Edição de Sábado: A ideologia de Elon Musk

Elon Musk não comunga da mesma ideologia que Jair Bolsonaro.

Isto não quer dizer que sejam incompatíveis ideologicamente. Não são. O que os une é o reacionarismo. É só que “reacionarismo” não é propriamente uma ideologia, um modo de compreender o mundo. É mais um estilo de pensar política que comporta muitas ideologias distintas. Assim, quando Musk se insurge contra o identitarismo, quando grita por liberdade de expressão, até quando ataca Alexandre de Moraes, ele pode se parecer com um bolsonarista, mas o que os leva às mesmas conclusões são caminhos distintos.

Talvez a melhor maneira de se compreender o tipo particular de reacionarismo que mobiliza Elon Musk não é começando por ele. É partindo de um ensaio publicado há 15 anos por Peter Thiel. “Não acredito mais”, ele afirmou, “que liberdade e democracia sigam sendo compatíveis.” Thiel, que menino se criou no Vale do Silício e se fez advogado formado pela Universidade de Stanford, tem 56 anos. Ele foi um dos fundadores do PayPal, que é como começou a erguer sua fortuna inicial. Musk, quatro anos mais jovem, fundou outra empresa mais ou menos na mesma época — chamava-se X.com, foi o primeiro banco online. E, como na virada do século não havia tanto espaço assim para serviços financeiros digitais, as duas empresas trocaram ações, Musk se tornou CEO do PayPal, e aqueles sócios iniciais puseram bem mais do que US$ 100 milhões no bolso cada no momento da venda. Às vezes se bicam, noutras se aproximam, mas Musk e Thiel pensam muito parecido. Como também pensa Mark Andreessen, o criador do primeiríssimo browser gráfico, e hoje um dos mais importantes investidores do Vale do Silício. Quando alguém lhes pergunta como se definem ideologicamente, sua resposta vem de bate-pronto: “libertários”.

São todos homens na casa dos cinquenta que se tornaram muito ricos por terem erguido negócios chave nos primórdios da internet. Nem todos pensam como eles — os fundadores do Google, que pertencem à mesma geração, não são assim. Bill Gates não é, como Steve Jobs não foi, ambos uns quinze anos mais velhos. Tampouco o são Mark Zuckerberg da Meta, ou Sam Altman, da OpenAI, ainda por ali nos trinta e tantos. Mas Musk, Thiel e Andreessen são apenas os nomes mais importantes de um conjunto grande e influente no Vale.

Aquilo que eles em particular chamam de libertarismo tem muito dos libertários genéricos, a começar por uma profunda desconfiança de qualquer decisão tomada por Estados nacionais. Consideram governos pouco eficientes ou competentes. Por suas características pessoais, vão além: se percebem como visionários. (Em grande parte, são mesmo.) Consideram que têm a missão de inventar o futuro por suas qualidades ímpares. E entendem que os Poderes Legislativos do mundo, os tribunais com suas políticas antitruste, as burocracias regulatórias não são apenas incompetentes. Representam uma ameaça real aos avanços que eles, e apenas eles, são capazes de promover.

Há ainda uma última peça para dar forma à sua compreensão de mundo. No centro está um cientista político americano obscuro que teve alguma popularidade no final dos anos 1930 mas cuja maior previsão descambou vertiginosamente. Ele tinha convicção de que o Eixo venceria a Segunda Guerra Mundial.

James Burnham era um pensador de direita com formação marxista. Com o passar do tempo, sem nunca deixar de entender o mundo por uma estrutura que vinha de Karl Marx, Burnham se convenceu de que o controle dos meios de produção eram, de fato, o que garantiam poder. Mas, observando tanto a União Soviética de Josef Stálin quanto a Alemanha de Adolf Hitler, chegou à conclusão de que Marx havia errado. Os grandes capitalistas — ou a alta burguesia, para usar a expressão original — podiam ser os donos, mas não eram quem de fato controlava os meios de produção.

Quem compreendia os processos da indústria eram os pequenos burgueses. Ou a “classe gerencial”. Os executivos, a equipe de gestão, era quem realmente controlava as fábricas e seus destinos. Para Burnham, o que tanto Stálin quanto Hitler haviam compreendido era que o Estado poderia driblar os donos das fábricas para dar poder a quem de fato o tinha. Os gestores. Nisso, os fascistas eram particularmente competentes. Era por esta razão, ele apostava, que Hitler e Mussolini não tinham como perder a guerra.

