Edição de Sábado: Na linha de tiro

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Era só mais uma inspeção de rotina. Em novembro de 2020, um ônibus foi parado pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) na altura de Vitória da Conquista, no sudoeste da Bahia. O asfalto quente, o entra e sai de passageiros, o cheiro de diesel, nada indicava que ali começaria uma das maiores investigações sobre tráfico internacional de armas do país. Entre as cargas comuns, 23 pistolas, dois fuzis, carregadores e munições.
À primeira vista, parecia mais uma apreensão grande, importante, mas que ainda sim terminaria como tantas outras: prende-se o portador, registra-se o flagrante, o suspeito é acusado e o caso segue seu curso na Justiça. Mas um detalhe destoava. As pistolas eram HS Produkt, de fabricação croata. Os fuzis, LA-15. Armas novíssimas, que raramente aparecem nas rotas do contrabando popular. O Serviço de Repressão ao Tráfico de Armas da Polícia Federal foi acionado. Mesmo com os números de série raspados, a perícia identificou a origem: a importadora paraguaia International Auto Supply (IAS-PY). A partir daí, os agentes decidiram seguir a trilha daquelas armas. O que encontraram foi uma rede que atravessava continentes.
Consultando bancos de dados, a PF descobriu que armas ligadas à IAS haviam sido apreendidas em vários estados brasileiros. Com apoio de polícias civis e unidades regionais, o padrão se confirmou: armas legais que saíam da Europa com destino ao Paraguai, e que recaíam nas mãos de facções brasileiras. No centro do esquema estava Diego Hernan Dirísio, o argentino conhecido como “Senhor das Armas” — dono da IAS, responsável por importar legalmente armamentos do Leste Europeu e da Turquia.
No Paraguai, suas equipes “santizavam” as armas: apagavam números de série e marcas de origem. O núcleo de logística recrutava motoristas e passageiros de ônibus, que cruzavam a fronteira com compartimentos falsos, cargas mistas e malas duplas. No Brasil, o destino final era conhecido: Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital (PCC).
Em três anos, a empresa importou cerca de 43 mil armas. No Complexo do Alemão, dominado pelo CV, quem cuidava das negociações com os vendedores da IAS era Fhillip da Silva Gregório, o vulgo “Professor”, um dos chefes do tráfico na região, que mantinha também negócios com oficiais da PM do Rio. Numa transação de julho de 2021, um fuzil saiu por US$ 3.900 (cerca de R$ 20 mil), com mais US$ 300 (R$ 1.560) pelo chamado “serviço de limpeza”, a raspagem dos números de série. As armas eram enviadas em remessas que podiam chegar a US$ 80 mil, o equivalente a R$ 416 mil.
Em dezembro do ano passado, ao anunciar o balanço da Dakovo — batizada em referência a uma cidadezinha croata, berço das pistolas HS Produkt — o então ministro da Justiça Flávio Dino comemorou. “Nessa operação não houve sequer um tiro, nem bala perdida e nem inocentes mortos. Ela foi baseada na inteligência”, disse em coletiva à imprensa. Em junho deste ano, o “Professor", um dos maiores compradores de armamentos, morreu com um tiro na cabeça — e a polícia diz ter sido suicídio já que ele apresentava apenas um ferimento na têmpora.
Quatro meses depois, na última terça-feira, a Operação Contenção nos Complexos da Penha e do Alemão deixou 121 mortos – entre eles, 15 alvos de mandados de prisão –, cumpriu 20 dessas 100 ordens judiciais, prendeu 113, e apreendeu 91 fuzis. Alguns provenientes dos exércitos da Venezuela, da Argentina, do Peru e do próprio Brasil. Questionado, o Exército Brasileiro não se manifestou. Para a polícia, muitas dessas armas seguiram a mesma trilha: cruzaram oceanos, passaram pelo Paraguai e encontraram destino nos braços dos “soldados do CV”.
