Edição de Sábado: Dois pra lá, dois pra cá

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No Nordeste, 91,4% das pessoas ganham até R$ 5 mil. No Norte, o percentual é de 85,1%. No Sudeste, que “parece rico”, são 72,3%. No Sul, “que também parece rico”, 70,8%. E, no Centro-Oeste, 68,6%. Os dados são do levantamento Brasil em Mapas, baseado na PNAD Contínua do IBGE. O presidente Lula (PT) recorreu a esses números ontem, em São Paulo. No palco montado no Centro de Convenções Rebouças, durante a cerimônia de lançamento de um novo modelo de crédito imobiliário, voltado a ampliar o acesso da classe média à casa própria, o petista discursava ligeiramente mais enfurecido do que o habitual. Tentava desenhar o Brasil e a camada para a qual direciona a maioria de suas políticas. E preparava o terreno para avançar contra o Legislativo.
Ao lado dele, dois rostos diretamente envolvidos na crise recente entre Planalto e Congresso: o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o deputado Carlos Zarattini (PT-SP), relator da Medida Provisória (MP) 1.303, derrotada dois dias antes no Congresso. “Não é possível a gente achar que quem ganha R$ 5 mil é classe média. Não é possível. Se o cara paga aluguel e tem um filho na escola, mal e porcamente sobra pra ele comer. É esse país que nós estamos governando”, disse o presidente.
O bote veio em seguida. “E é esse mesmo país para o qual a gente envia um projeto de lei, depois de acordado no Congresso Nacional, para que pessoas que ganham acima de R$ 600 mil, acima de R$ 1 milhão, paguem uma merrequinha a mais. Para que fintechs paguem um pouco mais, para que as bets paguem um pouco mais. E sabe o que acontece? Eles votam contra. Esse dinheiro poderia garantir um pouco mais de política de inclusão social”, disparou Lula.
Haddad, que havia protagonizado as negociações da MP nos bastidores, também aproveitou o microfone para desenhar — desta vez, o que o Planalto entende estar verdadeiramente por trás da derrota: “Não se ganha eleição sabotando o país, não se ganha eleição impedindo o governo de fazer o bem. Nós vamos seguir nossa vida, vamos seguir nosso curso e entregar um Brasil muito melhor”.
O revés para o governo veio na noite de quarta-feira, na Câmara dos Deputados, mesmo “depois de acordado no Congresso Nacional”. Ainda reverberava a ressaca, o ressentimento sobre a queda da medida que tributava aplicações financeiras e ativos virtuais. Apresentada como alternativa ao aumento do IOF (alta derrubada pelo Congresso, mas restabelecida parcialmente no Supremo Tribunal Federal), a MP era tratada como essencial para o equilíbrio das contas do próximo ano. A expectativa de arrecadação era de R$ 10,5 bilhões só em 2025. E o dobro disso em 2026. E aí está a chave de tudo, na leitura do governo. Para além do mérito da MP, bastante criticada por diferentes setores da economia e do mercado, o Planalto credita o insucesso imposto pelo Centrão e a oposição na Câmara ao jogo eleitoral do ano que vem.
Uma valsa de tropeços
Ainda era junho quando o governo, acuado pela reação ao decreto que elevava o IOF, decidiu recalibrar a rota. Na linha de frente, Fernando Haddad começou a costurar uma alternativa. Conversou com líderes partidários, com os presidentes das duas Casas, com ministros. A intenção era aliviar a pressão, conter a sangria política e econômica provocada pelo desgaste. Mas o acordo político nunca criou raiz.
Antes mesmo de a proposta existir formalmente, seus contornos já suscitaram reações. O texto ainda nem tinha sido protocolado — o envio oficial ao Congresso só veio no dia 11 de junho — e as frentes parlamentares do setor produtivo já se contrapunham. O agronegócio subiu o tom contra a ideia de taxar fundos e títulos ligados à atividade. Os setores imobiliário e de infraestrutura engrossaram o coro. O lobby das bets atuou forte. O barulho cresceu. Enquanto as bancadas pressionavam, o texto descansava nas gavetas da Câmara.
