abel Ferreira e Jorge Jesus, se destacam no país também e a leva de treinadores gringos é apontada por muitos como uma das razões da hegemonia brasileira no continente.

Para Diego Ambrosini, no entanto, o domínio tem menos a ver com os técnicos e mais a ver com a economia. “A disparidade econômica dos clubes brasileiros e dos clubes dos outros países sul-americanos cresceu muito. Então, os clubes brasileiros têm muito mais dinheiro para montar, para contratar jogadores, montar o seu elenco. Inclusive, cada vez mais a Liga Brasileira, o Brasileirão, tem se aproximado dos campeonatos europeus. Então, tudo que envolve patrocínio, dinheiro de TV, premiação, tanto do Brasileirão quanto da Copa do Brasil, é imensamente maior do que os países vizinhos. Além disso, os clubes brasileiros também, de uma forma geral, uma parte deles pelo menos, passaram a se organizar muito nos últimos anos em termos de gestão, se profissionalizaram a sua gestão. Estou pensando aqui, principalmente, no Palmeiras e no Flamengo e também dos times que acabaram virando SAF”.

Com clubes mais fortes, hegemonia continental, grandes jogadores sendo destaques nos melhores clubes do mundo, o que falta para a seleção brasileira ser competitiva e voltar a vencer uma Copa?

“Essa é a pergunta de um milhão de dólares que mobiliza boleiros nos botecos e nos grupos de Facebook, nos vídeos de TikTok, de Instagram e nas páginas da imprensa”, pontua Avelar. “Existe a teoria da safra, que nós não temos uma boa safra de jogadores, que os jogadores de antigamente eram melhores e o Brasil já não fabrica craques como fabricava antigamente. Eu discordo radicalmente dessa interpretação. Acho que a percepção do que é um craque é muitas vezes distorcida por uma ilusão retrospectiva, ou seja, o grande craque do passado tem a seu favor a distância da idealização, que faz com que nós nos esqueçamos de todas as partidas em que ele jogou mal. A teoria da safra é desmentida também pelo fato de que desde 2006 ninguém ganha a Champions League sem ter um jogador brasileiro atuando. E a conquista recente da Argentina (na Copa de 2022) mostra que a corrupção, a desorganização e a burocratização do futebol não explicam tudo, porque a AFA, Associação de Futebol Argentino, é uma instituição ainda mais desastrada, corrupta e burocrática do que a CBF. Eu acho que uma das grandes explicações, além da questão estrutural, é que, ao contrário da Argentina, o Brasil não desenvolveu uma escola de treinadores. O Brasil foi durante muito tempo, nos anos 1950, 1960, vanguarda na produção de técnicos, na invenção de novos esquemas táticos, na pesquisa sobre o futebol. Acho que depois das conquistas de 70 e especialmente depois da conquista de 94, houve uma tendência à acomodação”.

O Meio de Campo estreia em julho no Meio. Apresentado por Idelber Avelar e Diego Ambrosini, o programa se propõe a resgatar a memória dos clubes, de jogos-chave, e o jeito em que se tem jogado o esporte ao longo dos anos.

Uma instituição brasileira, por dentro

Eros começa com uma câmera subjetiva em que uma pessoa chega a um motel e pede uma suíte. Logo você entende que essa pessoa é a diretora do filme, que começa a contar o que a atrai sobre a ideia de motel e que havia convidado outra pessoa para filmar com ela nesta instituição brasileira. Conforme o tempo vai passando, ela se despe, se filma de diferentes ângulos. E, para a frustração dela e do espectador, a companhia nunca chega. Rachel Daisy Ellis tomou um belo bolo.

Mas outras pessoas não foram tão recatadas e toparam se filmar em diferentes motéis do país para o documentário que está em cartaz nos cinemas. “Inclusive este é um filme bom de ver no cinema, com pessoas em volta, vira uma experiência aumentada”, defende a diretora inglesa radicada no Recife desde 2004. Vi o filme na telona e, de fato, é interessante dividir essas intimidades com outras pessoas. O filme é plural na escolha dos personagens. Sem dar spoiler, há casais de todo tipo e formato. Embora tenha sexo explícito, é muito menos sobre o ato sexual em si do que a respeito de mostrar diferentes maneiras de viver a sexualidade, com muitas reflexões preciosas sobre a vida, nossa estrutura social, e claro, sobre as diferentes motivações para frequentar motéis.