Os poros do crime
A linha invisível que separa Brasil e Paraguai se estende ao longo de 1.365 quilômetros. É mais do que a distância entre São Paulo e Brasília. Em meio a florestas, fazendas e cidades divididas por nada além de uma rua, um rio ou uma ponte, esta linha corta dois estados brasileiros: Paraná e Mato Grosso do Sul. É uma das fronteiras mais porosas da América do Sul.
Entre as rotas mais antigas de contrabando está a fronteira seca que separa Pedro Juan Caballero, no Paraguai, de Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul. Ali, o vaivém é constante: carros, motos e pedestres cruzam de um lado a outro sem grandes barreiras. Há décadas, o trecho serve tanto ao comércio informal quanto ao contrabando — e, por isso, é alvo recorrente de operações das forças de segurança.
Mais ao sul, na Tríplice Fronteira, Ciudad del Este e Foz do Iguaçu se espelham às margens do rio Paraná. O fluxo intenso de pessoas e mercadorias faz dali um dos principais corredores ilegais do continente, onde o tráfego de armas e drogas se mistura ao comércio legal. Em Salto del Guairá, no nordeste do Paraguai, na divisa com o oeste do Paraná, o mesmo movimento se repete, e se espalha por cidades como Guaíra e Mundo Novo, já em território brasileiro.
Nos últimos anos, os corredores do sudoeste do Mato Grosso do Sul, entre Porto Murtinho, no Brasil, e Carmelo Peralta, no Paraguai, passaram a se integrar a esse traçado. A região, antes isolada, começa a mudar com a construção da Rota Bioceânica, projeto que ligará o Atlântico ao Pacífico por meio de novas pontes e rodovias. Um avanço logístico que promete impulsionar o comércio legal, mas que também desperta a atenção de investigadores: novas estradas costumam abrir novos caminhos para o contrabando e o tráfico de armas.
As travessias, no entanto, não se dão só pelas estradas. Rios e céus também são rota. A Hidrovia Paraguai–Paraná abriga um fluxo intenso de embarcações que transportam grãos, combustíveis e, às vezes, cargas ilegais em meio aos contêineres. Do alto, aviões leves cruzam a fronteira a partir de pistas clandestinas espalhadas pelo interior.
Mais ao norte, na floresta Amazônica, outro corredor silencioso. Na tríplice fronteira formada pelas cidades de Tabatinga (Brasil), Letícia (Colômbia) e Santa Rosa (Peru), o rio Solimões é a principal via de entrada de armas e drogas. As embarcações pequenas cruzam fronteiras abertas entre Colômbia, Peru e Brasil, levando cargas que seguem até Manaus e se espalham pelo país.
“Os fluxos, conhecidos como rotas, estão razoavelmente estáveis há 40 anos”, explica Jacqueline de Oliveira Muniz, professora da UFF e ex-diretora da Secretaria de Segurança Pública do RJ. “Só que nessas rotas, você tem pequenos traçados, né? Que vão se alterando, se ajustando em função das brechas encontradas.”
Essas brechas surgem tanto por razões geográficas quanto institucionais. No terreno, o desafio é evidente: “dentro da floresta amazônica, ou do Pantanal, é outra forma de prover policiamento e controle. Eu estou lidando com florestas densas, alagados, igarapés”, diz Muniz. Por isso, “em vez de o criminoso parar no aeroporto clandestino em tal pedaço do Peru, da Amazônia Internacional, eu mudo para outro ponto”. As rotas se movem conforme o ambiente e a capacidade do Estado de alcançá-las.
Mas há também as brechas abertas pelo próprio poder público. “Nada entra e sai de um país sem o carimbo audaz do Estado. Quem oferece, quem dá o carimbo do CNPJ do crime é o Estado. O Estado, sim, opera como uma agência reguladora do crime na democracia, tanto para o bem, para desmantelá-lo, quanto para o mal, no sentido de organizá-lo”, afirma Muniz.