Burnham errou tão feio que seu nome se perdeu no tempo. Mas ele é muito popular entre alguns dos bilionários do Vale. Quando Musk comprou o Twitter e demitiu quase toda a linha de comando, era esta sua principal preocupação. Quando ele faz um discurso no qual se vê como vítima de ataques sistemáticos, esta é a razão. Musk, como Thiel, como Andreessen, se veem numa disputa continuada onde os principais rivais são os gestores de suas empresas. Os executivos, seus métodos de gestão, a correção política dos recursos humanos que vão impondo uma ideologia às empresas. Que tornam as empresas máquinas de disseminar na sociedade um ponto de vista que elimina a eles. Os capitalistas.

Esta é a luta na qual se percebem. Não são “bolsonaristas”. Não pertencem à “Internacional Reacionária”. Mas compreendem que têm inimigos em comum. Ao comprar o Twitter, que hoje herdou o nome de sua empresa original, X.com, Musk queria isto. Uma arma ideológica para atacar o avanço de uma ideologia que ele considera ameaça existencial. O novo populismo reacionário e autoritário é um aliado conveniente. Pode chegar às mesmas conclusões por caminhos distintos, mas cultiva os mesmos inimigos.

Daí, é possível simplesmente afirmar que Musk está operando de forma coordenada com a extrema direita global? E, a propósito, o quão organizado está mesmo o reacionarismo no mundo?

Um foro para chamar de seu

O marco fundamental da ordenação dessa reencarnação da extrema direita foi a eleição de Donald Trump, em 2016. Seu estrategista àquela altura, Steve Bannon, ainda não tinha tanta proeminência global. Mas o fato de Trump ter conseguido se eleger para presidente da autoproclamada “maior democracia do mundo” com uma plataforma tão agressiva contra mulheres, imigrantes, negros e outros, completamente fora dos padrões democráticos, ofereceu legitimidade internacional para que outros radicais emergissem. Foi o caso de Jair Bolsonaro. Seu discurso histriônico era tido como algo beirando o folclórico no Brasil até que, muito rapidamente, passou a ser aceito como ideias que apenas ecoavam o que estava dormente na sociedade brasileira. Não que isso também não fosse verdade. Mas a aceitação doméstica só foi possível depois de uma legitimação externa.

É a isso que o cientista político Guilherme Casarões, professor da Fundação Getúlio Vargas e coordenador do Observatório da Extrema Direita, chama de “internacional nacionalista”. Não se trata, pois, de um oxímoro. “A legitimidade é internacional e a construção é nacional. Está todo mundo querendo fortalecer seus próprios nacionalismos internamente. Mas essa construção transnacional de legitimidade é vista muito cedo nesse processo.” A Hungria já tinha Viktor Orbán no poder desde 2010. Narendra Modi chefiava a Índia desde 2014. Benjamin Netanyahu, originalmente conservador, viu em Trump o aliado mais contundente de seu projeto de poder e também se radicalizou. Líderes à direita de diversos países passaram a ver Hungria e Israel como faróis. “Até Trump se eleger e, em seguida, Bolsonaro se eleger no Brasil, não se falava de Orbán por aqui. A imprensa não dava notícia sobre a Hungria e ele já estava lá havia muito tempo. Essa apropriação é feita também em retrospectiva.”

Bannon chegou a vocalizar, sem pudores, em julho de 2018, seus planos de montar uma coalizão global de extrema direita, tendo a Europa como foco. Simultaneamente, ainda em agosto, estreitou seus laços com Eduardo Bolsonaro, que descreveu o encontro como uma “união de forças contra o marxismo cultural”. Tudo bem azeitado com as aulas que o Zero Três tomava de Olavo de Carvalho. O guru da extrema direita brasileira apregoava que o Foro de São Paulo era a instância onde esse marxismo cultural se fortificava e propagava pela América Latina. Eduardo programou, então, não se sabe se orientado por Bannon, a Cúpula Conservadora das Américas, que aconteceu em dezembro, com Bolsonaro já eleito. Foi o primeiro passo de organização da extrema direita no nível latinoamericano. No ano seguinte, a cúpula já havia se metamorfoseado em CPAC, emulando a entidade ultraconservadora americana, criada em 1964.

