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Edição de Sábado: As duas direitas

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Jair Bolsonaro não lidera a direita brasileira. A afirmação pode parecer peremptória, exagerada, talvez até iludida. Mas não é. Para quem mergulha nos números, a liderança absoluta do ex-presidente é uma miragem. Perguntas incluídas a pedido do Meio no levantamento feito em setembro pelo Instituto Ideia, dirigido pelo economista Maurício Moura, demonstram com clareza esta afirmação. Ainda assim, os principais líderes partidários desta mesma direita atuam como se devessem tudo a ele. Por quê? Talvez, para responder a esta que é a pergunta mais importante no atual cenário da política brasileira, seja preciso começarmos pelos próprios números.

Quando alguém é entrevistado pelo Ideia, uma das primeiras questões que precisa encarar tem múltipla escolha: “Pensando em orientação política, como você classificaria sua posição atual?” O brasileiro vai no simples. Um bloco de 18% se diz de esquerda e outro, de 22%, fala que é de direita. As posições centristas não atraem muito: 5% de centro-esquerda, outros 5% de centro-direita, e 4% assumem só centro, espremidos entre os dois. Muita gente se perde perante a pergunta. São os 22% que vão num “nunca tive orientação”, ou os 12% que arriscam “já tive, não tenho mais”, além dos 7% que simplesmente não sabem.

Na soma destes números todos, para dar 100 faltam 5. São os 5% que cravam na última da lista de escolhas. Outros. Para estes, o pesquisador pergunta como desejam ser categorizados. Aí, 1% dá toda sorte de resposta e 4% dizem a palavra que melhor sentem descrevê-los. Bolsonaristas. Outro pesquisador, Felipe Nunes da Quaest, organiza a sociedade brasileira em nove grupos distintos classificados de acordo com seus valores políticos. Um deles é o que ele chamou “extrema direita”. Nas contas da Quaest, são 3%. Margem de erro para cá, para lá, é a mesma turma. Os ultra-radicais brasileiros à direita têm este tamanho, entre 3% e 4% do todo.

Para realmente compreender a sociedade, a autodeclaração não basta. Afinal, 46% dos entrevistados não se puseram em coluna alguma. Isto não quer dizer que não tenham valores. Talvez não compreendam bem como se colocar, ou não queiram. Mas é por isso que, no questionário, estão diversas perguntas sobre valores. Quando alguém sistematicamente assume valores considerados à direita do espectro, essa pessoa também é deslocada para a coluna ideológica adequada. No fim da tabulação, o Ideia considera que 38% dos brasileiros são de direita e, 34%, de esquerda.

Vale comparar com outros institutos. Quaest: 34% de direita, 32% de esquerda. Ou Ipespe, comandado pelo também cientista político Antonio Lavareda. 38% de direita, 28% de esquerda. Os três veem o centro mais ou menos com o mesmo tamanho, ali pelos 10%. Há diferenças importantes de metodologia entre o Ipespe e os outros dois, mas claramente conhecemos o tamanho mais ou menos da direita brasileira.

O pulo do gato está na divisão. O Ideia separa estes 38% de direita em dois grupos distintos. São 12% bolsonaristas e 26% não-bolsonaristas. A Quaest chega a números comparáveis: 13% bolsonaristas e 21% não. Dentro deste conjunto, o Ideia tem aqueles 4% que ignoram a posição esquerda-direita para declarar de cara seu bolsonarismo. A Quaest encontra os 3% que, com base em seus valores, posiciona na extrema-direita. A divisão, portanto, é até mais rica. Segundo o Ideia, 4% de bolsonaristas radicais, 8% de bolsonaristas, 26% que estão fora. Separar o bloco leal ao ex-presidente do que se afasta dele não é difícil. É só ir para outro pedaço habitual da pesquisa. Aquele em que aparecem perguntas sobre se votaria em Bolsonaro, sobre como avalia o nome dele. Quem prefere não, quem está desapontado, quem aponta para a frente e diz que deseja outro não é bolsonarista.

Dois terços dos brasileiros de direita não são bolsonaristas. Um terço, é.

