Edição de Sábado: Voto arco-íris

Colocar à frente. Apresentar-se. Exprimir-se em seu nome. Representar é posicionar pessoas em espaços que, até então, elas não ocupavam e promover a defesa de seus direitos. Amanhã, depois de dois anos de hiato pandêmico, a Parada do Orgulho LBGT+ de São Paulo — que já entrou para o Guiness como a maior do mundo — desfilará cores, amores e a luta por respeito, dignidade e pela representatividade política. No ano das eleições mais críticas da Nova República, o tema é a importância do voto.

(O Meio usará a sigla LGBTQIA+ e traz no fim da reportagem um glossário com alguns dos termos usados no texto. Aqui, um link com outras definições e um manual completo de comunicação sobre o tema. Mantemos, porém, o título oficial da Parada, que usa uma versão reduzida da sigla.)

“Além da volta, existe a revolta. As pessoas querem ir para a rua gritar junto com seus iguais”, resume Cláudia Garcia, presidente da Associação da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo (APOLGBT-SP), entidade responsável pela organização do evento que costuma reunir centenas de milhares de pessoas na Avenida Paulista.

A busca por representatividade é a razão da existência das paradas LGBTQIA+ pelo mundo desde sua primeira edição, em 1970, em Nova York. A parada pioneira aconteceu exatamente um ano após a Revolta de Stonewall, quando policiais reprimiram, como de hábito, lésbicas, gays, travestis e transexuais que frequentavam um bar — até que enfrentaram uma resistência inédita. Depois daquela noite de 28 de junho de 1969, houve uma eclosão de protestos pelos Estados Unidos que tinham uma clara e direta mensagem: a partir dali, a comunidade não ia mais se esconder. Desde então, as manifestações recorrentes do mês do Orgulho LGBTQIA+ se espalharam pelo mundo e abriram espaço para um grito que estava abafado em armários. Para que se marche aos olhos de todos e se mostre que há, sim, diversas formas de um ser humano ser.

A maior parada brasileira chega a sua 26ª edição tentando desengasgar a voz de uma comunidade que se viu ameaçada pela pauta reacionária e pela homofobia representadas por Jair Bolsonaro, alçado à presidência da República em 2018. O medo da repressão e de uma possível perda de direitos fez com que muitos cogitassem sair do país e provocou uma corrida de casais homoafetivos aos cartórios, dias após o anúncio do resultado das eleições, para oficializar a união estável.

Esse mesmo temor virou motor para membros da comunidade LGBTQIA+ na busca por mais espaço — e, agora, o alvo é o ambiente político. Representar a comunidade politicamente é a garantia de que direitos já conquistados sigam existindo. E, quiçá, sejam ampliados.

O Congresso Nacional é onde se gestam leis para promover e assegurar a dignidade de todo cidadão brasileiro. Ou onde se deviam gestar.

No Brasil, as principais medidas que reconhecem e defendem pessoas LGBTQIA+ saíram dos poderes Executivo e Judiciário. Nada veio do Legislativo. O casamento civil entre pessoas do mesmo sexo foi firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011 e já é contado no Censo Demográfico. O Supremo derrubou, em 2020, a restrição de doação de sangue por homens homossexuais. A inclusão do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero nos documentos de transexuais e travestis foi fruto de um decreto presidencial de Dilma Rousseff, em 2016. Só então estados e municípios usaram a normativa para definir leis próprias sobre o tema. Hoje, homofobia e transfobia são enquadradas no crime de racismo graças, novamente, a uma decisão de ministros do Supremo. Em 2019, o STF entendeu que houve omissão do Congresso Nacional por não editar uma lei que criminalizasse atos de violência física e verbal contra LGBTs.

A “casa do povo” não tem levado em conta todo o povo. Mudar esse cenário e discutir garantias à população LGBTQIA+ em nível nacional é uma das metas de quem vai buscar uma vaga em Brasília no pleito deste ano. A lista de pré-candidatos ao Congresso já conta com ativistas, celebridades, influenciadores digitais e nomes sólidos na política estadual e municipal. A organização Aliança Nacional LGBTI+ mapeou, até o momento, 125 pré-candidaturas de LGBTQIA+ e aliados para 2022. Se eleitos, alguns desses representantes querem formar uma bancada que possa levar adiante demandas hoje sufocadas pela falta de nomes LGBTQIA+ no Congresso e pela força de grupos mais conservadores.