O controle das fronteiras brasileiras forma um mosaico de forças que se sobrepõem, que juntam forças. A Polícia Federal é responsável pelo fluxo de pessoas e pelas investigações de tráfico e contrabando, coordenando operações baseadas em inteligência e cruzamento de dados. A Receita Federal atua nos postos alfandegários, abrindo caminhões, inspecionando contêineres e tentando conter o contrabando de mercadorias e armas. Nas estradas que cortam o interior, a Polícia Rodoviária Federal reforça a vigilância: para caminhões, confere documentos e intercepta cargas que escaparam do controle na fronteira.
O Exército mantém presença na chamada “faixa de fronteira”, uma zona de 150 quilômetros que acompanha todo o limite do território nacional, com bases fixas e ações pontuais de patrulhamento. Já as polícias militares dos estados tentam cobrir o que sobra, as travessias improvisadas, os caminhos de terra.
Muniz ressalta que o problema surge quando partes dessa corrente se rompem por “convivência, conveniência e conivência” de agentes públicos. Aqueles que cobram uma taxa para deixar a carga ilegal passar, os que já têm acordos com criminosos, ou simplesmente os que escolhem fechar os olhos.
Outro fator decisivo para a travessia: o conhecimento do território. “Por isso, para o crime, a importância do enraizamento comunitário, do controle, do domínio territorial armado. Porque isso te dá vantagens logísticas de exploração econômica, exploração política e estabilidade para sua firma criminal.”
Após a megaoperação desta semana, os países vizinhos anunciaram reforço nas medidas de segurança. Não para conter o tráfico de armas, mas para evitar uma possível “debandada” de criminosos brasileiros. Argentina, Paraguai, Bolívia e Uruguai declararam alerta máximo nas áreas de fronteira.
Mercado doméstico
Só no Rio, 797 fuzis de estilo militar, 37 submetralhadoras e 13 metralhadoras foram retirados de circulação em 2023. No conjunto dos estados do Sudeste, esse tipo de armamento cresceu 11,4% nas estatísticas entre 2019 e 2023 — de 1.494 para 1.665 unidades.
Entre os fuzis recolhidos no Alemão nesta semana, predominam os calibres 5.56 e 7.62 — os mesmos que lideraram as apreensões no Rio entre 2019 e 2023. Um estudo do Instituto Sou da Paz mostra que, nesse período, três em cada quatro armas de estilo militar apreendidas no estado eram fuzis nesses calibres.
Não é coincidência: são calibres amplamente usados por polícias e forças armadas e que, nos últimos anos, devido à flexibilização da licença de CACs (Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador), passaram a circular com mais facilidade também no mercado civil — o que, na prática, multiplica as brechas para desvios. “A gente sabe que tem também um novo fluxo. Não estou dizendo que todo CAC compra uma arma para repassar para o crime organizado. Mas é uma nova fonte, porque é uma arma a que se facilitou o acesso”, explica Carolina Ricardo, diretora-executiva do Sou da Paz. “A partir de então, você pode comprar quantidades enormes de armas, de alta potência, aqui dentro do país mesmo, e repassar isso para o crime.” Como exemplo, ela cita o caso de Eduardo Bazzana, dono de um clube de tiro em São Paulo que, segundo investigações, recebeu mais de R$ 1,6 milhão em repasses vinculados à facção.
Os registros de compra reforçam essa ligação entre o mercado legal e o ilegal. Durante o governo Bolsonaro, foram cadastradas 22.467 armas nesses calibres. Entre as de 5.56, domina a plataforma AR. E entre os fabricantes que mais aparecem nas apreensões estão Colt, Imbel e Taurus — Colt e Taurus com modelos no padrão AR, e a Imbel com o IA2, nome frequente nas listas da polícia. Ao avaliar o saldo de 91 fuzis apreendidos na megaoperação desta semana, Carolina diz que “olhando o total de apreensões de 2023, 91 é um número alto. Então, tem ali um prejuízo para o crime organizado. Mas a gente não tem a garantia de que novos fuzis não vão chegar à mão do crime, porque não há nenhuma medida estruturante para asfixiar o fluxo de chegada da arma. Também não temos garantia do que vai ser feito com os fuzis apreendidos, porque muitas vezes eles simplesmente retornam para as ruas.”