A direita desconhedida

Esta não é uma afirmação popular ou mesmo intuitiva. Políticos e militantes de esquerda a rejeitam de bate-pronto: “não temos uma direita democrática no Brasil”. Políticos de direita, a seu jeito, fazem o mesmo. Os presidentes de partidos como o PL, o Republicanos, o Progressistas ou o União Brasil estão há meses dedicados a costurar uma candidatura que os una e não conseguem. Afinal, impuseram-se como critério ter o apoio de Jair Bolsonaro. Não é só isso. Desde 2018, todos os anos, algumas dezenas de milhares de brasileiros tomam a Avenida Paulista, a Avenida Atlântica e outras tantas para, vestidos com a camisa da Seleção, gritar “Mito”, ou “anistia”, ou qualquer coisa do tipo. Some-se à conta as redes sociais. É discurso bolsonarista que acumula milhões de visualizações ou likes, que viraliza. São bolsonaristas os que têm mais seguidores. Vêm de bolsonaristas os comentários desaforados que inundam as postagens dos críticos. É só ver: o bolsonarismo é enorme, sim.

O problema da miragem, ora, é que nós realmente a vemos. E isso não quer dizer que o oásis esteja lá, no meio do deserto. Ele é uma ilusão.

Redes sociais são frequentadas por milhões de pessoas, mas isto não quer dizer que elas aflorem todas as vozes. Predominam, nelas, os identitários, à esquerda, e os mais radicais, à direita. É preciso procurar muito para achar os moderados. Faz parte do modelo de negócio: o atrito faz o sangue ferver, o ressentimento mobiliza emocionalmente, e toda emoção forte nos faz voltar e voltar a qualquer rede que seja. A ira, o ódio, o sentimento de pertencer a um grupo que está em guerra com o outro faz das plataformas digitais negócios rentáveis. Além disso, ir às ruas dá muito trabalho. É preciso uma devoção à causa muito especial. Encher avenidas pelo país vez por outra é possível. Fazer isso recorrentemente exige aquele tipo de zelo e entrega que só tem a pessoa que pula a palavra direita, no questionário, para dizer com todo o fervor que arranca do âmago: de direita, não. “Sou bolsonarista.”

O cálculo

Ora, 12% de eleitores particularmente dedicados não é coisa que se dispense. São votos certos e uma base a partir da qual é fácil construir os 20% a 25% necessários para alcançar o segundo turno. Isso bem poderia explicar a estratégia dos líderes políticos da direita. Até seria, não fosse o fato de que as diferenças de valor entre os dois grupos, a direita não-bolsonarista e o pessoal que grita “Mito”, não é pequena.

Ontem, sexta-feira 3 de outubro, o PoderData publicou uma pesquisa que foi a campo entre 27 e 29 de setembro e ouviu de 64% dos brasileiros que eles são contra qualquer anistia para o 8 de janeiro. É um número alto. Também em setembro, o Datafolha constatou que 54% são contra a anistia. Segundo a Quaest, 51% são contra uma anistia que inclua Bolsonaro. Some os eleitores de esquerda e os de centro, não dá 50% dos brasileiros. Ou seja, uma parcela de quem é de direita é contra anistiar o ex-presidente. Mas esta é a pista sobre distinção de valores que estão nas pesquisas públicas. Com as perguntas que o Ideia fez para o Meio, dá para ir mais fundo.

A diferença

As duas direitas, bolsonarista e não-bolsonarista, têm valores em comum. Muda a ênfase, mas é compartilhado: 78,5% dos bolsonaristas reprovam o trabalho do STF e 58,3% dos não-bolsonaristas. Sobre a ideia de que armas na mão de cidadãos diminuem violência, novamente — 24% dos bolsonaristas discordam, 25,8% dos não-bolsonarista também. Acreditam que políticas de garantia de uma renda mínima para todos tiram o incentivo para o trabalho. Só 22% dos bolsonaristas olham com simpatia, 23,4% do outro grupo. Não é difícil de compreender essa margem de valores comuns. Todos são homens e mulheres de direita.

Mas pergunte à direita não-bolsonarista se ela considera que, tendo sido condenado pelo Supremo, Jair Bolsonaro deve ser preso. Só 35,8% se opõem. Por outro lado, 68,5% dos bolsonaristas acham que Bolsonaro deve seguir livre. Que não deve cumprir a pena de restrição à liberdade ditada pelos juízes. Está aí a imensa diferença a respeito da anistia. Se concordam, sim, que o Supremo Tribunal Federal tem problemas, um grupo da direita acha que a Justiça decidiu, decidido está. O terço mais radical discorda com veemência.