Com esse ânsia da comunidade, será difícil conter manifestações políticas na Parada do Orgulho de São Paulo, seja de artistas ou do público, a exemplo do que aconteceu em outros eventos culturais como o festival de música Lollapalooza e do Carnaval. Por ser ano eleitoral, a organização do evento adota uma postura de cautela e não quer puxar coro para nenhum nome que estará nas urnas em outubro — um pedido explícito de votos a um determinado candidato fere a legislação eleitoral brasileira neste momento.

“Pessoas progressistas, mesmo sendo brancas e cis, podem combater o racismo, o machismo e a LGBTfobia. Qual é a função da militância? É sensibilizar a sociedade. Precisamos sair da bolha LGBT e formar um parlamento que seja democrata”, diz Cláudia Garcia. “Você tem que escolher pessoas que se preocupem com saúde, emprego e educação, porque isso tem a ver com a gente. É violento ver LGBTs nas ruas despejados, por não ter moradia, emprego. Também temos histórico de pessoas LGBTs que foram eleitas e não ajudaram muito a comunidade.”

Bancada plural

“Necessidade” foi a palavra mais usada por pessoas LGBTQIA+ para justificar a entrada na política, de acordo com uma pesquisa do coletivo #VoteLGBT, formado em 2014 por profissionais de diferentes áreas e com o objetivo de analisar como se dá a representatividade da comunidade no Brasil. Durante o levantamento de um ano, desde maio de 2021, 30 lideranças LGBT+ que passaram pela corrida eleitoral de 2020 foram entrevistadas. Muitas relataram como elementos motivadores para as candidaturas os mais recentes acontecimentos políticos brasileiros — entre eles, a eleição de Bolsonaro — e as vivências e dificuldades que enfrentam por serem lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e todos os outros grupos representados pelo símbolo + na sigla.

“A construção da identidade política começa a partir da construção da própria identidade. Quando você se percebe negro, mulher, LGBT na sociedade e na sua família, é o momento que você acaba tendo que começar a lutar pela sua própria existência. Você precisa se apoiar em outras pessoas, em outros grupos que reconhecem o que você está passando”, diz Evorah Cardoso, professora, doutora em sociologia jurídica pela Universidade de São Paulo (USP) e integrante do coletivo.

Até o momento, nenhum corpo trans ocupou uma cadeira no Congresso Nacional. Atualmente, cinco parlamentares no Senado e na Câmara são assumidamente gay, lésbica ou bissexual. Mas o ano de 2020 foi de ascensão no número de LGBTQIA+ presentes nas urnas. Nas últimas eleições para prefeitos e vereadores, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) mapeou 30 candidaturas trans eleitas, o que representa um aumento de 275% em relação a 2016. Na lista, está Erika Hilton (PSOL), eleita por São Paulo e a vereadora mais votada do Brasil em 2020.

“Quando há representatividade LGBT+ na política, a primeira coisa que a gente faz são os enfrentamentos e o freio nos desmontes de políticas que tenham a ver com as nossas necessidades. Avançar com as políticas é um baita desafio”, diz Erika. Pré-candidata a deputada federal, ela considera lento e dificultoso o processo de dar andamento às pautas da diversidade sexual e de gênero nas casas legislativas. Mas diz que não se sentiu solitária durante o primeiro ano de mandato como vereadora na maior cidade do país. “Tenho conseguido construir um bom diálogo para transitar por esse espaço e para tramitar as minhas pautas da melhor maneira possível, porque eu sei que, na grande maioria das vezes, nós dependemos do colegiado. A minha disposição será também, na Câmara Federal, conseguir dialogar, porque existem pessoas na direita que conseguiram entender que essa é uma pauta importante.”

Historicamente, a pauta LGBTQIA+ é mais vinculada à esquerda, mas não se restringe mais a apenas uma ideologia. De acordo com a pesquisa do #VoteLGBT, nas eleições de 2020 as candidaturas LGBTQIA+ apareceram em 28 dos 33 partidos registrados na época: 65% de esquerda, 22% de centro e outros 13% de direita.

Mari Valentim, arquiteta, vice-presidente do capítulo brasileiro da Ladies of Liberty Association e conselheira do movimento Livres, recebeu um convite do presidente do Cidadania, Roberto Freire, para se lançar pré-candidata a deputada federal pelo Distrito Federal. Mulher transexual assumida publicamente há oito anos, Mari se considera de “centro-direita” e acredita que há sub-representatividade de grupos no Congresso. “Na escadinha, nós (pessoas trans) estamos lá no fim da fila.”