Eros é o primeiro longa-metragem de Rachel como diretora, mas há 15 anos ela é a produtora dos filmes de Gabriel Mascaro, e corroterista de alguns deles. O trabalho mais recente dos dois, O Último Azul, premiado no Festival de Berlim deste ano, chega aos cinemas em agosto. Mas a nossa conversa foi muito sobre como ela conseguiu chegar a esse resultado único de exposição e intimidade. Leia os principais trechos da entrevista.

Você é inglesa e veio morar no Recife em 2004. Como enxerga o motel na cultura brasileira?

Cheguei no Brasil, 2004, era jovem e não conhecia motel, porque não tem essa cultura na Europa. Eu conheci com uma pessoa que me convidou para ir e fiquei impressionada que existisse esse lugar só para transar. Logo de cara me despertou uma curiosidade muito grande sobre algumas coisas que ficaram comigo durante muitos anos, até eu decidir fazer o filme. Aquilo era uma novidade total para mim, mas todos os meus amigos brasileiros achavam que tinha motel no mundo todo. Tem até em alguns outros países. No Japão tem uma cultura muito forte. Tem bastante no México, em outros lugares da América Latina, em Portugal. Mas não é como no Brasil.

O que tem de singular por aqui?

O motel é, ao mesmo tempo, muito integrado no cotidiano, no imaginário popular e na ideia de como são conduzidas as relações sexuais, românticas. Uma camada que me interessou desde o início era essa ideia de um lugar gritante, que você vê de longe, só que esconde totalmente a identidade das pessoas lá dentro. Passei muito tempo pensando sobre essa relação entre corpo, espaço, arquitetura. Quando pensei que queria fazer um filme sobre isso, comecei a pesquisar se havia outros documentários sobre motel e fui surpreendida porque não tinha nada. O motel era representado em novelas, nas pornochanchadas, mas de uma forma muito estereotipada. Não encontrei nas artes, no cinema, algo que investigasse esse espaço.

Agora tem o seu filme e Motel Destino, do Karim Aïnouz, que é uma ficção.

Sim, mas são filmes muito diferentes.

Uma coisa interessante do Eros é que ele não fala apenas de motel. É um comentário muito forte sobre essa nossa cultura da autoexposição, que atinge níveis impensáveis com as redes mas também com essa conexão feita por apps de relacionamento, pelo WhatsApp, com a troca de nudes. Como você enxerga esse universo de se filmar e de se mostrar na intimidade?

É algo que faz muito parte da maneira que as pessoas se relacionam hoje. Não tenho nenhuma opinião formada se é bom ou ruim. É uma ferramenta que a gente tem nas mãos e pode usar entre adultos, e deveria ser restrita só a eles num jogo de sedução. Tive a ideia de que convidar as pessoas a se filmar poderia funcionar. Por que eu queria fazer um filme sobre motel, mas como fazer isso? Ir para um motel filmar as pessoas lá dentro não teria nenhuma graça. As pessoas não iriam se sentir nada à vontade. Eu tive uma experiência de produzir o Doméstica, de Gabriel Mascaro, há 15 anos, e já tinha essa experiência com a autoimagem, então foi um caminho muito natural para mim. Tive uma pequena preocupação no início, antes de ver as primeiras imagens, de vir vídeos tipo OnlyFans, XVideos, esses vídeos caseiros que têm aos milhões na internet.

O que veio nessas primeiras imagens?

Quando vi os primeiros casais que se filmaram, foi muito mágico. Não por acaso foram os casais religiosos. Entendi que tinha um filme. Era como se o convite para participar oferecesse um palco de certa maneira onde eles podiam explorar suas visões da vida e reflexões sobre suas relações e também sobre o espaço.

