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Edição de sábado: A corrida dos datacenters

Três anos, estourando. Esse é o prazo que o Brasil tem para entrar de vez na corrida global dos data centers ou ver a janela se fechar diante do avanço da inteligência artificial (IA). O alerta veio sem rodeios de Luis Tossi, vice-presidente da Associação Brasileira de Data Center (ABDC), durante um seminário promovido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em São Paulo.

Na plateia estavam representantes dos ministérios do Meio Ambiente e de Minas e Energia, do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) — a maior empresa pública de tecnologia da informação do país —, além de executivos de grandes companhias privadas. Todos ouviram atentos enquanto Tossi desenhava o cenário: “A janela de oportunidade da IA é muito curta. Temos de dois a três anos, no máximo, para cooptar os grandes data centers de treinamento de algoritmos para o Brasil”, afirmou.

A urgência tem base sólida. Estima-se que o Brasil tenha cerca de 162 data centers em operação, somando aproximadamente 612 megawatts de potência instalada voltada à tecnologia da informação — com outros 162 megawatts em construção, o total gira entre 750 e 774 MW. Para ter ideia do que isso significa: é mais ou menos o que consome, 24 horas por dia, uma cidade do porte de Juiz de Fora (MG), com cerca de 570 mil habitantes. Só que, no caso dos data centers, essa energia não é gerada. É consumida.

Tratam-se, no entanto, de estimativas. Segundo Tossi, “existe uma divergência de dados muito grande porque não há agência ou instituto que consiga fazer um estudo capaz de acompanhar a velocidade em que o mercado vem crescendo”.

Na prática, esses centros atuam como o coração invisível da internet. Ali ficam concentrados milhares de servidores e equipamentos de rede que fazem o trabalho pesado de processar, armazenar e distribuir o volume gigantesco de dados produzidos e acessados todos os dias. Ou seja: toda vez que você entra em uma rede social, assiste a um vídeo, faz uma compra online, consulta o app do banco ou interage com uma inteligência artificial, seu pedido não vai direto para o site ou aplicativo — ele é roteado por essas instalações.

Nos data centers, as informações são recebidas, organizadas, processadas e enviadas de volta, quase em tempo real. Pense neles como centrais de controle e distribuição digital, conectando usuários a serviços espalhados pelo mundo. Por isso, precisam funcionar 24 horas por dia, sete dias por semana, sem falhas.

E o que mantém tudo isso rodando? Energia elétrica. Muita energia. Servidores, sistemas de refrigeração para evitar superaquecimento, segurança física e digital, e conexões de internet de alta velocidade consomem uma quantidade gigantesca de eletricidade. É por isso que, diferentemente de outras indústrias, a capacidade de um data center não é medida por área construída ou número de funcionários, mas pela potência elétrica que consegue consumir continuamente. Quanto mais megawatts, maior a capacidade de operação estável e de atender à demanda crescente por dados.

Se o país seguir no ritmo atual de expansão, puxado sobretudo pela alta orgânica dos serviços em nuvem, pode chegar a 2,5 gigawatts até 2037. Mas, quando a IA entra na conta, tudo muda. A tecnologia exige infraestrutura especializada e robusta, grande disponibilidade elétrica, baixo custo e pressa. Quem estiver pronto, leva.

Igor Marchesini, assessor especial do Ministério da Fazenda, vê uma janela ainda mais curta para o Brasil não perder o bonde: entre 12 e 18 meses. Por isso, é preciso correr para criar um ambiente competitivo. Há nove meses Marchesini aperta o passo nessa maratona desenvolvendo o Plano Nacional de Data Centers, o Redata — uma política que antecipa os efeitos da reforma tributária sobre o consumo no setor digital, propondo a desoneração de componentes essenciais para atrair grandes players.

Se a medida entrar em vigor, a indústria nacional de data centers pode inflar a ponto de atingir 10 gigawatts em uma década. O que isso representa? Investimentos da ordem de R$ 2 trilhões ao longo dos próximos dez anos, afirma Marchesini.