Pelo fato de o Legislativo ainda ser majoritariamente um espaço masculino, branco e heterossexual, a arquiteta acredita que o grande desafio de pessoas trans é normalizar a existência. “Apesar de algumas candidaturas serem legitimadas pelas urnas, esses espaços da política são extremamente áridos. E são mais agressivos ainda com a população trans.” Para Mari, apesar do reacionarismo, o grupo tem avançado ao conquistar, aos poucos, cadeiras na política. “Talvez a eleição do Bolsonaro tenha despertado nessas minorias um sentimento de que nós precisamos, sim, ocupar esses espaços”.

Advogado e suplente da Câmara de Vereadores de Porto Alegre (RS), Juan Savedra (Novo) diz ser um LGBT da direita-liberal. “A minha visão de mundo e a respeito da pauta LGBT é sobretudo uma visão de que cada indivíduo tem as suas próprias características, cada indivíduo é uma soma de características pessoais e de vivências e, por ser um LGBT, eu não preciso necessariamente seguir uma cartilha à esquerda”, justifica.

Com 34 anos, Savedra conta que se assumiu gay para a família aos 18. E, desde 2016, quando ingressou na vida pública, começou a inserir a diversidade na sua trajetória política. “Quando assumi o cargo de vereador como suplente, em 2021, pude falar abertamente sobre como era ser um LGBT e não estar no lado hegemônico da pauta.” Pré-candidato a deputado estadual, ele quer levantar pautas em prol da diversidade na Assembleia Legislativa gaúcha. “Tenho representado muitas pessoas que se identificam comigo e com a minha visão de mundo, e que não se sentem representadas por aquelas pessoas que levantam essa bandeira.”

Na mira

Conquistado o espaço pelo voto, o desafio é seguir na vida pública em meio a ameaças e investidas violentas dentro das casas legislativas e dos próprios partidos. A vereadora trans Benny Briolly (PSOL) precisou sair do Brasil por um período após uma ameaça de morte pedindo que renunciasse ao mandato que ocupa em Niterói (RJ). Hoje, ela anda de carro blindado pela cidade. No mês passado, foi chamada de “aberração da natureza” pelo deputado estadual Rodrigo Amorim (PTB-RJ), bolsonarista que ajudou, em outubro de 2018, a quebrar uma placa que batizava uma rua com o nome da vereadora Marielle Franco (PSOL). Marielle, executada a tiros no Rio de Janeiro em março do mesmo ano, era lésbica e defendia as pautas LGBTQIA+ e de outras minorias.

Em 2021, a ex-vereadora Madalena Leite foi assassinada aos 64 anos em Piracicaba (SP). De acordo com a polícia, o crime teria sido motivado pela liderança comunitária de Madalena na cidade. Em 2012, ela foi a primeira travesti a ocupar uma cadeira na Câmara do município paulista.

Na pesquisa do #VoteLGBT, 49% das candidaturas de 2020 afirmaram que sofreram ataques por sua orientação sexual e 29% foram violentadas por conta da identidade de gênero. Dos casos de violência relatados aos partidos, a maioria das legendas (56%) não fez absolutamente nada.

Dentro da comunidade, há um entendimento de que a presença LGBTQIA+ na política incomoda. E um temor de que candidatos da comunidade possam ser usados pelos partidos para garantir mais votos em um sistema de eleições proporcionais, que leva em conta o quociente eleitoral, número mágico que define quantas cadeiras o partido irá ocupar. “Os partidos querem que os candidatos tragam votos. Quando você traz votos, significa que o partido está mais próximo de atingir o quociente eleitoral. Mas não necessariamente eles querem que você ocupe a cadeira”, explica a professora Evorah Cardoso.

Nesse contexto, candidaturas LGBTQIA+ sofrem para conseguir dinheiro das legendas para bancar as campanhas. “Quem é que define quais são as candidaturas que vão receber o dinheiro e quanto cada uma vai ganhar? São as lideranças partidárias, na maioria composta por homens, brancos e heterossexuais”, acrescenta Evorah.

Ao mapear as eleições de 2020, a pesquisa descobriu que candidaturas LGBTQIA+ recebem menos de 6% da verba total de que os partidos dispõem, estabelecida pela Justiça Eleitoral. Em cidades com mais de 500 mil habitantes, os investimentos dos partidos não passam de 2%. Legendas à esquerda investem duas vezes mais do que partidos de centro e direta somados. “Os votos LGBT são os mais baratos dos partidos”, lamenta Evorah. Organizações a favor da diversidade começaram a dar suporte para pessoas LGBTQIA+ que vão estar nas urnas em outubro, oferecendo cursos e plataformas de financiamento coletivo.