Não é só aí: 32,4% dos não-bolsonaristas são contra direitos iguais para casais homoafetivos. E 69,5% dos bolsonaristas são contra.

Demograficamente, estes grupos são igualmente muito diferentes. Os 12% de bolsonaristas tendem a ser das clases A1 e B2 (50,6%) e vivem no Sul ou no Sudeste (72,7%). A direita não-bolsonarista está nas classes C1 e D (69,8%) e mora, principalmente, no Sudeste e no Nordeste. O primeiro grupo está entre o ensino médio e superior. O segundo, entre o fundamental e médio. Quem vê a Paulista e a Atlântica cheia, vestindo o mar de camisas amarelas, logo reconhece.

O conservador é cauteloso, deseja mudanças lentas e tende a cuidar da própria vida. O reacionário é estridente, quer retroação imediata aos valores de um passado imaginado, e deseja se impor a todos. Um não é a versão radical do outro, são na verdade opostos, embora se encontrem na direita. Embora se encontrem na rejeição à esquerda.

64,5% dos brasileiros bolsonaristas desejam impor valores cristãos à sociedade. 38,3% da direita não-bolsonarista pensa igual.

Uma pesquisa depende de que perguntas se faz. Os líderes políticos da direita brasileira estão, faz menos de dez anos, convivendo com algo que não existiu na Nova República. Uma militância engajada no seu flanco ideológico. Talvez seu problema seja o encanto de encontrar militantes.

O cálculo que os líderes de direita não estão fazendo é outro. Eles partem do princípio de que Jair Bolsonaro é necessário para ter chances de vencer a eleição. Com 38% dos brasileiros claramente de direita, não é. Haverá um candidato de direita no segundo turno.

Mas, se este candidato transformar em sua pauta principal a anistia a Bolsonaro e os generais golpistas, é justamente isso que pode lhes custar a eleição. O Centro, afinal, pode realmente não desejar Lula. Mas, em quem vai libertar Bolsonaro, não vota.

Amamos odiar ‘Vale Tudo’

Gente, como pode o Afonso desaparecer da trama por três dias? E o que é essa Heleninha mexendo no cabelo sem parar? Nossa, a Consuelo está insuportável! Por que transformaram o Ivan num completo cretino? Vão deixar o corpo da Ana Clara lá no chão mesmo? E esse merchand totalmente fora de hora, meu deus?

Falar mal de uma novela, de seus atores, das escolhas dos autores e diretores, do rumo da trama — taí um esporte nacional apaixonante e antigo.

Comentar passionalmente as novelas já era atividade rotineira nos anos 1980 e 1990 (são os que eu me lembro mais), quando as obras eram originais e tudo era surpresa. As pessoas falavam, bem e mal, da obra da vez no trabalho, nas reuniões familiares, nos bares, e compravam revistas especializadas em televisão para não perder um lance sequer — não à toa o “Quem matou Odete Roitman?” tomou a proporção que tomou. O caldo cultural em que boa parte do Brasil se criou tem as novelas como tempero. Odiá-las e amá-las é parte fundadora da nossa visão de país e mundo.

Só que andava fora de moda. Os streamings atropelaram a produção doméstica, a atenção se diversificou, fazia tempo que uma novela não fisgava tanto o público mais amplo. Mas Vale Tudo, o remake, retomou essa tradição. E contou com uma ajudinha estratégica e contemporânea para isso.

Porque, quando se trata do remake de um dos maiores sucessos da teledramaturgia brasileira, a maledicência é exercício inescapável e delicioso. Comparar atuações e contextos históricos, sempre privilegiando os elogios à versão original, seja por nostalgia ou por ela ter sido realmente mais feliz, é um baita azeite conversacional de noveleiros contumazes ou ocasionais. E a emissora escolher produzir um remake desse sucesso estrondoso passa por essa certeza.

A ajudinha tem a ver com uma ferramenta nova do maldizer: as redes sociais. Elas transformam a escala e o alcance do esporte da crítica às novelas. O que era papo interpessoal vira onda de fãs x haters. E me parece que Manuela Dias, a autora do remake, que vêm recebendo as críticas mais vorazes, e a Globo entenderam que poderiam usar isso a seu favor.