Curiosamente, no plano interno, o bolsonarismo falhou em construir seu partido político, a Aliança pelo Brasil. Mas foi hábil para se articular com líderes de outros países vizinhos. As redes sociais tiveram papel crucial nisso, claro. Eram nelas que as ideias, ideologias e teorias da conspiração circulavam mais livremente. Conforme a Meta foi abraçando pautas identitárias — talvez por razões mais mercadológicas que ideológicas —, o Twitter, com seu perfil mais imediatista e com menor moderação, se consolidou como o ambiente fértil para essa proliferação. Em pouco tempo, Espanha e Portugal também viam suas lideranças radicais estabelecidas e a interlocução se tornou iberoamericana. Em 2021, nasce o Foro de Madri, a materialização mais bem acabada desse Foro de São Paulo às avessas.

Hoje, quando vai postar sobre a briga entre Moraes e Musk, Eduardo marca as arrobas de Santiago Abascal, do Vox espanhol, e de André Ventura, do Chega português. E no tour pela Europa que parlamentares de direita estão fazendo, em visitas ao Parlamento Europeu e à Corte de Haia, houve muitas trocas com os dois partidos da direita radical — como já havia acontecido em março, nos EUA.

Coordenação de pautas, entidades, líderes. Com alguns governos de extrema direita empossados no mundo, o próximo passo foi a orquestração diplomática. Trump, Bolsonaro e outros 30 países, incluindo Hungria, assinaram, por exemplo, a Declaração do Consenso de Genebra, uma aliança anti-aborto fundada em 2020. Um ano antes, foi formada uma aliança pelas famílias, capitaneada pelo governo húngaro em 2019.

O que não flui tão claramente entre um país e outro na coalizão da extrema direita são os recursos financeiros. Não é comum ver figuras como Bannon e Trump, por mais dinheiro que tenham, patrocinando pares por aí. Isso não quer dizer, de forma alguma, que esse financiamento não aconteça. Ele encontra outros caminhos — e um dos mais notórios é o da religião. Casarões aponta como a afinidade entre grupos evangélicos americanos e brasileiros, desde sua origem, propiciou, entre outras coisas, uma parceria com a Capitol Ministries, cujo dono é um ex-jogador de basquete da NBA, Ralph Drollinger, que virou pastor nos anos 1990. A missão da entidade é financiar organizações evangélicas na América Latina, não só no Brasil. “Drollinger já apareceu dando abraço em Daniel Ortega, da Nicarágua, porque o problema de Ortega é só com a Igreja Católica. Ele tem foto também com Flávio Bolsonaro e vários da turma do bolsonarismo original, de 2019.”

O financiamento pode ser no sentido contrário. A TFP, grupo católico brasileiro super tradicionalista, financia movimentos católicos na Europa. Evangélicos brasileiros irrigam a África. Esses grupos religiosos não representam a totalidade dos movimentos de extrema direita, mas são parte importante deles em muitos países ocidentais. “Se esses movimentos se resumissem ao nacionalismo, a cooperação internacional seria mais difícil. Pior ainda se fossem para a dimensão racial. Há grupos de extrema direita abertamente supremacistas, e eles têm pouca circulação fora dos Estados Unidos. Têm alguma na Europa, mas não veem o brasileiro médio como um igual, um aliado.”

A religião se torna estratégica. Com exceção do hinduísmo da Índia e do nacionalismo judaico de Israel, fenômenos distintos, há no espaço cristão uma circulação de ideias com muito mais facilidade do que ideias étnicas ou nacionalistas. Evidentemente, isso varia de acordo com o engajamento religioso de cada nação. Isso não pegou tanto na Argentina, na eleição de Javier Milei. No Chile, país majoritariamente católico, a grande questão da extrema direita é a identidade europeia contra o indígena. Também é diferente em parte da Europa. Na França, Marine Le Pen tem discurso secular. Ela fala de um aspecto que chama de civilizacional. É moral, mas não fundamentalmente religioso. Na Alemanha, existe a xenofobia, a islamofobia, mas não há a cola religiosa. Já na Itália, Espanha e em Portugal, a questão religiosa é um pouco mais central. “É por isso que não totalizo a dimensão religiosa. A religião opera de uma maneira específica em alguns lugares, mas não está tão presente em outros", acrescenta Casarões.