O nome na urna

As eleições de 2022 são consideradas cruciais, porque podem consolidar um crescente movimento que, nos últimos pleitos, colocou corpos LGBTQIA+ em espaços legislativos até então não ocupados por quem veste a colorida bandeira da diversidade. Mas a mini reforma eleitoral aprovada pelo Congresso em 2021 e com regras válidas já para esse ano são consideradas “catastróficas e aterrorizantes” para quem luta por uma política mais plural, segundo a doutora em sociologia política Evorah Cardoso.

Neste ano, o número de candidaturas que cada partido poderá lançar foi reduzido pela metade em relação às eleições de 2018. Além disso, as federações partidárias também acabaram causando uma escassez de vagas. “A federação partidária conta como se fosse um partido só em termos de limite de candidaturas. Então, em uma federação partidária com três partidos, por exemplo, significa na prática que eles vão ter metade da quantidade que um partido poderia lançar anteriormente e ainda dividido por três”, explica.

Uma menor quantidade de vagas vai certamente impactar nas candidaturas LGBTQIA+ para 2022, afirma a professora e ativista. “A gente estava ganhando porque existiam vagas suficientes para entrar na urna. Quem fazia o resto era a população, que começou a considerar importante votar em LGBTs, negros, mulheres… E agora que o nome provavelmente nem vai estar na urna?”.

A ideia de coletivos como o #VoteLGBT é pressionar as executivas dos partidos para que garantam candidaturas LGBTQIA+ nessas eleições. E também fazer um alerta para a Justiça Eleitoral, já que a legislação brasileira não obriga os partidos a ter uma cota mínima de LGBTQIA+ no rol de candidatos, como ocorre com as mulheres.

Outro ponto falho é no que diz respeito à captação de dados. No Brasil, a orientação sexual e a identidade de gênero dos brasileiros ainda não fazem parte das perguntas do Censo Demográfico, realizado a cada 10 anos. Uma nova edição será conduzida pelo IBGE a partir da segunda metade de 2022 e possivelmente não trará essas medições, mesmo com uma recente decisão da Justiça no sentido contrário.

O mais próximo que se consegue saber do tamanho de parte da comunidade LGBTQIA+ no Brasil é a partir da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada em 2019 por amostragem em apenas 108 mil domicílios em um universo de 72 milhões existentes no país. O levantamento apontou que quase três milhões de pessoas se declaram gays, lésbicas ou bissexuais — dados sobre identidade de gênero não foram incluídos.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não coleta dados sobre a orientação sexual dos eleitores e candidatos. O gênero está restrito ao masculino e feminino, não levando em consideração pessoas intersexuais, por exemplo. E os dados sobre identidade de gênero ainda são limitados, segundo organizações pró-diversidade. “A Justiça Eleitoral coleta dados de gênero, mas só feminino e masculino. Não pergunta se a pessoa é cis ou trans, não pergunta a orientação sexual das candidaturas. A gente não tem dados”, coloca Evorah. O Meio procurou o TSE, mas não obteve retorno.

Embora se tenha avançado com o reconhecimento do uso do nome social no título de eleitor — direito que já cobre mais de 10 mil pessoas no Brasil, segundo o dado mais atualizado —, ainda não há números oficiais sobre o número de candidaturas de pessoas trans, travestis ou não-binárias em cada pleito. Em sua base, o TSE apenas informa as candidaturas que fizeram uso do nome social, que só pode ser alterado seis meses antes da data do primeiro turno de cada eleição, e não no momento do registro da candidatura, que ocorre até dois meses antes.

A falta de informações globais também impacta no levantamento sobre a presença LGBTQIA+ na política. Se hoje há dados visíveis, é por conta da sociedade civil, dos próprios eleitos e de entidades que também buscam esparramar a representatividade da comunidade nas diferentes esferas de convivência, com base no orgulho, no respeito e na reafirmação da existência de cada letrinha da sigla, seja ela do tamanho que for.

Glossário

Orientação sexual: é o que você sente pelo outro. É a capacidade de cada pessoa ter atração emocional ou sexual por indivíduos do mesmo gênero, de gênero diferente ou de mais de um gênero. Exemplos: homossexualidade, heterossexualidade, bissexualidade ou assexualidade.

Identidade de gênero: é a maneira como você se enxerga, o gênero com o qual se identifica. É a percepção que uma pessoa tem de si como sendo do gênero masculino, feminino, agênero ou de gêneros não-binários, independentemente do sexo biológico (feminino/masculino/intersexual).