Outra via de abastecimento nacional são as fábricas clandestinas de fuzis — peças importadas que chegam ao país e são usadas aqui para adaptar armas menos potentes ou para criar novas. “Chegam muitas peças dos Estados Unidos, um país com leis frágeis nesse sentido. São peças que podem chegar pelo correio.” Sem fiscalização específica, esses componentes entram como qualquer encomenda. “Chega no porto de Santos, por exemplo. Lá, tem um monte de contêiner. Então, é uma fiscalização aleatória. Tem polícia, mas não é uma fiscalização específica para olhar arma. É geral”, analisa Carolina Ricardo.
Coisa de duas semanas atrás uma operação da Polícia Federal desbaratou uma organização criminosa que fabricava fuzis e fornecia até 3,5 mil armas por ano para as facções do Rio. Num apartamento luxuoso na Barra da Tijuca, com o casal que liderava o bando, foram apreendidos quase R$ 160 mil — e a Justiça ainda determinou o bloqueio de R$ 40 milhões em bens dos investigados. Dois meses antes, a PF já havia encontrado uma fabriqueta do grupo, em Santa Bárbara d’Oeste, e apreendidos fuzi já montados e mais de 30 mil peças e componentes para a montagem de dezenas de outras armas. A PF relata que o grupo criminoso importava componentes de fuzis dos EUA e da China.
Mas a rota doméstica mais tradicional, conhecida e usada é o desvio de armamento de dentro das próprias forças de segurança. Para Muniz, que chefiou algumas delas, repasses de fuzis por policiais corruptos é um negócio lucrativo para quem facilita a saída do equipamento. Também em agosto deste ano, por exemplo, a Justiça aceitou a denúncia de um tenente-coronel responsável por fiscalizar armas no Rio que era parte de um esquema de desvio de armamentos — e chegou a pagar um serviço de marcenaria com uma carabina, três pistolas e um revólver. Em dois anos, a polícia recuperou quase 500 armas desviadas pelo grupo.
Mas ela ressalta que a arma não é de fácil utilização pelos criminosos. “O fuzil é assustador, grande, todo mundo sabe que aquela bala vai voar”, diz a gestora, e por isso é desejado pelo crime. Ocorre que, apesar do alcance — muitos modelos lançam projéteis a cerca de 1 km —, os fuzis têm baixa mobilidade em combates urbanos. “São pesados. Você não consegue correr, subir viela, pular laje, saltar numa quebrada, sair correndo em espaços exíguos com um fuzil na mão.” Na avaliação dela, é possível que grande parte dos fuzis recolhidos na megaoperação tenham sido abandonados pelos criminosos durante a fuga.
A difusão do armamento também exige transmissão de técnica e tática. “Além de adquirir esse material, ele demanda um outro tipo de capacitação, de treinamento. Quem está fornecendo esse know-how? Quem está fazendo a transmissão de conhecimento?”, questiona Leonardo Silva, pesquisador sênior do Fórum de Segurança Pública. “São táticas operacionais empregadas por forças de segurança, forças de defesa”, completa.
A tecnologia ampliou ainda mais esse repertório. Além de componentes impressos em 3D usados na fabricação artesanal de fuzis, a operação registrou o uso de drones modificados para lançar granadas. Silva ressalta, porém, que “não são drones militares”: trata-se de um aparelho comercial, ao qual foi acoplado um dispositivo de garra vendido em marketplaces como a AliExpress — adaptações baratas e eficazes, que desafiam a capacidade de resposta das forças de segurança.
Viver com elas
Crescido no Complexo do Alemão, o fotógrafo Bruno Itan há anos registra o cotidiano das favelas — e diz que o arsenal do crime já não causa espanto. “Desde os anos 2000, eu entro e saio da favela vendo criminosos armados. Isso não é novidade. A gente vê arma de grosso calibre, de pequeno calibre. Então, tipo assim, pra gente, é normal.” Itan conta que muitos jovens já sabem identificar os diferentes tipos de fuzil, “linha AK”, “aérea”, “parafuso”. “A gente já conhece tudo. A realidade é essa, não adianta.” Desta vez, ele fotografou a operação na própria comunidade. Não consegue esquecer do cheiro. “O cheiro de sangue não sai da minha narina.”