Energia não falta (mas nem sempre chega)

Isolados, os Estados Unidos lideram o ranking global de data centers, com 5.381 unidades registradas no ano passado pelo Cloudscene, diretório internacional de infraestrutura digital. A hegemonia é natural: o país concentra a maior quantidade de big techs do mundo, sendo berço das chamadas “Big Five” — Alphabet (dona do Google), Amazon, Apple, Meta (controladora do Facebook) e Microsoft.

Mas essa liderança tem um custo. A matriz elétrica americana ainda depende fortemente de combustíveis fósseis: apenas cerca de 25% da eletricidade consumida nos EUA vêm de fontes renováveis. O impacto disso aparece, ainda, nas emissões — um quilowatt-hora consumido no país emite, em média, entre 0,4 kg de CO2. No Brasil, esse número é muito menor: cerca de 0,08 kg. Quando se coloca na balança a explosão do consumo energético dos data centers com IA, essa diferença vira não só uma vantagem ambiental, mas também econômica e estratégica.

Em segundo lugar no ranking está a Alemanha, com 521 centros, seguida pelo Reino Unido, com 514. A China aparece logo atrás, acumulando 449 instalações. O Brasil, ainda distante, figura na 13ª posição. Embora a colocação seja modesta, tem um trunfo diante dos concorrentes: uma das matrizes elétricas mais limpas do mundo, devido à alta participação de fontes renováveis. De acordo com o Balanço Energético Nacional de 2025, no último ano o Brasil gerou 88,2% de sua eletricidade a partir de fontes renováveis, com destaque para as energias hidrelétrica, eólica e solar. Para efeito de comparação, a média global foi de 32%, segundo relatório do think tank de energia Ember.

Mesmo na América Latina, o Brasil sai na frente graças a uma combinação estratégica. Tossi destaca que “nós temos energia renovável, energia barata, mão de obra qualificada e empresas especializadas. [...] Hoje, uma boa parte dos data centers da América Latina está sendo construída por empresas brasileiras.” Ele ressalta ainda que “temos um mercado interno com déficit. Só para atender essa demanda local, já daria para mais que dobrar o parque atual de data centers.” Esse cenário aponta para um potencial de crescimento expressivo e para a possibilidade de o país se consolidar como um polo digital regional.

O contexto global também reforça essa vantagem. “Depois de dez anos estável, a demanda por data centers explodiu na pandemia”, explica Igor Marchesini. Na década entre 2010 e 2020, o consumo global desses centros girava em torno de 200 TWh — e, hoje, já está entre 240 e 340 TWh por ano. A Agência Internacional de Energia (IEA) projeta que esse número mais que dobrará até 2030, chegando a cerca de 945 TWh. Ou seja: um crescimento de quase cinco vezes em dez anos, impulsionado sobretudo pela explosão dos serviços de IA.

“Obviamente, o planeta não aguenta que isso seja feito com energia suja, né?”, alerta Marchesini. A preocupação tem fundamento. Embora países como os Estados Unidos e a China concentrem a maioria dos centros de dados, suas matrizes energéticas ainda dependem fortemente de fontes fósseis — o que coloca em xeque a sustentabilidade dessa expansão. Por isso, ele acredita que o Brasil “está muito bem-posicionado” para ocupar esse novo espaço com uma pegada verde e mais competitiva.

Ainda assim, a concentração dos data centers em poucas regiões do país acende um alerta. A maioria dessas instalações está no interior de São Paulo, especialmente no eixo Barueri-Campinas — uma área que oferece boa infraestrutura elétrica, conexão de qualidade e está perto dos principais polos consumidores. A proximidade garante baixa latência, ou seja, respostas rápidas, essenciais para serviços como bancos, e-commerces e streaming. No entanto, também significa sobrecarga: mais pressão sobre o fornecimento de energia, sobre a ocupação do solo e até sobre o uso da água.

Mas nem todo data center precisa estar colado às grandes cidades. No caso dos que treinam modelos de inteligência artificial, por exemplo, a lógica muda: como não dependem de respostas em tempo real, eles podem ser instalados em áreas mais afastadas — desde que tenham energia abundante, clima favorável para resfriamento e uma boa conexão com a rede principal. Isso abre uma janela de oportunidade para descentralizar a infraestrutura, levar investimentos para outras regiões e integrar o Norte e o Nordeste à nova economia digital.