Cisgênero (cis): termo utilizado para descrever pessoas que não são transgênero (mulheres trans, travestis e homens trans). É o indivíduo que se identifica com o gênero atribuído ao nascer (homens, masculino; mulheres, feminino).

Intersexual: o I da sigla ampliada LGBTQIAP+. São pessoas que nascem com uma anatomia reprodutiva ou sexual e/ou um padrão de cromossomos que não podem ser classificados como sendo tipicamente masculinos e femininos.

Não-binário: pessoa que não se identifica com nenhum dos dois gêneros tradicionalmente associados aos sexos biológicos (homens, masculino; mulheres, feminino). Elas não se percebem como pertencentes a um gênero exclusivo. Aqui, há diversos tipos, como agênero (ausência total de gênero) ou gênero fluido (que transita entre os gêneros masculino e feminino).

“Crianças pretas têm direito de sonhar”, diz MC Soffia

Por Lara Faria

"Menina pretinha
Exótica não é linda
Você não é bonitinha
Você é uma rainha"

MC Soffia tinha apenas 11 anos quando lançou seu primeiro hit, Menina Pretinha, já carregado de maturidade. A rapper paulistana começou sua carreira aos 6. Seus ideais sólidos e letras bem desenvolvidas — que tratam, em sua maioria, de empoderamento feminino e igualdade racial — fizeram com que MC Soffia ganhasse reconhecimento internacional e a levaram a shows fora do país, a receber prêmios e a palestrar, a convite da ONU Mulher, no Generation Equality Forum, em 2021.

Neste feriado de Corpus Christi, ela se apresenta na cidade de São Paulo, que recebe o Festival Cena, considerado um dos mais importantes no universo do hip-hop brasileiro. Agora, com 18 anos, MC Soffia conversou com o Meio sobre seu novo EP, Ilusão, lançado na sexta-feira (17), sua trajetória e perspectivas para o futuro.

Como a música entrou na sua vida?

Sempre gostei de cantar karaokê, nas rodas de família. Então, a música veio primeiramente para mim pelo canto. A rima veio depois, quando completei seis anos e participei de um projeto chamado Futuro do Hip Hop, que tem o objetivo de aumentar a visibilidade da cena para as crianças. Comecei a desenvolver a rima e aprender mais sobre o movimento e seus elementos. Foi aí que falei: 'Quero ser cantora. Quero ser Mc’.

E as questões sociais abordadas em suas letras, de onde veio isso?

Quando eu era pequena, morava com três mulheres negras: minha mãe, avó e tia. Hoje, moro só com a minha mãe. Elas todas foram para mim uma fonte de empoderamento preto, porque conheciam tudo e o que não conheciam procuravam saber. Minha avó vende bonecas pretas, minha mãe trabalha nos eventos culturais da comunidade preta, eu cresci em um meio militante. Minha família paterna também é assim. Todos se formaram na Faculdade Zumbi dos Palmares, que promove a inclusão de pessoas pretas. Naturalmente, quando comecei a cantar, trouxe esse assunto, que já era tão aplicado dentro de casa e no meu dia a dia, já que sou uma mulher preta. A ideia é inspirar meninas que não têm contato com essas reflexões, como eu pude ter dentro de casa. Falar de militância, de aceitação, e não só do sofrimento do povo preto, mas sim em como vamos melhorar esse cenário estudando e se aceitando, né? A música sempre foi terapia e ao mesmo tempo forma de expressão para mim, que sou artista. Mas eu quero que possa ser também para quem me escuta.

Você sente que conseguia realizar esse papel já na época da escola, quando começou a fazer sucesso com o single Menina Pretinha?

Sim. Tem professores, de dentro e fora da escola em que estudei, que passam minhas músicas nas aulas até hoje. Elas fazem parte de alguns livros didáticos. Além dos colegas que influenciei porque estava em contato direto quando pequena, eu permaneço tão presente no ensino das crianças porque ninguém nasce racista. As pessoas são ensinadas a ser assim. Se desde cedo é apresentado à criança que questões como o racismo precisam ser combatidas, ela vira um adulto que leva essa bandeira consigo. Muita gente me conhece na escola por conta de Menina Pretinha, que é um som “de criança para criança” e depois que vai descobrir minhas outras músicas e acompanhar minha carreira mais de perto, entrando em contato com meus sons mais recentes, de “jovem para jovem”.

Quais eram os desafios na sua carreira artística que você sente que precisava enfrentar até fazer 18 anos?