Parte fundamental do engajamento nas redes, sabemos, é despertar emoções e, preferencialmente, as de raiva, indignação, repulsa. O amor e o humor também engajam. Só que menos e de formas mais sutis.

Muitas das pessoas que estavam desligadas do mundo das novelas decidiram acompanhar Vale Tudo a partir da interação com os cortes no Instagram e no TikTok. Foram “dragadas” (sic) para a trama, para usar um termo da moda, porque começaram a sentir raiva quando viam as comparações com a original. Outras obras já haviam tentado aumentar sua audiência via redes, mas falharam. Não despertavam tantas emoções. Nisso, Vale Tudo arrebentou.

Então, a autora escolheu colocar uma das vilãs principais como influencer, com perfil “verdadeiro” nas redes e tudo; incorporar a pira dos bebês reborn no roteiro; e produzir um texto cheio de sacadas perfeitas para cortes curtos, ágeis, dignos da linguagem dos reels.

Por um lado, engaja. Por outro, reduz atuações e pedaços inteiros do enredo a relances, a cacos. Uma querida amiga jornalista, a Gabriela Sá Pessoa, comentou disso — no Instagram, onde mais? —, de como a Vale Tudo original era retrato de um Brasil se habituando à noção de uma Constituição cidadã e de liberdade de expressão. E de como o remake é retrato dessa economia da atenção fragmentada, pensada para engajar e, ato contínuo, gerar publi. Grana. Tornou-se a novela de maior faturamento da história da Globo.

É uma sacada muito feliz essa da Gabi. E eu dou esse passo além: mais do que engajar para gerar publi, a novela parece ter escolhido engajar via raiva para se justificar. As pessoas amam odiar Vale Tudo. Amam contar como saltam pedaços inteiros do capítulo na Globoplay só para ver Odete reinando. Amam descer a lenha na Raquel, no Ivan, no Vasco. Amam ver Chico Barney e seus comentários ácidos e lacradores sobre cada furo no roteiro. Amam assistir para xingar com propriedade.

Eu tenho várias defesas a fazer da novela. As atuações, em boa parte, estão ótimas — a Odete de Deborah Bloch, que parecia saída de uma esquete de TV Pirata no começo, ganhou corpo de performance de uma vida. Suas falas são redondas, as frases, icônicas. A Heleninha de Paolla Oliveira superou os trejeitos capilares e entregou alguns dos momentos mais emocionantes da trama, sem dúvida. A dupla César/Olavo está candidatíssima a um spin-off, assim como o duo Marco Aurélio/Freitas. Malu Galli conseguiu transformar Celina em detestável e charmosérrima. Também tenho várias críticas. O que fizeram com Luís Melo e Matheus Nacthergaele, dois dos maiores atores de palco deste país, é de doer — embora seja bem fiel aos personagens e às interpretações de 1988. Bella Campos está infinitamente menor do que o papel que ocupou.

O que eu não tenho como fazer é ficar indiferente a Vale Tudo. Fui tragada pelo rage bait, pela sede de falar mal, pelo engajamento fácil de Instagram? Fui. Mas isso reacendeu minha vontade de ver novela brasileira? Também. Não é pouca coisa para 2025. Sentirei saudade.

Em tempo: Ivan deveria morrer no lugar da Odete.

Tudo sobre meu pai

Ignácio de Loyola Brandão está com 89 anos e mais de 60 deles dedicou às palavras. Passando dos 40 livros publicados, é daqueles escritores que merecem a cadeira que ocupa na Academia Brasileira de Letras — a de número 11. Quem leu suas obras, ou acompanhou as centenas de crônicas que publicou ao longo da vida, entre elas um lindo conto de Natal publicado aqui neste Meio no último dezembro, sente uma proximidade com esse personagem que saiu de Araraquara, no interior de São Paulo, para fazer carreira nas principais redações do país.