Infraestrutura
GPUs, refrigeração líquida, circuito fechado, circuito aberto. Palavras que até pouco tempo pertenciam ao vocabulário técnico de engenheiros agora fazem parte do dia a dia de quem trabalha com data centers. Com a inteligência artificial ganhando espaço, a estrutura tradicional dessas instalações precisa mudar — e rápido.

“O ar não é mais capaz de dar conta do resfriamento”, explica Rodrigo Radaieski, COO da Ascenty, maior empresa de infraestrutura de data center da América Latina. “Então entra a refrigeração líquida.” Enquanto os data centers tradicionais, voltados à nuvem (cloud), costumam operar com resfriamento a ar e equipamentos padrão, os dedicados à IA exigem máquinas muito mais potentes, como os servidores equipados com GPUs (unidades de processamento gráfico), que geram um volume de calor muito maior e, por isso, precisam de tecnologias específicas para manter a operação estável.
Ele conta que a empresa já opera projetos com liquid cooling — ou seja, sistemas nos quais o calor é dissipado por meio de água ou outros líquidos refrigerantes. Em muitos casos, isso exige reconfigurar completamente o projeto das instalações.

Para início de conversa, a mudança começa no maquinário. Em vez dos processadores tradicionais, os sistemas de IA usam as GPUs, que hoje são o coração da inteligência artificial. Isso porque conseguem lidar com muitas tarefas ao mesmo tempo, algo essencial para treinar modelos como os de linguagem e visão computacional. Só que esse desempenho extra vem com um preço: esses componentes são mais complexos, processam mais informações, portanto esquentam muito mais. E isso exige outra lógica de resfriamento.

Há três principais formas de enfrentar esse desafio de resfriamento. A primeira é o liquid to chip, em que água gelada circula por tubos posicionados bem próximos aos chips, retirando o calor diretamente das peças mais sensíveis. Outra opção é o rear door heat exchanger, uma porta traseira nos racks que resfria o ar quente ao sair dos equipamentos — solução que ainda pode ser usada em cargas moderadas de IA, mas que tem limitações em ambientes de altíssima densidade. E existe ainda a técnica de imersão, em que os componentes eletrônicos são mergulhados em um líquido especial que não conduz eletricidade, permitindo a dissipação eficiente mesmo nos casos mais extremos.

Essas mudanças técnicas trazem uma nova preocupação: o uso responsável da água. “Alguns sistemas no mundo usam torres de resfriamento que desperdiçam água. A gente não usa nada disso. Todos os nossos sistemas são em circuito fechado. A mesma água circula, resfria, volta e é usada de novo. Nosso desperdício hídrico é praticamente zero”, diz Rodrigo.

Para medir esse desempenho, o setor usa indicadores como o WUE (Water Usage Effectiveness), que calcula quanta água é consumida para cada quilowatt-hora entregue aos equipamentos. Já a eficiência energética é avaliada pelo PUE (Power Usage Effectiveness), que mostra quanto da energia total consumida pelo data center está, de fato, sendo usada pelas máquinas. Quanto mais próximo de 1, melhor: significa que quase toda a eletricidade vai direto para o processamento, e não para resfriamento ou outras funções auxiliares.

Mesmo com energia limpa, infraestrutura moderna e tecnologias avançadas, o Brasil ainda enfrenta um entrave — e ele não é técnico. “O problema hoje está no custo de montar tudo isso no Brasil. Esses equipamentos com GPU são importados. Um computador que custa ‘um’ lá fora, chega por ‘dois’ aqui. E o investimento para rechear um data center com esse tipo de máquina é altíssimo. Para cada dólar que o cliente gasta com infraestrutura, ele gasta dez com os equipamentos que vão lá dentro.”

Ainda assim, o otimismo prevalece. “A gente tem energia sobrando, tem conectividade, tem gente capacitada, tem uma estrutura de altíssimo nível. O que falta é tornar o ambiente mais atrativo para investimento internacional.” E conclui: “Se a gente conseguir mexer na burocracia, rever tributos e facilitar a entrada desses equipamentos, o Brasil pode se tornar um dos grandes polos verdes da IA no mundo.”