Diferente de um projeto de lei, a medida provisória é um instrumento com força de lei mas editado exclusivamente pelo presidente da República e com efeito imediato. Como o nome diz, tem prazo de validade. E, para se tornar lei de forma definitiva, precisa passar pelo crivo do Congresso em um trâmite especial. O prazo inicial para análise é de 60 dias, prorrogáveis por mais 60. O processo começa em uma comissão mista, formada por deputados e senadores. Se aprovada, a MP segue para votação na Câmara e, em seguida, no Senado. Com o aval das duas Casas, é convertida em lei. Se o prazo se esgota, a MP caduca.
Pois foi só na terça-feira agora, dia 7 de outubro, a menos de 24 horas da caducidade da MP, que a tramitação finalmente avançou — o que já diz muito da forma como o Planalto vem conduzindo essa dança descompassada com o Congresso. A MP passou pela comissão mista por um fio: 13 votos a 12, depois de três adiamentos e uma sequência de negociações. O caminho só se abriu após uma força-tarefa com nomes graúdos: além do próprio Haddad, sentaram à mesa o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, o presidente da comissão, Renan Calheiros (MDB), os líderes governistas Lindbergh Farias (PT) e o senador Randolfe Rodrigues (PT), além do relator da medida, Zarattini. Oficialmente, buscavam “esclarecer os impasses”. Na prática, avaliavam concessões.
E foram muitas. A proposta original começou a encolher tal qual roupa lavada em água quente. Sumiram os fundos do agro, saíram as debêntures incentivadas. As letras de crédito — LCIs, LCAs e LCDs — mantiveram a isenção, como queria o setor produtivo. Até as bets alcançaram o que pediam: a alíquota, que o governo pretendia elevar para 18%, permaneceria em 12%. A estimativa de arrecadação já murchara para R$ 17 bilhões.
Na outra ponta, quem articulava era a Secretaria de Relações Institucionais, de Gleisi Hoffmann. “Por incrível que pareça, pela primeira vez, vi o governo preocupado e articulado para aprovar uma matéria”, relatou o líder do PL na Câmara, deputado Sóstenes Cavalcante — de quem não se costuma ouvir esse tipo de elogio. Sóstenes conta que recebeu ligações diretas do secretário especial de Assuntos Parlamentares, André Ceciliano, braço direito de Hoffmann, tentando reverter indicações do PL na comissão. Já se tratava de uma reação porque a coreografia era disputada. A oposição se movia habilmente.
Antes da ligação de Ceciliano, segundo Sóstenes, líderes do Centrão o procuraram pedindo que substituísse dois deputados do próprio partido, aqueles mais “suscetíveis” ao Planalto, por nomes que votassem contra a medida. E assim ele fez. “Me autoescalei. Fiz as contas e achei que a gente poderia ganhar por dois. Mas perdemos por um voto. Aí a gente viu a articulação do governo.” Articulação que não se sustentou por muito tempo. Arrastou-se até o plenário da Câmara, onde expirou.
O tombo
O relógio corria. No dia seguinte à apertada vitória na comissão mista — já na quarta-feira, data marcada para a caducidade da MP — a Câmara virou palco de pressa e tropeço. No Salão Verde, no plenário, nos corredores, parlamentares circulavam numa dança descompassada. Deputados do PT se juntavam em uma “reunião de última hora”. Mas, de acordo com interlocutores, àquela altura, quem tentava mesmo salvar o texto nem eram mais cabeças do governo, mas o líder do MDB na Casa, Isnaldo Bulhões.
“Estão oferecendo emenda, principalmente para a saúde, mas ninguém acredita mais”, desabafou um emedebista. Outro, do Republicanos, foi mais direto: o que emperrava o processo não era o conteúdo da medida, mas a lentidão. Lentidão para negociar, para fazer a matéria andar, para liberar as emendas prometidas. Corroborando o colega, dizia ser impossível acreditar que o dinheiro sairia antes que o calendário eleitoral apertasse de vez, já que existem pagamentos atrasados desde 2023.