O país mais adiantado no processo de consolidação de uma “democracia iliberal”, que Casarões pede para usarmos com muitas aspas, é a Hungria. Não à toa, Orbán passou a oferecer, via governo ou ONGs cooptadas, bolsas de estudo para intelectuais conservadores, num eufemismo para ideólogos da extrema direita. “A ideia é que eles circulem pela Hungria, compartilhem essas ‘boas práticas’ de seus países, disseminem certas ideias que nascem ali. Isso vai se espalhando.”

No discurso, na interlocução, na diplomacia, nos recursos, na formação. Esse é um grau de organização bastante avançado. E a ironia não passa despercebida ao professor. “Hoje a extrema direita tem um nível de eficácia global bem maior do que a esquerda. Bem maior.” O marxismo, que dá origem à esquerda, nasce internacional. A origem da práxis marxista está nas internacionais socialistas do século 19 e começo do século 20. “Mas a esquerda parece ter se perdido em questões comezinhas da política do dia a dia. Há ainda algum nível de interação, mas não se veem os resultados tão tangíveis como se vê com a extrema direita, causando um tsunami eleitoral.” Ainda que com limites nacionais, claro. Eles ganharam nos EUA e no Brasil. Mas não no Chile. Não se reelegeram no Brasil nem nos Estados Unidos. Então, levaram a Argentina. Agora, podem voltar aos EUA com Trump. E não se sabe que tipo de ciclo isso pode inaugurar desta vez.

Deu match

Musk não era trumpista originalmente. O libertário cria uma afinidade eletiva com a extrema direita. Ambos querem zero regulamentação do Estado — ou melhor, a direita radical quer destruir a regulamentação atual para implementar sua própria, autoritária. Ainda que o libertário, no fim das contas, defenda uma liberdade irrestrita de expressão, ele se incomoda profundamente com o que considera uma patrulha da esquerda. “O libertário se encontra com a extrema direita na luta contra aquilo que eles veem como marxismo cultural ou como ‘wokismo’. Quando comprou o Twitter, Musk disse que queria justamente combater o ‘woke mind virus’”, lembra Casarões.

Depois do 6 de Janeiro, quando se deu conta de que o Twitter estava banindo contas pelo que ele classificava como “patrulha ideológica”— ainda que de teor criminoso ou de ódio —, Musk decide se tornar um ator de fato no movimento pela liberdade irrestrita de expressão. A questão é que a liberdade de expressão é um tema instrumentalizado pela extrema direita hoje, defendendo um tipo de liberdade muito particular, que inclui a liberdade de mentir, ofender, agredir. E isso se torna um ponto de honra para Musk só em alguns lugares. “Como o tema da liberdade de expressão foi capturado pela extrema direita, ele desavergonhadamente pulou nesse barco. Entendeu que esse é um jogo em que ele pode capitalizar também.”

De dois anos para cá, Musk começou a fazer campanha abertamente. Atuou nas midterms, em 2022, passou a empoderar certos atores de extrema direita que haviam sido banidos da plataforma, como Trump e Alex Jones, do InfoWars. “Ele oportunisticamente encontrou um lugar para vocalizar suas ideias mais profundas, entendendo que tem muitos aliados, a quem ele acaba prestando um serviço. O que é inquestionável dessa história toda é que há um certo nível de afinidade, sim, e que isso está sendo usado por essas pessoas.

Rich Kids on the Block

A Paris Blockchain Week reuniu nesta semana os principais líderes e inovadores da cripto economia. Nesta sua quinta edição, o evento viu um crescimento expressivo no número de participantes (cerca de 10 mil) e de empresas expositoras (mais de uma centena), em sua maioria ligados a serviços financeiros, refletindo o contínuo interesse e investimento na tecnologia blockchain e em suas aplicações feitas por este setor nos últimos anos. Para quem ainda acha que o mundo cripto se resume a libertários do Bitcoin e artistas de NFT, fica a dica: os banqueiros chegaram.