Desburocratiza, a palavra de ordem
O caminho para desburocratizar o setor de data centers no Brasil foi, nas palavras de Igor Marchesini, praticar um exercício de startup dentro do governo. Ele reuniu representantes dos ministérios do Meio Ambiente, de Minas e Energia, da Casa Civil e de outras áreas para testar ideias, colocar hipóteses à prova e ajustar o projeto enquanto dialogava, em paralelo, com empresas do setor. O objetivo era simples, mas ambicioso: criar uma política pública que fizesse sentido — e funcionasse na prática.

O resultado foi o Redata. A proposta prevê isenção de IPI, PIS/Cofins e imposto de importação para empresas que queiram investir em data centers no Brasil, por um período de cinco anos. Mas há contrapartidas: as empresas precisam comprovar operação com carbono zero e eficiência hídrica; parte da capacidade instalada deve obrigatoriamente permanecer no país — hoje, cerca de 60% da carga digital brasileira roda fora do Brasil, principalmente na Virgínia (EUA); e pelo menos 2% do investimento precisa ser destinado à formação de mão de obra e à pesquisa aplicada à cadeia de IA e data centers, como em estudos sobre tecnologias de resfriamento líquido ou prevenção de incêndios sem uso de gases.

“Aqui, sustentabilidade não é um requisito, um impedimento ao progresso. Ela é, na verdade, uma mola propulsora. É estratégia. É o diferencial", pondera Marchesini. Questionado sobre a receptividade do setor privado diante dessas exigências, ele é direto: “Todo mundo que a gente falou topa fazer esse tipo de coisa porque o estrutural do Brasil permite que se obedeçam a essas exigências sem grandes desvantagens econômicas. Em outras palavras, ainda conseguimos ser economicamente competitivos mesmo com essa barra alta de exigência.”

Condições que devem perpassar grandes e pequenas companhias. Afinal, o Redata não foi pensado apenas para gigantes da tecnologia. “O programa não é desenhado para hyperscales nem para big techs americanas, é desenhado para todo o ecossistema. Estamos conversando com players nacionais como MagaluCloud, a Associação Brasileira de Pequenos Provedores de Internet, players que vão fazer um pequeno data center em Manaus, outro um pequeno data center no Piauí, etc.”

Embora desanuvie o setor, o projeto é apenas um pequeno passo. Já que o tempo é curto, e a janela para atrair investimentos é ainda menor. “Esse setor se desenvolve muito rápido, então a gente não tinha o luxo de ficar um ano e meio desenhando uma grande política pública para sair em um pacotão do digital. Estamos fazendo em etapas. A primeira é o Redata, é a que vai destravar.”

E completa: “Tem todo um ecossistema chinês que não está operando no Brasil e tem que vir pra cá, que não vinha por causa desse imposto, dessa complexidade, então a gente está no esforço de trazer para aumentar a competitividade. Além disso, tem um espaço não banal para as nossas empresas de tecnologia. No fim das contas, a gente está tentando ativar o setor digital por todas as frentes, mas o Redata é, digamos assim, o building block, a pedra fundamental que depois nos permitirá jogar sementes em um solo fértil.”

Segundo fontes no Palácio do Planalto, a medida provisória que institui o Redata já está pronta. O texto tem aval da Receita Federal, da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e foi assinado pelo vice-presidente e ministro da Indústria e Comércio, Geraldo Alckmin. Agora, só falta o momento certo: aguarda-se o clima político ideal para que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva envie a proposta ao Congresso. Enquanto isso, entre tensões e ruídos entre Executivo e Legislativo, o tempo segue passando — e a janela, se estreitando.

Arte no atropelo

Gabriela Inui estava com dois artistas terminando a pintura da pequena sala de quatro por três metros no quarto andar de uma galeria do centro de São Paulo quando agentes da Polícia Federal desceram de rapel vindos do telhado da galeria, armas em punho, mandando todos se deitarem no chão. A batida da PF aconteceu em março de 2024. Os policiais procuravam os líderes de uma quadrilha de traficantes que usava o prédio para preparar mulas para o tráfico internacional.