Eu tinha menos liberdade para me apresentar onde quisesse e criar mais livremente. Além disso, agora posso trazer uma abordagem diferente para as músicas quando eu quiser, por exemplo falando de temas que antes era impossível abordar, como sexo e amor. Agora, eu trago para o público uma MC Soffia mulher, até porque eu preciso mostrar para as pessoas que já cresci. Mas eu vejo que tem gente que fica bem espantada. Como a pandemia durou dois anos, eu cresci muito nesse período. Fui de criança para jovem adulta. As pessoas tomam um susto, mas é algo positivo. A galera dá a maior força. É uma nova Soffia, mas com a mesma essência.

Como esse último EP, o Ilusão, reflete essa sua nova fase?

É um EP que fala muito de amor. A ideia é entrar com essa pegada que nunca abordei antes agora que sou maior de idade. Quando eu era criança as músicas eram infantis e, conforme fui crescendo, as músicas também foram mudando comigo. São sons para todos ouvirem, mas focados sobretudo em trazer empoderamento para uma galera de jovens adultos. Escutem, viu? Tem muitas músicas legais para quem está apaixonado e para quem está sofrendo por amor.

Quais os próximos passos? 

Já conquistei muita coisa incrível da qual me orgulho, como discursar na ONU, ganhar prêmios internacionais, mas longe de mim parar por aí. Eu gosto de lançar singles, agora lancei o EP, mas ainda sonho em botar na roda um álbum bem completo. Só que não quero montar isso de qualquer jeito, porque tem que ter um conceito ali. Quero fazer turnês em outros países para mostrar meu som mundo afora, ter meu próprio estúdio para ajudar a desenvolver novos talentos, e tudo mais que estiver ao meu alcance e que me agregue.

A quem você atribui o fato de, até hoje, sonhar tão alto quando pensa no futuro?

Com certeza à minha família. Todos sempre falaram que eu poderia ser o que quisesse. Eu cresci ouvindo que, se me esforçasse, estudasse e tivesse força de vontade, conseguiria tudo o que eu quero. E isso não só no que diz respeito ao canto. Quando eu subo no palco, quero ser essa voz para as meninas também. É importante mostrar para as crianças pretas que elas têm o direito de sonhar. Quanto mais as pessoas te apoiarem, melhor. Mas, se ninguém te apoiar, você tem que ir atrás dos seus sonhos do mesmo jeito.

Quem foi Peter Blake, herói neozelandês assassinado na Amazônia em 2001

O Brasil e o mundo assistiram, nessa semana, ao início do desfecho do assassinato do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira. Inevitável lembrar de outro caso de violência na região, o do assassinato de Peter Blake, talvez o maior herói esportivo da Nova Zelândia. Em 2001, Blake liderava uma expedição ecológica percorrendo os rios Negro e Amazonas com seu veleiro Seamaster, quando em uma noite de dezembro o barco foi invadido por oito homens armados. Era uma tentativa de assalto. Sem entender o que estava acontecendo, Blake saiu rápido da cabine tentando defender o barco e a tripulação e levou dois tiros no meio do peito, morrendo imediatamente.

Pereira e Phillips foram assassinados brutalmente por pescadores e, embora a Polícia Federal tenha se apressado a dizer que não há indícios de um mandante, suas mortes estão profundamente ligadas a sua atuação na defesa das populações indígenas. No caso de Blake, ao menos pelo que se sabe, o homicídio não estava associado ao seu papel de ecologista ou por ele estar ameaçando interesses locais. Mas é no contexto da violência sem freio na Amazônia que ambos os trágicos episódios aconteceram.

Não chega a ser surpreendente que um país cercado pelo mar, como a Nova Zelândia, tenha um velejador como herói esportivo. Sir Peter Blake começou a velejar ainda criança, em Auckland, onde nasceu, em 1948. Aos 18 anos, construiu um barco de 23 pés no quintal de casa (foto), batizou-o como Bandit e com ele venceu o campeonato neozelandês júnior de vela oceânica na temporada 1967/68.

Sua carreira na vela internacional começou na primeira edição da hoje tradicional regata Cape to Rio, em 1971, saindo Cidade do Cabo, na África do Sul, e chegando ao Rio de Janeiro. Blake foi líder de turno no Ocean Spirit, barco comandado pelo já lendário na época Robin Knox-Johnston, a primeira pessoa a circunavegar a Terra — sozinho, sem paradas, entre 1968 e 1969. Eles não conseguiram terminar a regata, encalharam próximo à costa da Namíbia e a tripulação teve de abandonar o barco.