Dos 91 fuzis apreendidos na terça, 88 já estão guardados em uma sala da Cidade da Polícia, na Zona Norte do Rio. Os três restantes ainda vão chegar. Depois, todas as armas passarão por perícia para tentar descobrir de onde vieram e por quais caminhos entraram no país. As que estiverem em bom estado devem acabar reforçando o próprio arsenal da polícia. Itan vaticina: “Vou te falar, essas armas vão ser devolvidas, vão revender tudo de volta. É isso que acontece”.
Drones e um futuro ainda mais violento
Os dois drones operados por integrantes do Comando Vermelho até tentaram, mas, em muitas medidas, fracassaram no ataque contra os policiais que iniciavam a megaoperação que deixou mais de 120 mortos no Rio esta semana. Não foram capazes de causar grande prejuízo às forças policiais nem mudar o curso da ação. Eram modelos comuns, do tipo usado para filmagem e fotografia, adaptados às pressas com pequenas garras produzidas em impressoras 3D para lançar granadas à distância. Na prática, serviram mais para gerar boas imagens — registradas pelos próprios policiais com seus celulares — do que para causar qualquer dano real.
Ainda assim, a cena marca uma daquelas linhas simbólicas que serão lembradas no futuro como mais um passo na longa e turbulenta história da violência no Rio. Algo comparável ao momento, em novembro de 1989, quando o então governador Moreira Franco exibiu diante das câmeras o primeiro fuzil de assalto AR-15 apreendido na cidade. Naquele tempo, a presença da arma era vista como um episódio isolado, quase uma curiosidade trágica.
Trinta e cinco anos depois, a escala mudou. Na operação desta semana, mais de 100 fuzis foram apreendidos sem causar muito espanto. O rifle de assalto virou parte do cenário das favelas cariocas — tão onipresente quanto os bailes funk, as pipas no céu e o campinho de terra onde crianças jogam bola.
O uso de drones por forças policiais para atacar criminosos, como armas, ainda é raro. No Haiti, onde o governo praticamente perdeu o controle sobre o Estado eles têm sido usados. No Brasil, tanto as policiais estaduais quanto a Polícia Federal usam drones para vigilância e monitoramento de forma regular.
Os drones usados pelo crime organizado podem ter sido amadores e ineficientes, mas representam o início de outra inflexão: a entrada, mesmo que precária, de tecnologias de guerra contemporânea na disputa armada urbana. Foi um gesto rudimentar, quase improvisado — e, justamente por isso, um aviso. Esse é o começo de uma nova fase — uma fase em que a violência urbana se pareça cada vez mais com o ambiente de uma guerra moderna.
A forma como se luta uma guerra se transformou profundamente nesta última década. Até 2015, conflitos eram definidos por artilharia, confrontos a curta distância com armas leves, explosivos improvisados e ataques aéreos com jatos ou drones militares do tamanho de pequenos aviões, como os Reapers americanos. Em 2022, quando a Rússia invadiu a Ucrânia, tanques, obuses e veículos blindados ainda simbolizavam superioridade bélica. As guerras caminhavam para armamentos cada vez mais caros, sofisticados e restritos às grandes potências.
Eu me lembro do espanto ao ver integrantes do Estado Islâmico produzindo drones artesanalmente para lançar granadas contra o Exército iraquiano. Estávamos às margens do Rio Tigre quando ouvimos o zumbido — mais alto, mais próximo. Os soldados que acompanhávamos entraram em pânico, disparando contra o céu e mandando que buscássemos abrigo. Minutos depois, duas granadas explodiram perto de nós. Era 2016 e, como agora no Rio, os drones ainda eram tratados como uma excentricidade, não como ameaça real.