Ah, o ano eleitoral. Parlamentares de diferentes siglas já murmuravam que votariam contra — não por discordarem do mérito da proposta, mas pelo risco político: a MP, com potencial arrecadatório bilionário, era vista como um cheque antecipado nas mãos de um governo que buscará a reeleição em 2026. E ninguém queria ser o fiador.
Ainda assim, no plenário, o relator Carlos Zarattini tentou um último movimento. Reafirmou que a medida havia sido negociada com líderes do Congresso e redesenhada pelo governo. Ressaltou que a arrecadação era necessária para garantir a meta de superávit de 0,25% em 2026 — e que esse equilíbrio fiscal era condição para reduzir os juros, destravar o crédito e impulsionar a economia. Mas já não falava só de técnica. De antemão, lamentou a virada política e apontou o dedo para fora da Câmara.
“Nós fizemos esse trabalho, não foi da minha cabeça. Foi ouvindo todos os setores produtivos e dialogando, nesta Casa, com todos os deputados e deputadas que quiseram dialogar. Buscamos atender a todos e todas. No entanto, senhor presidente, nós sentimos muito a interferência puramente política, com o único objetivo, que é eleitoral, do governador do estado de São Paulo, que se mobilizou, mobilizou presidentes de partido, para que houvesse uma nova visão sobre essa MP”, acusou Zarattini.
A história não era nova. Já circulava a informação de que o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) pegara o telefone e ligara para dezenas de deputados, numa tentativa de derrubar a medida. Tarcísio negou veementemente. Mas a MP, de fato, caiu. Por 251 votos a 193, o plenário aprovou a retirada do texto da pauta da Câmara. Como não havia mais tempo, ela caducou.
Da tribuna, Sóstenes Cavalcante não economizou elogios: “Eu queria agradecer a alguns governadores, que trabalharam muito, nesta noite. Governador Tarcísio, de São Paulo, que inclusive já foi atacado na outra tribuna porque começam a se preocupar com o Tarcísio. (...) Governador Tarcísio, receba, do alto da tribuna da Câmara dos Deputados, o nosso reconhecimento, a nossa gratidão por todo o seu empenho.”
Quando as emoções se acalmaram, Sóstenes voltou atrás. Disse que a mídia e a militância entenderam errado, pegaram apenas um corte de sua fala. Explicou que Tarcísio não ajudou, veja bem, que ele apenas pediu auxilio ao governador para falar com o presidente do Republicanos, Marcos Pereira, já que não estava conseguindo contato. Afirmou, inclusive, que nem sabe se Tarcísio efetivamente ligou para Pereira. E que pretendia, na verdade, agradecer a todos os governadores aliados, mas teve um “lapso de memória”. Se sua memória falha, a do governo custará a esquecer a derrota — ainda mais no momento em que ela veio. O Planalto surfava uma onda positiva depois de meses em queda. A oposição e o Centrão lhe deram um caldo.
A maré boa
Noutra quarta-feira, a mesma ameaça. Outra medida provisória, também cara ao Palácio do Planalto, caminhava para o fim da linha no Congresso. Por um instante, tudo indicava que a história se repetiria — mesmo roteiro, mesmo abismo. Mas, dessa vez, o desfecho foi outro.
O que parecia prestes a caducar ganhou fôlego nas últimas horas. Durante um almoço no Palácio da Alvorada, Lula entrou em cena. Pediu pessoalmente ao presidente da Câmara, Hugo Motta, que pautasse a proposta que ampliava a isenção nas contas de luz. Pedido aceito. O resultado veio rápido — e folgado: 423 votos a favor, 36 contrários. Em poucas horas, o texto chegou ao Senado, onde passou com igual facilidade: 49 votos a 3, com 3 abstenções. Nesta quarta-feira de derrota, o texto daquela vitória foi sancionado.
A votação expressiva só não superou a empolgação provocada por outro tema sensível — e estratégico — para o Planalto: a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil. A proposta, que patinava na Câmara sob a relatoria de Arthur Lira (PP-AL), acabou se tornando palco de um duelo silencioso entre dois caciques alagoanos. Diante da paralisia do deputado, o senador Renan Calheiros (MDB) tomou a dianteira. Aprovou um texto semelhante na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado e, com isso, aumentou a pressão sobre a Casa vizinha.