As cinco voltas ao mundo

Tendo sido testado pelo experiente velejador, Blake foi convidado por Johnston e seu co-comandante Leslie Williams para fazer parte da tripulação do Burton Cutter na primeira edição da Whitbread, hoje conhecida como The Ocean Race, uma nova regata que largaria de Portsmouth, na Inglaterra, e em quatro pernas daria a volta ao mundo, passando pela Cidade do Cabo, Sidney, Rio de Janeiro e voltando à Portsmouth. Na rota, os temidos mares do Sul em que os barcos teriam que enfrentar os fortes ventos dos cabos da Boa Esperança e o Horn, na ponta da América do Sul. O barco de 80 pés não estava totalmente pronto para a largada e os tripulantes tiveram de lidar com goteiras, improvisar e fazer diversos reparos nos primeiros dias da regata. Apesar disso, Burton Cutter cruzou em primeiro a linha de chegada na Cidade do Cabo, com mais de um dia de vantagem.

Na segunda perna, o barco sofreu um dano estrutural ao ser pego por uma tempestade ao atravessar o Cabo da Boa Esperança. Eles tiveram de abandonar a regata. Blake esteve de novo com Johnston e Williams na edição seguinte da Whitbread, em 1977/78. Desta vez, com um barco de 77 pés chamado Condor. Tiveram problemas com o mastro na primeira perna, mas conseguiram completar o percurso. O tempo que perderam, no entanto, havia sido grande demais. Mesmo tendo vencido a segunda e a quarta perna, terminaram a regata em último. Deram a volta ao mundo em 144 dias, contra os 119 do holandês Flyer, o vencedor.

Para sua terceira Whitbread, em 1981, Peter Blake assumiu, enfim, o papel de comandante. Levantou recursos com um empresário local e construiu um barco de 68 pés que batizou com o nome da indústria de seu patrocinador: Ceramco. Blake e sua tripulação venceram diversas regatas preparatórias para a Whitbread e chegaram a Portsmouth como um dos favoritos. Mas 23 dias após a largada, já se aproximando da Cidade do Cabo, o mastro do Ceramco partiu ao meio durante uma tempestade. A solução lógica seria abandonar a regata e ligar o motor para chegar até a Cidade do Cabo. Blake e sua tripulação resolveram insistir, montaram uma armação de fortuna (foto) e seguiram viagem com médias impressionantes de velocidade para a situação. Após consertar o barco, foram os primeiros a chegar em Auckland, sua terra natal, criando um frenesi no país. Blake venceu também a quarta perna da regata, terminando em um respeitoso 11º lugar, tendo dado a volta ao mundo em 127 dias e 17 horas.

Em 1985, Blake voltou comandando o Lion New Zealand e, após uma disputa apertada, terminou em segundo lugar. Só em 1989, comandando o veleiro de dois mastros Steinlager 2, Blake conseguiu vencer a tão sonhada Whitbread. Com isso, tornou-se o único velejador do mundo a ter competido nas cinco primeiras edições dessa tão exigente regata.

Veja: A conquista da Whitbread de 1989 contada em um documentário para a TV neozelandesa.

Tendo conquistado o troféu que por tanto tempo buscou, Blake se juntou novamente com Knox-Johnston e colocou os olhos no recém-criado troféu Julio Verne. Diversos velejadores franceses estavam tentando bater a marca de circunavegar o globo em menos 80 dias. Na primeira tentativa, Blake e Johnston no catamaran ENZA tiveram um desafiante, o francês Bruno Peyron, também em um catamaran chamado Explorer. No 26º dia de viagem, o ENZA colidiu com um objeto submerso e começou a fazer água. Tiveram de abandonar a tentativa e gastaram 16 dias para voltar até a Cidade do Cabo, retirando água de dentro do barco a cada 15 minutos. Enquanto isso, Peyron seguiu viagem e completou a volta ao mundo em 79 dias e 6 horas, tornando-se o primeiro a vencer o troféu Julio Verne. Em 1994, Blake e Johnston tentaram novamente e, apesar de enfrentarem um furação nas proximidade do cabo Horn, conseguiram completar o percurso em 74 dias e 22 horas (Youtube), novo recorde que durou até 1997.