Isso mudou. Com a entrada massiva de drones baratos e simples, muitas vezes montados em casas destruídas a poucos quilômetros do front, o campo de batalha foi transformado. Brinquedos de US$ 300 se tornaram capazes de destruir tanques Abrams americanos de US$ 20 milhões. Dos 31 Abrams enviados à Ucrânia, menos de uma dúzia segue operando hoje. Estima-se que Rússia e Ucrânia tenham produzido e usado cerca de 8 milhões de drones até o final de 2025 — o equivalente a mais de 10 mil drones sobrevoando o front diariamente. Quem está na linha de frente não duvida desse número.
Os drones — quase todos movidos por pequenos motores elétricos chineses — mudaram como se mata, como se morre e como se fere. Até 2023, cerca de 70% das baixas eram causadas por artilharia clássica, como o obuseiro soviético Akatsiya, que dispara munição de 152mm, um calibre quase incompatível com os 155mm ocidentais. Enquanto a Rússia expandia sua produção, o Ocidente nem fabricava mais essas munições, consideradas obsoletas.
No início de 2023, acompanhei soldados ucranianos no front. A situação era desesperadora. “Podemos fazer 11 disparos por dia e eles fazem uma centena. É impossível”, me disse Andrey, comandante de uma peça de artilharia. Na época, era possível chegar à “linha zero” e ficar a um ou dois quilômetros dos russos. Snipers e tanques eram o maior risco. Hoje, soldados dizem que é como se houvesse mil snipers no céu.
Agora, no quase final de 2025, 80% das mortes, ferimentos ou amputações são causados por pequenos drones. Tropas não se movimentam em conjunto, tanques não operam durante o dia, e todo soldado carrega um aparelho para detectar sinais de drones. A zona da morte ampliou-se: se antes ela começava a dois ou três quilômetros do front, hoje chegar a 10 ou 15 km já é entrar em altíssimo risco. Dos jornalistas e soldados que conheci ao longo de mais de uma década na Ucrânia, todos os que morreram este ano foram atingidos por drones.
O que assusta nesses aparelhos de 300g ou 500g é sua capacidade de carregar explosivos devastadores. As versões FPV (First Person View) entram em túneis e lançam granadas termobáricas, que incendeiam o oxigênio instantaneamente. E o custo de centenas deles é menor do que um único AR-15 — e sua fabricação pode ser caseira, com uma impressora 3D.
A tentativa do Comando Vermelho falhou nesta semana. Mas deixou claro que os criminosos brasileiros estão atentos ao que acontece não só na Ucrânia, mas também em Myanmar, no Sudão, na Síria e no México, onde cartéis já usam drones para atacar inimigos. As duas granadas lançadas no Rio são um sinal de que a guerra moderna pode estar chegando aos conflitos urbanos. Vale lembrar: em uma guerra, o que menos mata são balas de fuzil. O que mata é o que explode.
Existe vida além do Spotify
“O que eles chamam de lealdade e fidelidade, eu chamo de letargia do hábito ou falta de imaginação.” Lembrei dessa frase irônica de O Retrato de Dorian Gray, do Oscar Wilde, ao repassar a minha própria procrastinação em relação ao uso do Spotify. Como num casamento em crise, há anos eu já não estava totalmente feliz com a minha opção de ter migrado para o serviço de streaming sueco. Coisa que fiz 2015, depois que a Rdio, minha noiva preferencial, foi vendida para a Pandora e me deixou na rua da amargura. Como sempre fui um pouco glutão, à época o Spotify parecia a melhor opção, com seu catálogo que só crescia e um plano familiar que atendia bem às minhas necessidades de pai de três meninos criados numa dieta musical farta.
Ao longo dos anos, confesso que fui ficando menos feliz. Mas já estava enredado naquele universo e, como num casamento morno, preferia ignorar alguns defeitos do meu parceiro. Mudar parecia custoso, difícil e sem grandes vantagens. Assim fui relevando a baixa qualidade dos streamings, o crescimento do jabá na plataforma, as indicações que não tinham nada a ver com o meu gosto musical, a baixa remuneração dos artistas, coisa, aliás, que já havia sido denunciada por músicos que admiro, como Neil Young e Thom Yorke, e por outros que respeito, como Taylor Swift. Em que pese o fato de que os três chegaram a retirar suas músicas da plataforma e depois voltaram atrás.