Tokenizando tudo

Goldman Sachs com o DAP e J.P. Morgan com o Onyx são dois exemplos de grandes instituições financeiras embarcando com tudo em um dos temas proeminentes nos painéis de discussão: “tokenização” de ativos do mundo real (ou RWA, real world assets). Lembra das tais NFTs? Por que mesmo tinha gente pagando caro para ter “figurinhas virtuais”? Então, esta é a chave para entender a tecnologia sem precisarmos nos estender com tecnicidades. Da mesma maneira que uma NFT pode atestar a propriedade de uma imagem, ela também pode ser usada para representar a propriedade de qualquer coisa no mundo real. Por exemplo, ouro “tokenizado”. Muito mais prático do que títulos de ouro, o token permite divisibilidade, liquidez e acesso a um mercado global 24 horas por dia. A Blackrock, maior gestora de ativos do mundo, anunciou um token na Ethereum no valor de US$ 1 bilhão em títulos do tesouro americano. Tokens como USDC e USDT representam dinheiro no mundo real. Apenas estes dois somam mais de US$ 132 bilhões em depósito, que garantem a estabilidade na conversão entre tokens e dólares. Para as gestoras, o potencial de acessar um mercado em franca expansão, além da redução de custos administrativos e de segurança, são os principais motivadores para acelerar a migração de ativos para blockchains.

Regulando o irregulável

A Binance, a maior plataforma de negociação de criptomoedas do mundo, continua sem sede global definida, refletindo a complexidade e a incerteza em torno da regulação. As entidades regulatórias enfrentam desafios de maturidade, muitas vezes desconhecendo os intrincados detalhes tecnológicos subjacentes à blockchain. No entanto, a França demonstrou liderança ao permitir serviços de gestão de criptoativos para empresas licenciadas, promovendo um ambiente mais favorável e seguro. Além disso, a regulamentação europeia (MiCA), que entrará em vigor no próximo ano, marca um passo importante para a harmonização das leis de criptoativos na União Europeia, oferecendo maior clareza e confiança aos participantes do mercado.

No Brasil, o Marco Legal das Criptomoedas, efetivado em junho do ano passado, representou um avanço significativo. Conhecida como a “Lei das Criptomoedas”, essa legislação estabeleceu diretrizes para regular, proteger e defender os interesses dos consumidores em um mercado em rápido crescimento. Com a exigência de autorização para operar no país, as empresas do setor agora devem seguir as regulamentações do Banco Central e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

É sabido que, em qualquer setor, regulação e inovação travam uma eterna disputa de gato e rato. E, no mundo cripto, esta questão se mostra ainda mais dramática. Mesmo com algum progresso no sentido de fiscalizar bolsas e agentes de custódia de cripto ativos, as Bolsas Descentralizadas (ou DEXs) emergem como uma tecnologia impossível de ser controlada. De novo, para não nos perdermos em tecnicidades, esses novos mercados funcionam de maneira análoga a um programa de troca de arquivos P2P (peer to peer), como o Napster. Não são entidades, são protocolos de transação onde todos os usuários podem trocar criptomoedas entre si, sem qualquer necessidade de cadastro. Basta conectar a sua carteira, escolher os tokens que deseja negociar e pronto, o sistema automaticamente te conecta com outros usuários interessados em fazer a transação. Em questão de segundos a negociação é feita. Boa sorte para a Securities and Exchange Commission, nos Estados Unidos, tentando entender como isso funciona. O máximo que conseguiram até o momento foi advertir a Uniswap, o protocolo de DEX mais usado no mundo, que possibilitou mais de US$ 50 bilhões em negociações apenas no mês passado.

E o Bitcoin, hein?

Apesar de o evento ter sido mais focado em blockchains “alternativas”, o Bitcoin, a blockchain mais antiga e com maior valor de capitalização, não deixou de permear as discussões nos painéis. Desde a publicação da nossa edição “Primavera Cripto”, em meados de fevereiro, a cotação da criptomoeda já subiu da faixa dos US$ 50 mil para US$ 65 mil, ainda sentindo os efeitos da aprovação dos ETFs (Exchange-traded funds) nos Estados Unidos e a aproximação do halving, que deve ocorrer daqui a poucos dias. Em poucos meses de negociação, os principais fundos americanos já acumulam mais de US$ 200 bilhões em Bitcoin.