Funcionou. Para não ficar atrás, a Câmara acelerou. No início do mês, aprovou por unanimidade o projeto de lei que isenta do IR quem recebe até R$ 5 mil e concede descontos a quem ganha até R$ 7.350. A proposta (PL 1.087/25), enviada pelo próprio governo, agora avança para o Senado, onde a tendência é de aprovação tranquila — dado o histórico recente.
Duas pautas de aumento de benefícios para largas parcelas da população, duas pautas em que o Centrão aceita ser sócio para colher alguns louros. “Não foram vitórias do governo. O ano que vem é eleitoral”, reconheceu um deputado. “Nenhum parlamentar quer se queimar com a base votando contra projetos populares, que aliviam o bolso do eleitor.”A pauta em que há aumento de impostos para setores fortes não goza do mesmo prestígio.
As vitórias acumuladas pelo Planalto recentemente não vieram de sua articulação com o Legislativo. O discurso de Lula, aliás, tem sido o de antagonismo com a Câmara desde o ressurgimento do mote de “ricos x pobres” meses atrás, colocando os parlamentares do lado dos ricos. O slogan ganhou força com o comportamento adotado pelos próprios deputados, particularmente na iniciativa grotesca da PEC da Blindagem. Após manifestações populares — encabeçadas pela esquerda, mas que atraíram apoios de diferentes matizes ideológicos — a PEC foi enterrada. O mesmo pode acontecer com a proposta de anistia, em banho-maria e rebatizada de “PL da dosimetria”.
A maré seguiu favorável ao governo depois da conversa de Lula com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. As pesquisas refletiram o bom momento, oferecendo um leve respiro para uma gestão que vinha acumulando índices desfavoráveis.
Mas, se as boas notícias deram trégua temporária, a maré pode mudar rapidamente — afinal, estamos a um ano da eleição e muito está em jogo. O Planalto busca planos alternativos para preencher o rombo deixado pela derrubada da MP 1.303. Fala-se, sobretudo, em cortar emendas parlamentares. A cada dia rumo a outubro de 2026, a liberação de emendas se torna uma ferramenta menos eficaz, relatam parlamentares. O que importa, daqui pra frente, até mais que o dinheiro, é que os políticos tomem lado. Ainda está cedo para tomá-lo. Mas os cálculos estão sendo feitos.
Trump queria, mas María levou
A venezuelana María Corina Machado seguiu o roteiro esperado de todo laureado pelo Comitê Norueguês. Quando soube de sua vitória do Nobel da Paz, demonstrou surpresa e declarou não ter palavras para expressar o que sentia naquele momento. Passado o choque, a líder inconteste da oposição ao chavismo afirmou que o prêmio deveria ser dedicado, na verdade, a todos os venezuelanos que lutam contra a opressão e as injustiças de um governo autoritário liderado por Nicolás Maduro. Em seguida, Machado recorreu às redes sociais para dedicar sua conquista ao presidente americano, Donald Trump, a quem classificou como um dos principais apoiadores da luta venezuelana pela democracia.
Ambígua sobre uma intervenção militar americana na Venezuela para depor o regime chavista que controla o país há 26 anos, María Corina sabia, ou soube logo nas primeiras horas da manhã, que Trump ansiava mais do que tudo pelo Nobel da Paz de 2025. Ela, assim como grande parte da comunidade internacional, reconheceu que o prêmio se tornara uma obsessão para o presidente dos EUA, uma obsessão que tem moldado a geopolítica mundial em tempos de instabilidade e incerteza. Entre os resultados dela está o acordo de paz entre Israel e Hamas alcançado esta semana.
Em Washington, a notícia de que María Corina Machado havia conquistado o Nobel da Paz não foi bem recebida. Logo pela manhã, o porta-voz da Casa Branca, Steven Cheung, usou as redes sociais para criticar a decisão do Comitê. “O Comitê Nobel provou que prioriza a política acima da paz”, escreveu no X. No mesmo post, deixou claro que a escolha de María Corina havia incomodado seu chefe na Casa Branca, sem mencionar, no entanto, o nome da política venezuelana, uma das mais importantes aliadas dos Estados Unidos na América do Sul. “Trump continuará fazendo acordos de paz, encerrando guerras e salvando vidas. Ele tem o coração de um humanitário, e nunca haverá ninguém como ele, capaz de mover montanhas com a força de sua vontade”, completou.