Essa história, inclusive, está em um dos livros mais interessantes sobre a indústria da música lançados neste ano, Mood Machine, da jornalista Liz Pelly. O livro define o Spotify como uma empresa de tecnologia e publicidade focada em maximizar o engajamento através do consumo passivo, transformando a música em conteúdo utilitário para preencher momentos cotidianos, o que ela astutamente batizou de neo-Muzak. Conta das estratégias de corte de custos com royalties, que passam pela inclusão em playlists de música genérica e barata feita por “artistas fantasmas”, incluindo aí criações com inteligência artificial, sem que o devido crédito seja dado. E ainda mostra como funciona o sistema de remuneração e o uso do Discovery Mode, espécie de jabá digital em que artistas têm de aceitar uma redução nos royalties em troca de promoção pelos algoritmos, reforçando a dependência da plataforma e a exploração do trabalho criativo.
Como cubro música há muitos anos, nada disso era novidade para mim, mas o que me fez decidir partir para o divórcio foi um sentimento mais profundo de traição. Música é possivelmente a paixão mais viva que cultivo e, ao saber que o CEO do Spotify, Daniel Ek, havia investido € 600 milhões de na startup militar alemã Helsing, que usa inteligência artificial para “defesa”, decidi que o Spotify não precisava mais da minha assinatura familiar. Uma questão íntima de consciência. Meu amor pela música é tão intenso quanto meu horror pela guerra.
Não fui o único. Neste ano, alguns artistas que admiro seguiram o mesmo caminho. A banda indie californiana Deerhoof anunciou a retirada das suas músicas do catálogo em junho, seguido nos meses posteriores pela turma experimental do Xio Xio, pela banda psicodélica australiana King Gizzard & The Lizard Wizard, pelo grupo de pós-rock canadense Godspeed You Black Emperor! e pelos os papas do trip hop Massive Attack.
Em outubro, o movimento anti-Spotify ganhou mais fôlego com a plataforma rodando campanhas de anúncio de recrutamento para o ICE, polícia dos serviços de imigração e fronteiras dos Estados Unidos, que tem sido a face mais brutal da escalada do governo Trump contra imigrantes. Se bem que, para fazer justiça, Max e Pandora também rodaram os anúncios em suas plataformas.
Hoje o Spotify se consolidou como o maior serviço de streaming do mundo. Dados deste semestre mostram a sua posição em primeiro lugar com 696 milhões de usuários ativos mensais e 276 milhões de assinantes. Mas existe vida além do Spotify, e a migração é bem tranquila. Em dez anos de uso intenso, eu havia acumulado um número gigantesco de playlists e músicas favoritas e, ao migrar para o Tidal, que foi o serviço que escolhi por conta da qualidade do áudio e do pagamento dos artistas, menos de 10% da minha biblioteca musical foi perdida no processo.
Neste ponto vale lembrar que, se perdi um tanto na migração, ganhei acesso a músicas que não estavam no catálogo do Spotify. Pensando em ajudar quem também gostaria de fazer essa travessia, segue uma lista dos serviços de streaming de música com as informações mais relevantes para os seus ouvidos, seu bolso e sua consciência.
Aqui o foco são concorrentes diretos do Spotify, mas vale lembrar que existem serviços complementares. O Soundcloud continua sendo uma das melhores alternativas para descobrir artistas novos, que ainda não chegaram ao streaming, e o Bandcamp é a melhor opção para quem quer comprar música e remunerar decentemente os artistas pela sua produção no mundo digital.
Vamos à lista:
Amazon Music
Embora quem seja assinante do Amazon Prime ganhe uma versão gratuita do Amazon Music, ele não é um serviço muito utilizado por aqui, mesmo com um acervo de mais de 100 milhões de músicas. Em termos de qualidade de áudio, disponibiliza todo o seu catálogo em qualidade HD e Ultra HD (superior à de CD) para assinantes de planos pagos. São dois planos mensais. O individual (R$ 21,90) e o família (R$ 34,90). Para o artista, paga US$ 0,004 por stream.