A Paris Blockchain Week deste ano foi mais do que uma simples conferência; foi um marco na evolução do cenário financeiro global. Com a presença maciça das principais instituições financeiras e de líderes do setor, fica claro que a era das blockchains no mercado financeiro está apenas começando. Anos atrás seria loucura imaginar que não precisaríamos mais de agências bancárias porque faríamos tudo “on line”. O crescimento da riqueza “on chain” promete ser exponencial nos próximos anos, e a migração acelerada dos serviços para as blockchains é inevitável. Enquanto o debate entre inovação e regulação continua, a comunidade cripto se mostra disposta a moldar o novo paradigma financeiro global. E o Bitcoin, como sempre, permanece como uma força central nessa transformação, demonstrando sua resiliência e potencial de valorização em um mundo cada vez mais digitalizado e descentralizado.

Hey, pais, deixem as crianças em paz

Há cerca de 30 ou 35 anos, quando o celular ainda era coisa rara, a regra na maioria das famílias era que os filhos só ligassem para o trabalho dos pais em situações de vida ou morte. O custo da ligação era alto e, em tempos de telefone fixo, criança ou adolescente incomodando no escritório não era bem visto. Muitos daqueles menores agora são pais. E, em um mundo altamente conectado e em que cada um tem seu próprio smartphone sempre à mão, respeitar limites, como o horário escolar, tem sido tarefa difícil não só para os alunos, mas também para alguns responsáveis.

Há quem não hesite em trocar mensagens com os filhos durante as mais diferentes atividades dos jovens. Pode ser um lembrete bobo ou um aviso importante, na hora do recreio ou do almoço, ou até mesmo uma longa conversa. Outro dia, em uma classe de Ensino Médio de uma escola carioca, por volta das 11h, uma mãe relatava no grupo de responsáveis observações feitas pouco antes pelo filho durante uma aula, com queixas de um professor. O menino iniciou a conversa e ela manteve o diálogo. Dias depois, quando o calor no Rio gerou uma sensação térmica de mais de 50 graus Celsius, mesmo quadro: às 8h20, um aluno puxou conversa com a mãe por WhastApp sobre o ar-condicionado da sala que não funcionava. E ela seguiu com o papo.

Uma enquete com 50 responsáveis de diferentes escolas do Rio revela que a maioria (30) afirma não enviar mensagens para os filhos durante o horário escolar ou alguma atividade. Dez, no entanto, admitiram que se comunicam com os filhos nesses momentos. Outros dez não responderam. Entre os que disseram que não enviam mensagens, quatro abriram um parêntese para explicar que conversam com os filhos na hora do recreio ou do almoço na escola. Esses intervalos, no entanto, também fazem parte da rotina escolar.

Faz tempo que o uso excessivo de celular na escola é um problema. Segundo o Pisa 2022, principal avaliação mundial da educação, 80% dos alunos brasileiros de 15 anos disseram que se distraem com o uso de celular nas aulas de matemática. Argentina, Canadá, Chile, Finlândia, Nova Zelândia e Uruguai registraram o mesmo indicador, enquanto no Japão a taxa é de apenas 18%. A restrição de uso desses aparelhos nas escolas vem crescendo. Em fevereiro, o Rio de Janeiro proibiu a utilização de celulares inclusive no recreio, mas só na rede municipal.

Quando a contribuição para essa distração vem dos pais, o cenário fica mais desafiador. Pais excessivamente envolvidos e ligados tecnologicamente a seus filhos acabam impedindo o potencial educacional deles e não conseguindo criar adultos independentes, alerta a jornalista Jill Filipovic, autora do livro OK Boomer, Let’s Talk: How My Generation Got Left Behind. Deixar os filhos em paz é uma mensagem cada vez mais difundida entre educadores, terapeutas, especialistas em desenvolvimento infantil e até professores universitários. Não concorda com a fala do professor? Pergunte, converse. O ar-condicionado não funciona? Sugira uma alternativa, como uma aula do lado de fora.

“Nas escolas, as crianças ficam presas aos telefones em detrimento de sua atenção e educação. Mas alguns alunos e seus pais argumentam que precisam estar constantemente disponíveis para contato. Os professores relatam que os pais discutem com os filhos sobre notas, ligam durante as aulas, esperam atualizações constantes por mensagens de texto e até monitoram as telas ou ouvem as aulas”, relata Jill.