Trump fez pressão inédita sobre os noruegueses para garantir o Nobel da Paz. Há poucos meses, o presidente ligou para Jens Stoltenberg, atual ministro das Finanças da Noruega e ex-secretário-geral da OTAN, deixando claro que contava com a premiação. Na conversa, Trump mencionou o desejo de discutir com Stoltenberg as tarifas contra a Noruega, além do próprio Nobel da Paz, numa atitude que se assemelha ao que fez com o Brasil ao pressionar o Planalto para evitar o julgamento de Jair Bolsonaro. Nas semanas seguintes, emissários da Casa Branca sinalizaram aos líderes noruegueses que os Estados Unidos poderiam considerar a Noruega como “inimiga” caso Trump não fosse o escolhido.
A escolha de María Corina parece ser uma confluência de fatores que marcaram a premiação deste ano. A nomeação de uma mulher que se opõe a um regime ditatorial em desalinho com os interesses ocidentais está em sintonia com o histórico recente de laureados com o Nobel da Paz. Ao mesmo tempo, a escolha reforça a relação entre a política externa norueguesa e as estratégias dos Estados Unidos, concedendo um dos prêmios mais prestigiosos do mundo a uma das poucas aliadas de Trump na América do Sul — um continente cético quanto ao retorno da Doutrina Monroe, defendida pelo presidente americano.
Entre 1901 e 2001, o Comitê Norueguês concedeu o Nobel da Paz a apenas nove mulheres. Homens brancos, especialmente europeus, receberam a honraria 79 vezes no mesmo período. Com as crescentes pressões por equidade de gênero, o Comitê passou a ser mais receptivo às candidaturas femininas a partir dos anos 2000. Entre 2002 e 2025, dez mulheres conquistaram o prêmio. Quase todas, como María Corina, se destacaram por sua luta contra regimes ditatoriais contrários aos interesses ocidentais, enfrentando o Irã, o Talibã, o Estado Islâmico e a Rússia. Regimes totalitários aliados ao Ocidente, como a Arábia Saudita, El Salvador ou o Egito, não têm se saído bem nas últimas edições do prêmio. Essa tendência aponta para um alinhamento crescente do Comitê com causas que, de alguma forma, reforçam ao status quo geopolítico ocidental.
María Corina é uma aliada antiga dos Estados Unidos. É descendente das elites venezuelanas que se uniram aos americanos ainda na década de 1920 para explorar o petróleo farto do país. Ao longo dos 80 anos seguintes, a Venezuela estreitou seus laços com os EUA ao ponto de o beisebol ser o esporte nacional do país. A chegada de Hugo Chávez ao poder em 1999 rompeu o controle dessa elite sobre a única fonte de riqueza da Venezuela no último século, a PDVSA, a estatal petrolífera.
Ao longo dos anos, María Corina e seu grupo político se posicionaram entre as alas mais radicais da oposição ao chavismo, buscando apoio internacional para uma mudança de regime. Considerada uma figura de linha dura, ela foi consolidando sua influência interna à medida que outras lideranças políticas venezuelanas deixavam o país. Mesmo impedida de disputar as eleições presidenciais de 2024, ela liderou um movimento de oposição que venceu Maduro nas urnas, mas não levou por conta das fraudes eleitorais. Desde então, sua aliança com Donald Trump se intensificou.
Poucos nomes deveriam agradar tanto o presidente americano quanto María Corina Machado. Ainda assim, sua escolha parece ter incomodado Washington pelo simples fato de o Nobel da Paz não ser de Trump.
Sabores amazônicos
Na 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, a COP30 — que acontecerá de 10 a 21 de novembro em Belém (PA) —, a chef de cozinha Bel Coelho vai lançar o livro Floresta na Boca: Amazônia — Pessoas, Paisagens e Alimentos, acompanhado de um documentário. Ambos retratam uma viagem feita pelo Pará para entender não só os modos de produção de alimentos na região, mas também a maneira como as pessoas vivem e se relacionam com a terra e o turismo, trazendo histórias de personagens encontradas rio adentro. E também receitas.