Mesmo com tantas pistas deixadas, ainda há muitas histórias a se contar sobre esse escritor prolífico, de rara sensibilidade e imaginação. Alguém que foi dos experimentos mais radicais, como o romance quase cubista  Zero, denúncia dos anos de chumbo da ditadura brasileira escrita com um estilo singular, aos livros mais autobiográficos, como A Veia Bailarina, publicado em 1997, em que medita sobre a dança com a morte depois da descoberta de um aneurisma cerebral.

Uma dessas histórias é a de que, no fundo, antes de ser escritor ele queria mesmo era fazer cinema. Nesse sentido, o documentário Não Sei Viver Sem Palavras — que estreia hoje no Festival do Rio e depois tem sua primeira sessão paulista na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo —, dirigido por seu filho André Brandão, dá novas pistas para entender o universo do escritor a partir de entrevistas recentes, filmagens caseiras e reflexões sobre seus textos, que dão contornos a sua vida e obra, mas também falam de uma relação entre pai e filho. Conversei com André sobre como foi estrear no cinema contando uma história tão particular e tão universal. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Como nasce a ideia de fazer um filme sobre o seu pai?

Eu tinha acabado de me separar e estava para fazer um projeto de documentário sobre resíduos sólidos em grandes cidades do mundo. Teria de viajar para cidades como Tóquio, Estocolmo, Nova York e, como não queria alugar uma casa antes dessas viagens, fui morar com meu pai. Veio a pandemia e acabei ficando por lá. Decidi transformar aquela experiência de estar com 45 anos morando na casa do pai em um projeto legal. Peguei o meu telefone e comecei a filmar o nosso cotidiano por algumas semanas. Eu e meu sócio [Ricardo] Carioba [codiretor do filme] estávamos à procura do nosso primeiro filme, começamos a conversar e percebemos que aquilo poderia se tornar algo maior. Nesse ponto, falei com a Luana Furquim, da Prosperidade Content, a mesma do filme do lixo e com quem já havíamos feito outros projetos, para serem coprodutores. Isso porque também queria ter o André Collazzo e a Vivian Brito como corroteiristas. A gente começou a mergulhar no universo do meu pai e a se dar conta que que tinha um filme legal a ser feito.

O filme vai um pouco além de só contar a história de vida do seu pai, não?

Ele tem muito da vida e da história dele, da carreira, dos desejos, mas ele invariavelmente tem uma camada da nossa relação. Desde o começo, a gente desenvolveu a ideia de que teriam três camadas. Uma é a vida dele e o mundo em que ele vive, porque nasceu em 1936 e segue com a gente. Então viveu esse momento de muita transformação, estando muito próximo das coisas que aconteceram. E quando ele não estava, inventava que estava. A segunda é a obra dele, e tem toda a discussão sobre autoficção, porque muito do que ele escreveu estava diretamente conectado às suas experiências de vida. E a gente quis trazer elementos dos livros para ilustrar essa conexão. E a outra parte é justamente a da nossa relação de pai e filho, que foi a discussão mais longeva dentro do processo do filme.

Quais eram as discussões?

Justamente o quanto a gente iria entrar nisso. Por um lado, um filho fazendo um documentário sobre um pai escritor traz uma singularidade para o filme. Por outro lado, até que ponto deveria ir? Porque também não é um Elena, da Petra Costa, não é uma DR ou uma questão que eu precisava resolver. Teve até uma coisa curiosa, o [Ricardo] Calil [diretor de documentários] esteve próximo no começo do processo e me perguntou: “André, eu fiquei curioso aqui, você deve ter uma relação muito boa com o seu pai. Qual é o conflito do filme?”. E eu respondi: “Não sei tem um conflito nesse lugar”. [risos] A gente entra numa conversa sobre a dureza masculina, que passa de geração para geração e que não foi diferente na minha família. Também um pouco sobre a relação dele com a gente, sobre educação, sobre o quanto ele esteve próximo ou não da gente. Mas não chega a ser um conflito, e a gente ficou equilibrando esses lugares. O Carioba sempre advogou que tinha de ser mais sobre a literatura, sobre o Loyola, já o Collazzo estava na outra ponta, querendo explorar a relação de pai e filho, mas encontramos um meio-termo. No filme, essa nossa parte íntima é relativamente pequena, mas traz uma intensidade grande. E tem uma outra coisa muito relevante para mim que é ser um filho terminando um filme que o pai começou.

Como assim?