Com esse batismo de fogo nasce um espaço de arte singular na cidade de São Paulo, a Sala 24 de Maio. Depois de passar três horas deitada, de ter de dar declarações ao delegado que conduzia as investigações, Gabriela e os artistas foram liberados. “Nesse processo todo da PF, eu desisti da ideia de usar o espaço, pedi desculpa para os meninos de colocá-los nessa roubada depois de pintar a sala toda e aí eles falaram: ‘Não Gabi, a gente vai continuar, a gente é da periferia, a gente lida com isso’”, conta, um ano depois, a dona da galeria.

Nos encontramos em um dia gelado deste inverno paulistano. O Centro Comercial Presidente, também conhecido como a Galeria do Reggae, fica na rua 24 de Maio, quase ao lado de sua irmã mais famosa, a Galeria do Rock, e é espelhada pelo prédio do Sesc 24 de Maio, projetado por Paulo Mendes da Rocha.

É um lugar muito familiar para mim. Lá funcionava minha loja de discos preferida no começo dos anos 2000, a Bizarre Music, além de um sem-fim de lojas especializadas em hip-hop, música eletrônica e reggae. Apenas duas delas seguem na ativa hoje. Vinte anos depois, quando volto a subir suas escadas da galeria, ela é dominada pelos imigrantes africanos, que conversam animadamente em uma língua que não entendo. Subindo pelas escadas rolantes os lances para chegar ao quarto andar, o que mais se vê são salões de cabeleireiros, com aquela profusão de apliques. Há um certo ar de abandono, muitas lojas fechadas, um restaurante aqui, outro acolá.

O quarto andar da galeria, reza a lenda, sempre carregou uma mítica de lugar sinistro. Mesmo tendo frequentado aquele prédio por anos, nunca havia chegado tão alto. Mas é lá, em uma sala em meia lua voltada para a rua 24 de Maio, com janelas altas que mesmo no inverno deixam entrar uma luz generosa, que se instalou esse endereço com uma proposta única de proporcionar um encontro entre duas vertentes da arte que se encontram muito nos últimos anos, mas que, no fundo, dialogam pouco: a arte de rua e a arte contemporânea.

Nem sempre foi assim. É verdade que a sala estava abandonada havia anos. Mas até 1996 funcionava ali o consultório dentário do avô de Gabriela, um imigrante japonês que se tornou um protista autodidata. Parece que dos bons. Jânio Quadros, ex-presidente, sentou-se em sua cadeira para colocar uma prótese naquele endereço. “Meu avô morreu aos 99 anos, e aprendeu sozinho a esculpir dentes, de certa maneira, uma forma de arte. Abrir esse espaço aqui, numa sala que havia sido abandonada pela família, parece fechar um ciclo.”

O projeto da Sala 24 de Maio tem a ver com uma confluência de ciclos. Com novas perspectivas e recomeços. Gabriela Inui tem uma longa trajetória nas artes visuais. Começou como artista, basicamente trabalhando com fotografia, nos anos 1990, nos Estados Unidos. Ao voltar para o Brasil, trabalhou em uma série de galerias famosas. Começou na Luisa Strina, passou pela Casa Triângulo, pela Mendes Wood, pela Baró e lançou um projeto pioneiro em editar múltiplos de artistas como Cildo Meireles, Paulo Bruscky, Antonio Dias, a Multiplique Boutique. Mas sentiu que precisava virar a chave.

A política tem um papel importante nessa visão, e, curiosamente, tem a ver com a história da preservação do patrimônio histórico do arquiteto modernista Gregori Warchavchik. Quando, em 2013, uma obra ameaçava as casas da rua Berta, um projeto de casas geminadas feito pelo autor do projeto da Casa Modernista e da construção que hoje abriga o Museu Lasar Segall, Gabriela se junta ao movimento Proteja as Casas Modernistas da Rua Berta. O movimento perde o processo contra a obra em 2018, com ela já terminada. Gabriela voltaria a defender o patrimônio de Warchavchik, quando cria a exposição chamada Divergência Estética Capítulo 1, que aconteceu no Centro da Terra, e era feita para lançar luz sobre a iminente demolição do Salão de Festas feito por ele no clube Pinheiros. Isso em 2019, na mesma época em que o arquiteto era celebrado em exposições no Itaú Cultural, na Casa Modernista e no Museu Lasar Segall.