Apple Music
Para usuários de iPhone, é uma boa opção. Também tem um catálogo de mais de 100 milhões de músicas. A qualidade do áudio é um ponto alto, pois oferece Lossless Audio (qualidade de CD ou superior) e Spatial Audio sem custo adicional em todos os seus planos. São três planos mensais. O individual (R$ 21,90), o família (R$ 34,90) e o universitário (R$ 11,90). Para o artista, paga US$ 0,01 por stream.
Deezer
A empresa francesa é a concorrente mais tradicional do Spotify. Tem como estratégia utilizar parcerias de grande escala com operadoras de telecomunicações e outros provedores de serviço para oferecer seu plano Premium de graça. Tem um catálogo de mais de 90 milhões de músicas. Em termos de qualidade, oferece Lossless Audio para assinantes. Tem os planos premium (R$ 24,90) e família (R$ 39,90). Paga US$ 0,0064 por stream.
Qobuz Studio
Outra francesa, mais nova no mercado brasileiro, é das melhores opções tanto em qualidade de áudio como em remuneração para artistas. Oferece mais de 100 milhões de faixas em Lossless Audio e um dos maiores catálogos em alta definição. Os planos são Solo (R$ 21,90), Duo (R$ 29,90), Família (R$ 34,99) e Estudante (R$ 9,99). Paga US$ 0,018 por stream.
Tidal
Fundado por Jaz-Z com a preocupação de remunerar melhor os artistas e oferecer uma boa qualidade de áudio, o Tidal tem um catálogo de mais de 90 milhões de músicas. Em termos de qualidade, compete com o Qobuz Studio, e oferece a qualidade mais alta, incluindo Master Quality (MQA). Os planos são Individual (R$21,90), Família (R$ 34,90) e Estudante (R$ 10,90). Aos artistas, paga US$ 0,0125 por stream.
YouTube Music
É tipicamente citada com uma das taxas mais baixas de remuneração de artistas, estimada em US$ 0,002 por stream. Também tem um catálogo de mais de 100 milhões de músicas, mas a pior qualidade de áudio, chegado a mp3 de 256 kbps. Tem três planos: o Premium (R$ 21,90), o Família (R$ 34,90) e o Estudante (R$ 11,90).
Uma vez escolhido o novo streaming, vale a pena pensar em um assistente para fazer a migração de sua biblioteca e playlists. Existem três serviços pagos semelhantes, o Tune My Music, o Soundiiz e o Free Your Music. Todos oferecem backup das suas playlists na nuvem, e os dois primeiros permitem que você consiga testá-los gratuitamente. Mas se você quiser fazer algo mais pontual, vale pagar apenas um mês e resolver o seu problema de forma mais barata. Aí o melhor é o Tune My Music. E, claro, existe sempre a opção de um começo novo, sem transferir nada. Vai do nível de psicopatia musical da cada um.
Chegou o novo curso de IA do Meio: o Bootcamp 25/26! Diferente de tudo que você viu até agora, essa versão é muito mais mão na massa. E não é à toa. A inteligência artificial mudou radicalmente o jogo, e nosso treinamento mudou junto. Agora você escolhe como adquirir: comprando o curso avulso com 30% de desconto até 5/11 ou fazendo o upgrade para o Plano Premium + Cursos com 20% de desconto. Garanta sua vaga na pré-venda com desconto e mude o jogo.
Parece que foi um ano atrás, mas a semana começou com um encontro caloroso entre Donald Trump e o presidente Lula. Confira os mais clicados pelos leitores:
1. Have I been pwned: O site para checar se seu e-mail foi alvo de vazamento de dados.
2. UOL: O encontro de Lula e Trump, mas contado por memes.
3. Globo: Gráficos que explicam a megaoperação no Rio.
4. Meio: Ponto de Partida — Lula, Trump e Milei entram num bar.
5. g1: Imagens de traficantes fortemente armados antes da operação no Rio.


