A Amazônia paraense é só a primeira perna desse projeto ambicioso de mapear os biomas brasileiros, seguindo esse tripé humano, geográfico e gastronômico. Feito de forma independente por Bel, a maneira de colocar o projeto de pé foi ir diretamente atrás de quem investisse na ideia e juntar uma série de profissionais, como a fotógrafa e diretora Carol Quintanilha, a fotógrafa Lari Lopez, a jornalista Janaina Fidalgo e a ilustradora e a produtora executiva Marina Aranha. O livro foi financiado pelo Instituto Arapyaú e realizado em parceria com a Reenvolver. Já o filme é apoiado pela Open Society Foundation, pelo Instituto Imbuzeiro e pelo Google
O projeto tem uma sequência garantida: o bioma da Caatinga. Mas antes Bel precisa encontrar formas de distribuir o doc, depois de ele ser mostrado em Belém. “Como corremos para fazer o filme para a COP30, ainda nem pensamos na distribuição”, disse a chef na conversa que tivemos por videochamada. O longa foi inscrito no Sundance e, depois da resposta do festival de cinema dos EUA, Bel tentará levá-lo para o streaming.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Qual é o desejo político por trás do livro e do filme que serão lançados na COP30?
Eles nascem com uma vontade de trazer luz e atenção para essa causa socioambiental que utiliza a cultura alimentar e a gastronomia como ferramenta aliada. Lançar na COP30 não foi necessariamente um desejo meu, mas aconteceu porque os institutos que financiaram o projeto pediram. E eu acho propício porque tanto o livro quanto o documentário são formatos interessantes pra gente comunicar essas causas. É mostrar que a conservação de biodiversidade, do meio ambiente no Brasil, sobretudo na Amazônia, depende das pessoas que vivem lá e que convivem de forma razoavelmente harmônica, que produzem riqueza sem desmatar.
No livro você traz a questão do açaí, hoje quase monocultura. O que viu de diferente na Amazônia desta vez?
Existe uma fragilidade entre a conservação de fato e a exploração. A gente segue ainda nessa contradição, nessa dicotomia de como é contribuir para a bioeconomia local, sem explorar de forma nociva para o meio ambiente e para as comunidades que vivem lá. É a minha preocupação constante, e por isso eu falo muito que a conservação de biodiversidade, do meio ambiente e da cultura estão aliadas. Então, eu chego em Altamira (PA), que é meio epicentro de várias questões ambientais e de ocupação de terra, e é igual a Goiânia (GO), igual às cidades do interior de São Paulo, muito ditada por uma estética agro. Isso vem junto com uma devastação que é da cultura também. Quando o povo tem sua cultura conservada e autoestima, que percebe ser muito muito valiosa, vai lutar por ela e também pelo meio ambiente, precisa estar sempre atrelado. Não acredito na conservação como preservação intacta. A gente fecha a Amazônia, ou grandes extensões de terra e deixa lá. O Brasil não consegue, enquanto Estado, controlar nem as reservas que tem. Então imagina se a gente cercasse? Eu realmente acredito na mão humana que sabe conviver com a floresta de forma harmônica, e têm muitos povos que ainda sabem.
Como foi a geografia humana que você encontrou para fazer o livro?
Quando a gente está falando de migração de trabalhadores, eles têm dificuldades, obviamente. Porque a floresta é muito imponente, desafiadora para quem não vivia lá. Por exemplo, a gente visitou a família do Dema [Ademir Federicci], era um ativista que denunciava grileiros e madeireiros ilegais e foi assassinado com um tiro na boca, dormindo do lado da sua esposa, com um bebê no berço no quarto, na Transamazônica. Assim como vários outros ativistas morreram de forma brutal. Mas aí a dona Maria, contando a história dela, diz que ficou com três filhos e que, embora já estivesse produzindo cacau, ainda era tudo muito novo. Quando a causa é coletiva, nunca é só sobre uma família, um núcleo, seja em povos originários, seja em agricultores, familiares, ribeirinhos.