Meu pai sempre quis fazer cinema e nunca fez. Ele queria ser roteirista, não escritor. Foi para Roma em 1963 com 27 anos e lá ele só mexeu com roteiros. Sempre viveu no mundo do cinema, conviveu com pessoas do cinema, mas nunca fez um filme. Ele tinha uma Super 8 e filmou muito nos anos 70 e começo dos 80. Coisas íntimas, a gente crescendo, São Paulo, filmou o meu nascimento. As imagens dele e o texto dele são a essência desse documentário.

Entre elas estão alguma imagens incríveis de quando ele morou em Berlim.

São umas imagens preciosas. Ele ficou dois anos em Berlim, entre 1982 e 1983, para fazer um projeto. Foi um período que o marcou muito e também marcou bastante a minha infância. Porque quando ele foi para Berlim, eu fui para Campo Grande [no Mato Grosso, com a mãe]. E foi um período que ele estava distante, mas mandava cartas com um monte de brincadeiras, cartões coloridos, coisas de papelaria, e as cartas dele eram sempre uma alegria.

As filmagens em Araraquara foram um jeito de ficcionalizar o passado usando as palavras dele?

Quis levá-lo para os lugares importantes para a história, para a infância dele. A gente fez uma entrevista na plataforma da estação de trem de Araraquara, que já está desativada e é importante por várias razões. A minha família era toda ferroviária, meu avô foi chefe daquela estação, e também tem o trem como símbolo de ir embora. A gente fez uma entrevista na Biblioteca Municipal de Araraquara, que já não é o mesmo prédio, mas foi onde ele passou a adolescência. Mas tem também esse ponto de que, para ele, realidade e ficção são coisas completamente misturadas, inseparáveis. E isso é uma questão que me acompanha desde sempre, e hoje a gente está perdendo completamente a noção da diferença entre realidade e ficção, o que torna essa discussão bastante atual.

Seu pai tem um lado político muito forte, inclusive política ecológica em Não Verás País Nenhum. Como isso transparece no filme?

Os livros que a gente mais cita no filme são o Zero e o Não Verás. Um momento importante do filme é quando ele conta a história do Zero. A redação passou a ter um censor que dizia o que podia e o que não podia ser publicado, e meu pai começou a guardar tudo o que tinha sido censurado. E tinha uma pilha de dois metros em casa com esses textos. Um dia a [atriz] Ítala Nandi foi à casa dele e perguntou o que era aquele monte. Quando ele respondeu, ela disse: “Isso é um livro, Ignácio”. Foi a faísca para começar o processo que, no filme, ele descreve como um documentário sobre tempos tenebrosos. E a história do Não Verás também é interessante. Porque nasce dessa sensibilidade simbólica. Tinha um ipê na rua onde ele morava em Perdizes e certo dia ele morreu. O grupo de vizinhos pergunta à dona da casa que fica em frente à árvore o que tinha acontecido e ela diz que havia envenenado o ipê porque ele sujava o seu jardim com suas flores malditas. Foi o estopim para ele imaginar um país, um mundo sem árvores do Não Verás. A política era presente, mas sempre partir da observação e da imaginação.

As entrevistas completas de O Julgamento do Século estão disponíveis no streaming do Meio. A Senadora Eliziane Gama, o general Fernando Soares, a presidente do STM, Maria Elizabeth Rocha, o interventor Ricardo Cappelli, entre outros, costuram os bastidores e desdobramentos que levaram à condenação de Jair Bolsonaro e aliados. Aproveite o fim de semana para assistir a esses registros históricos.

Do espaço à mesa, tudo é do interesse nos assinantes do Meio, mas, no fim das contas, o bolso é sempre prioridade. Confira as notas mais clicadas da semana:

1. Globo: Câmara aprova isenção de IR até R$ 5 mil: veja como o projeto mexe no seu bolso.

2. CNN Brasil: Prêmio de melhor fotografia de pássaros revela mundo natural inspirador.

3. CNN: Planeta errante tem taxa de crescimento recorde de 6,6 bilhões de toneladas por segundo.

4. Panelinha: Arais de grão-de-bico, a versão vegetariana do tradicional sanduíche armênio de carne.

5. Meio: No Ponto de Partida, Pedro Doria comenta a psicologia por trás dos soluços de Jair Bolsonaro.

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