“Quando percebi que estava vendendo a Laje do Herzog [Laje #19 (Herzog), de Matheus Rocha Pitta] para o advogado que estava me processando por defender o patrimônio histórico, entendo que a arte contemporânea, por mais política que seja, acaba sendo engolida e subvertida pelo mercado.”

E a Sala 24 de Maio traz um modelo que desafia essas regras do mercado de arte. No seu espaço exíguo não se fazem nem exposições nem residências artísticas. São feitas temporadas. “Basicamente, eu entrego a chave para os artistas, que ocupam o espaço como querem para criar. São temporadas que duram cerca de dois meses e, ao final, fazemos uma exposição”, conta Gabriela.

A própria questão da autoria, muitas vezes, é desafiada, com uma série de colaborações durante o processo. Já a primeira temporada, batizada de Atropelo, conceito dos pichadores de passar por cima das obras dos outros, três artistas do Ateliê da Rapa, Link Museu, Tito Terapia e Evandro César, embaralhavam a linguagem do pixo e a pintura sobre tela e convidavam suas próprias obras para serem atropeladas.? “A ideia é dar um direcionamento, mas muita liberdade para o artista criar aqui. Basicamente eu dou a chave da sala para ele, e cada um faz o uso que quiser para a sua criação”, explica.

Quando visito a sala, já na sexta temporada, quem está produzindo é o artista visual Renato Custódio. Na sala, ele inicia uma nova pesquisa, bem distante das suas obras que envolvem a cultura do skate e arte sonora. Lá ele está fazendo pinturas de uma série de portas de ferro, dessas que existem em profusão nos comércios em volta da galeria. Curioso é que todas essas portas estão cobertas pelo picho, e o trabalho de Renato limpa essa camada.

Ele ocupa o espaço com um toca-discos e uma cafeteira. Diferentemente de outros artistas que passaram por lá, cria a portas fechadas, num processo mais diurno, e recebe alguns visitantes com café. Não à toa a temporada foi batizada de Café Blasé.

Antes, passaram por lá artistas como Fabio Biofa, Oswaldo Ruivo Midi, Risada. “Cada artista vem e traz a vibe dele, a identidade. Até os tempos das temporadas mudam, tudo é maleável. E sempre tem muita colaboração.

A Sala 24 de Maio vende as obras que foram produzidas ali. Como numa galeria, fica com 50% da obra, que é destinado a manter o espaço. Mas até isso é diferente, não é uma representação, se o artista acaba sendo representado por outra galeria e vender uma obra daqui, tudo certo”, diz Gabriela. “Uma coisa que tenho visto é que o lugar propicia uma nova pesquisa, um olhar diferente. A produção da sala às vezes é bem diferenciada da do artista. E é isso que importa.”

Vermiglio é a cor mais fria

A guerra impacta a vida de qualquer família em qualquer lugar do planeta. Mas a história dos Graziadei muda ainda mais quando um desertor foge do front para a comunidade onde moram, em Vermiglio, uma vila remota nos Alpes italianos. Visto como um covarde, o soldado Pietro recebe abrigo do professor Cesare e se apaixona por Lucia, filha mais velha do casal. O relacionamento entre eles tem desdobramentos inesperados, que impactam toda a casa. Esse é o enredo de Vermiglio - A Noiva da Montanha (trailer), que estreia no próximo dia 10 nos cinemas brasileiros, após vencer o Leão de Prata - Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza, representar a Itália no Oscar e ser indicado ao Globo de Ouro.

Escrito e dirigido por Maura Delpero, o longa de quase duas horas de duração conta com Tommaso Ragno, Giuseppe De Domenico, Roberta Rovelli e Martina Scrinzi no elenco. Esse é o segundo filme de ficção de Delpero, que foi premiada nos festivais de Locarno e Mar del Plata com Maternal, de 2019, obra em que também tratou de maneira adjacente a questão religiosa. Antes, estreou na direção com os documentários Signori Professori (2008) e Nadea e Sveta (2012), ambos premiados no Festival de Turim.