Algum grupo chamou mais a atenção?
Uma coisa que notei é o papel da mulher. Eu sei que eu sou feminista, já tenho esse olhar, mas a mulher tem um papel sistêmico na Amazônia, e acho que em outros biomas também, porque elas já têm esse olhar coletivo. Não sei se por uma questão cultural nossa, se por uma questão biológica, ou talvez por uma percepção mais aguçada de que se acabar com aquilo tudo vai dar alguma grande merda, uma intuição. Não que não tenham homens assim, tiveram dois homens que estão no livro, produtores de cacau de sombra no sistema cabruca, que são poetas da agricultura, que pensam a produção do que for, açaí ou cacau, de forma sistêmica.
Do que você visitou, os plantios mais interessantes estão em regime de agrofloresta?
Sim, e o extrativista é mais floresta ainda. Por exemplo, a castanha do Pará, lá no rio Novo, no rio Iriri, no médio Xingu, está numa reserva extrativista. É mata fechada, então não tem quase desmatamento, é um serviço ambiental. Eu falo que não é uma economia circular. A gente tinha que encontrar uma forma, com investimento internacional e interno, para que esses povos sigam ali nesses modos de vida que são de nosso interesse. Agora, só comprar a castanha do Pará ou só beneficiá-la talvez não seja suficiente, mas ajude. A gastronomia pode ser uma grande aliada, mas a gente precisa de muito mais.
Em que sentido?
Precisa de turismo de base comunitária, um turismo ecológico, mesmo que seja de luxo, mas que seja um turismo consciente. Ele já existe, mas eu acho que a gente pode explorar isso melhor, sendo incentivado pelo Ministério do Turismo. A malha aérea precisa melhorar. E aí eu não estou falando só da Amazônia, mas também da Caatinga. Esses biomas precisam de investimento e incentivo. E o turismo consciente, ecológico, pode ser um outro aliado importante, que leve riqueza para as comunidades seguirem lá. E a gastronomia também.
E você traz também receitas no livro. São coisas que você aprendeu lá?
Tem três receitas minhas. As outras são de pessoas locais, e são receitas muito simples, algumas até que só dá para fazer lá, tipo o mingau de crueira, uma farinha que é quase um resto que não se usa para vender, mas é uma delícia. Tem muita receita interessante assim, que é de subsistência. As minhas têm técnicas um pouco mais complexas, mas não muito, para que as pessoas possam fazer em casa e usar esses produtos. Consumir esses ingredientes é uma forma de fortalecer não só essas cadeias produtivas, mas também despertar a curiosidade de ir até lá, de visitar, de levar recursos também para essas regiões. Mais do que as receitas, a gente criou um glossário falando dos ingredientes, que eu acho que era importante.
Por quê?
Eu não tenho mais nenhuma vontade de fazer um livro de receitas mais autocentradas do meu eu criativo, e não estou aqui julgando os outros chefs. Claro que eu já admirei, claro que quando eu vejo técnica em um prato falo: “Nossa, que incrível”. Mas não deixa de ser tão excludente aquele prato virar tipo uma obra de arte que ninguém quase consegue consumir ou reproduzir. Acho hoje em dia muito desconectado com o que é o Brasil. A comida está no nosso dia a dia, precisa ser um pouco mais descomplicada e acessível. E enxergo muito mais o alimento como esse aliado de algumas causas e também como um amálgama para as relações humanas. A gente vive os melhores momentos das nossas vidas em volta de uma mesa ou em volta de um prato de comida. As melhores conversas, as melhores risadas. Tudo bem que eu sou muito ligada nisso, mas acho que muita gente é também.
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3. Meio: Pedro Doria analisa no Ponto de Partida os movimentos das pesquisas sobre o presidente Lula e o governador Tarcísio de Freitas.
4. Meio: O Compara Pesquisas, ferramenta agregadora de dados do Meio em parceria com o Instituto Ideia.
5. UOL: Como votou cada parlamentar na derrubada da MP alternativa ao aumento do IOF.