A febre das meias vermelhas

Blake era um entusiasta da vela oceânica, das grandes travessias, daquele constante desafio entre o homem e o mar e nunca havia se interessado pela America's Cup, o mais tradicional troféu para grandes veleiros, cuja história, inclusive, já tratamos aqui neste Meio. Por insistência do dono da cervejaria que o patrocinava, aceitou fazer parte da tripulação neozelandesa que iria ser uma das desafiantes da copa e que também contava com o patrocínio da Steinlager.

Apesar de uma série de dificuldades, a equipe chegou até a final da disputa entre os desafiantes, mas perdeu para o barco italiano Prada, que disputou e perdeu a America's Cup para os americanos. Em 1995, Blake liderou um novo consórcio neozelandês em um desafio para a copa. Juntou um time de primeira, construiu dois barcos Black Magic I e Black Magic II. Blake seria parte da tripulação mas o barco seria tocado por Russel Couts, um jovem velejador neozelandês. Foram vencendo todas as regatas, e Blake sempre usando o mesmo par de meias vermelhas que recebeu de presente de sua mulher, Pippa. Quando perderam uma regata, em que Blake não estava a bordo, culparam logo a falta das sortudas meias vermelhas. Logo o país foi tomado por meias vermelhas e Blake e sua tripulação se classificaram como desafiantes e foram vencer os americanos por 5 regatas a zero. Apenas a segunda vez em toda a histórias que os americanos perdiam a copa. Os heróis foram recebidos em parada em carro aberto nas ruas de Auckland (Youtube). Blake ainda liderou o time neozelandês na bem sucedida defesa da copa no ano 2000 antes de passar o bastão de vez para Couts.

Veja: Americas Cup 1995, um documentário.

Blake, o ecologista

Após se afastar das competições, Blake fundou a Blake Expeditions para viajar e estudar regiões com importância ecológica. Em 2001, foi nomeado enviado especial para o meio ambiente pela ONU e partiu para duas expedições com seu novo veleiro, Seamaster. Esteve primeiro na península Antártica e numa segunda pelos rios Negro e Amazonas, no Brasil. No dia 6 de dezembro de 2001, ancorado nas proximidades de Macapá, no Amapá, já na reta final da expedição, Blake foi assassinado tentando defender seu barco e a tripulação de 8 assaltantes armados e mascarados que invadiram o veleiro no meio da noite.

Veja: A cobertura da TV neozelandesa sobre o assassinato de Sir Peter Blake.

Watergate, 50 anos

Para ler e ver com calma. O maior escândalo político dos Estados Unidos completou 50 anos. No dia 17 de junho de 1972, homens invadiram o comitê nacional dos Democratas, sediado no hotel Watergate, em Washington. A imprensa americana vem rememorando o furo dos jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein no Washington Post — e o especial do jornal é, sem dúvida, o mais robusto — e traçando inevitáveis paralelos entre as audiências que levaram o então presidente Richard Nixon à renúncia com as que revelam agora a atuação de Donald Trump na tentativa de golpe de 6 de janeiro de 2021. O britânico The Guardian falou ainda com John Dean, assistente de Nixon cujo depoimento cravou que o mandatário fora o responsável pelo plano para impedir as investigações sobre o caso. E a National Portrait Gallery preparou uma exposição com uma “biografia visual” do escândalo, em cartaz até setembro.

Para encerrar, aqui estão as mais clicadas pelos nossos leitores ao longo da semana:

1. YouTube: Ponto de Partida - O crime de alta traição de Bolsonaro.
2. Poder360: Entenda os sintomas da varíola dos macacos.
3. YouTube: O Som do Rio é uma série com Val Munduruku, ativista indígena, e Maria Gadú, sobre o Rio Tapajós.
4. UOL: Cientistas descobrem novo ecossistema abaixo de gelo na Antártica.
5. O Globo: Especialistas debatem qual o melhor disco da MPB nos últimos 40 anos.

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A rede social perfeita para democracias

24/04/24 • 11:00

Em seu café da manhã com jornalistas, na terça-feira desta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que a extrema direita nasceu, no Brasil, em 2013. Ele vê nas Jornadas de Junho daquele ano a explosão do caos em que o país foi mergulhado a partir dali. Mais de dez anos passados, Lula ainda não compreendeu que não era o bolsonarismo que estava nas ruas brasileiras naquele momento. E, no entanto, seu diagnóstico não está de todo errado. Porque algo aconteceu, sim, em 2013. O que aconteceu está diretamente ligado ao caos em que o Brasil mergulhou e explica muito do desacerto político que vivemos não só em Brasília mas em toda a sociedade. Em 2013, Twitter e Facebook instalaram algoritmos para determinar o que vemos ao entrar nas duas redes sociais.

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