Em Vermiglio, a família tem os costumes tradicionais do interior, como ir à igreja. Mas essa característica religiosa é mais visível na jovem Ada (Rachele Potrich), que mantém um caderno de penitências. Ela monitora cada “falta” que comete, administrando com fervor as próprias punições. Ao atingir um dado limite para seus “erros”, chega a comer fezes de galinha. Ela acaba utilizando sua religiosidade para lidar com suas inquietações, como ir ao confessionário para falar da frustração de não poder continuar seus estudos porque seu pai diz que ela não se destacou, portanto, não merece seguir para a escola. E também fala com a divindade para reprimir seus desejos mais íntimos.

A frieza das personagens, mesmo em momentos de dor e de apreensão, é uma das características marcantes do filme. Delpero trabalha cada uma delas com movimentos muito contidos para expressar sentimentos como tristeza, medo e arrependimento. O que exige certa capacidade técnica dos atores e atrizes para demonstrar essas nuances com sutileza. Lúcia, interpretada por Martina Scrinzi, é a única que extravasa de maneira mais explícita suas emoções. Não é a única a parir, mas é só ela que ouvimos seus gritos no parto. Ela é quem vemos chorar em diferentes momentos da trama.

Pietro, personagem de Giuseppe De Domenico, fala pouco. Tem traumas da guerra. Em uma das raras conversas mais elaboradas, descreve a sensação de perder seu amigo nas trincheiras. “É como se estivesse vivo, mas na verdade não está”, reflete sobre o ânimo de um soldado. Mesmo tomando decisões importantes, demonstra certa dose de apatia em suas ações.

O elenco, apesar de bem coeso, tem uma atuação homogênea, ornando com a frieza dos Alpes e a vida simples do campo. O destaque vai para Tomaso Ragno no papel de Cesare, conseguindo manter um equilíbrio entre a firmeza de um homem do campo com uma certa sensibilidade no trato pessoal. Como quando defende a compra de um novo disco para a vitrola, mesmo com poucos recursos para a família, por considerar a música “um alimento para a alma”. Ou quando relativiza a suposta covardia do recém-chegado Pietro, apontada por parte da comunidade alpina, por ser um desertor. “Se todos fossem covardes, não haveria mais guerras”, reflete o professor.

As cores frias e o tom ameno das cenas dão o clima pacato da região retratada. A escolha por uma estética de imagens granuladas ajuda a ressaltar o período em que a história se passa. A região também é aproveitada na fotografia do filme, com enquadramentos que valorizam o cenário natural, muitas vezes lembrando os quadros do realismo de Jean-François Millet e Gustave Courbet ou do naturalismo de Jules Bastien-Lepage. Aliás, o trabalho com a luz vai melhorando com o passar da película.

Para preencher o silêncio construtivo das cenas, a diretora acerta em trabalhar os sons de cada ação retratada, desde o rangido da madeira das rodas do carrinho passando pela neve até o uivar do vento pelos alpes. Cada elemento sonoro é bem pensado para ajudar a contar a história. Não à toa, o longa recebeu os prêmios David di Donatello de Melhor Som e Fotografia.

No Conversas Com o Meio

No Conversas Com o Meio, Pedro Doria e o economista Marcos Lisboa falam sobre a origem dos conflitos entre Israel e Palestina. Uma leitura por diferentes ângulos sobre o atual momento da geopolítica do Oriente Médio. Assista aqui.

Às vezes, tudo o que o assinante do Meio quer é mais Meio. Confira as notas mais clicadas esta semana:

1. Globo: Drones do tamanho de insetos equipados com IA podem espionar, operar e cultivar.

2. Meio: Conversas com o Meio - Marcos Lisboa e Pedro Doria conversam sobre Israel e Palestina numa análise geopolítica e histórica.

3. Panelinha: Sobrecoxa de frango com salsão, tomilho e laranja para aquecer as noites de inverno.

4. Meio: Ponto de Partida - A atual estrutura política do Brasil não permite que um presidente progressista, qualquer um, governe de fato, avalia de Pedro Doria.

5. Meio: Ponto de Partida - Pedro Doria explica por que a decisão do STF sobre as redes sociais não resolve o problema.

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