Como foi o processo de escolher as pessoas que iriam contribuir com imagens feitas para o filme. Teve gente que mandou imagens e que você acabou não aproveitando?

Duas situações não entraram no filme, mas foi uma questão de espaço, de edição. Todo mundo que está no filme entrou através de um processo de pesquisa. Eu e os pesquisadores falamos com muita gente porque havia um desejo de ouvir muitas histórias, para entender quem são essas pessoas, os diversos usos, as motivações e desejos que existem no motel. Fui descobrindo que muito do que a gente entende de motel — que é só para infidelidade, para sexo pago e para jovens transarem pela primeira vez — era redutor. A maioria das pessoas que usam motel são casais monogâmicos, que usam como um refúgio, um lugar para viver sua sexualidade e seus desejos de uma maneira que não conseguem no dia-a-dia. Queria fazer essa provocação.

Foi fácil fazer as pessoas se filmarem?

Muita gente não topou, mas no final você tem um conjunto de pessoas com desejo de falar algo para o mundo.

E como é que você fez para garantir a qualidade das imagens?

A única orientação que dei sobre fotografia era de filmar na horizontal. E não foi 100% aceita, tem algumas imagens na vertical, mas que não quis tirar do filme. Eu pedi para as pessoas falarem de certas coisas, a partir das pesquisas, mas eles não necessariamente seguiam isso. Sempre tinha surpresa, coisas que surgiram na filmagem que nunca tínhamos conversado. As escolhas de fotografia foi 100% deles.

Uma surpresa para mim foi como o sexo e religião aparecem com força no filme, de uma maneira nada óbvia, que captura um outro lado do Brasil evangélico. Tinha esse direcionamento?

Quando comecei a falar com as pessoas, tinham só dois perfis que queria muito incluir no filme e o resto estava um pouco mais aberto. Queria muito incluir um casal de mais idade, até mais velho do que o casal retratado no filme, que foi o mais difícil de encontrar, demorou dois anos. Por que eu queria refletir sobre o desejo e a sexualidade na terceira idade, que ainda existe e é bem vivo. E queria encontrar casais evangélicos. Um pouco para desafiar o imaginário do uso de motel. A pesquisadora encontrou dois casais [um hétero e um gay], e foi muito incrível, muito impressionante a forma como eles pensam. A relação do sexo com o divino, da sexualidade mais integrada de um ponto de vista mais filosófico, da união mais espiritual entre as pessoas. Ambos falam coisas muito incríveis e fazem reflexões sobre coisas que são muito maiores do que a sexualidade deles, como se aquilo abrisse uma porta para refletir sobre algo muito maior. O Brasil é muito religioso e no final a gente conseguiu um equilíbrio, que mostra que religiosidade e espiritualidade têm muito a ver com sexo historicamente.

Falando em sexo e religião, lembrei de Divino Amor, que você foi corroterista junto com o Gabriel Mascaro. Você é produtora dos filmes dele, inclusive de O último Azul, que levou o Urso de Prata no Festival de Berlim deste ano. Queria entender a importância dessa parceria para você.

Comecei a fazer filmes com Gabriel. Um processo muito incrível. Ao longo de 15 anos a gente vem criando e fazendo filmes juntos, tem sido uma parceria muito grande, profissional, criativa e artística. Lembro quando falei do Eros para ele, que foi uma das primeiras pessoas que mais me encorajaram a dirigir. Sempre me senti realizada produzindo os filmes dele. Mas começou a rolar um momento em que eu percebi que eu estava tendo ideias que eu mesma precisava realizar. Como produtor, às vezes a gente contribui muito criativamente nos projetos dos outros. Mas tem uma hora que você precisa fazer a sua ideia.

Tenho uma última pergunta para você. Você deu uma segunda chance para a pessoa que te deu um bolo no motel?

Se eu dei? Ah, não sei se deveria responder, se bem que na verdade eu convidei mais de uma pessoa para fazer uma filmagem comigo. Elas não toparam, mas eram pessoas que já tinha uma certa relação. Então, dei uma chance, mas foi bem frustrante.

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