A psicóloga Marly Tostes, que atende crianças e adolescentes, diz que a ansiedade ajuda a explicar esse comportamento dos adultos. Ela aponta também a falta de maturidade e responsabilidade em algumas famílias. O que parece melhor para acalmar suas próprias ansiedades imediatas não é necessariamente o melhor para o desenvolvimento e o bem-estar de uma criança ou adolescente.

“É preciso estar atento o tempo todo, sim. Mas é preciso dar limites. Não posso conversar com o aluno durante a aula, a terapia, o estudo. Esse pai ou essa mãe não está atento a isso. Falta bom senso. O exemplo é essencial. Não existe fórmula, mas a verdade é que nunca foi tão difícil como hoje”, diz a psicóloga, pontuando que em seu consultório há pais que entram em contato com os filhos durante as sessões. “O combinado nesse ambiente é deixar o celular de lado. Não podem responder.”

No best-seller The Anxious Generation: How the Great Rewiring of Childhood Is Causing an Epidemic of Mental Illness, o psicólogo social Jonathan Haidt argumenta que dispositivos inteligentes e pais superprotetores “deformaram” os processos de desenvolvimento da infância. Ele defende a proibição de smartphones para crianças menores de 14 anos e redes sociais só depois dos 16. Seguindo essa linha, no fim de março, o governador da Flórida, Ron DeSantis, sancionou uma lei para restringir o uso de redes sociais até 16 anos — proibição total, com exclusão de contas, até os 13 e, aos 14 e 15, só com autorização dos pais. A decisão se baseia em evidências de melhora no comportamento nas escolas após uma proibição total de smartphones imposta em 2023 no condado de Orange. Oficialmente, as plataformas só autorizam a criação de contas a partir dos 13 anos. Opositores a medidas como essa, no entanto, argumentam que proibições são inconstitucionais e interferem no direito dos pais de decidir o que é melhor para os filhos.

“O celular tomou conta da vida dos pais e está tomando conta da vida dos filhos. O adulto é exemplo, precisa ter essa consciência e estar atento a esse lugar. Sim, hoje há uma demanda de tomar conta o tempo inteiro. Mas o horário da escola, do estudo, de uma atividade precisa ser respeitado sempre”, afirma Marly. “Vejo muitos adolescentes que já não acreditam em tudo o que os pais dizem. Sabem que eles falam, mas não fazem. Isso é identificado pelos filhos, que não dão crédito a esses pais, perdem a confiança.”

Essa ansiedade e necessidade de controle em tempo integral sobre os filhos não termina com o fim da adolescência. No ensino superior, muitos pais seguem ansiosos e necessitando de respostas constantes sobre seus rebentos. “Os pais estão permitindo que a ansiedade assuma o controle, e isso não está ajudando ninguém, muito menos os filhos. Se uma criança liga muito para casa, deve haver uma crise! E se uma criança liga muito pouco, deve haver uma crise!”, escreveu Mathilde Ross, psiquiatra da Universidade de Boston, em um artigo no New York Times. “Os pais de hoje sofrem de ansiedade em relação à ansiedade, que na verdade é muito mais séria do que a ansiedade.”

Com quase 20 anos de experiência em educação, a professora Raphaela Bomtempo enfrenta em sala de aula o desafio de conquistar a atenção de alunos que têm contato excessivo com as telas desde muito cedo. O tempo de concentração fica reduzido desde a primeira infância. “A tela é um grande aliado das babás, das famílias, deixando as crianças hipnotizadas durante o almoço. Com isso, há uma redução de limite, de estímulo, de vínculo. Não tem conversa à mesa. Dentro da escola fica claro que esse é um desafio geracional e tanto”, explica.

Se um pai ou uma mãe envia uma mensagem bem quando esse precioso tempo de concentração está sendo usado pelo aluno em sala de aula, recuperar esse foco é complicado. Quão difícil é para qualquer um receber uma mensagem e não responder quase imediatamente? A mensagem, a notificação e o alerta que chegam quebram a atenção e geram ansiedade para se descobrir do que se trata, quem falou e o quê. Para uma criança ou adolescente, o desafio de se controlar e esperar o momento certo para verificar é ainda maior.

“Estou à frente de um projeto com adolescentes na escola onde trabalho. Às vezes, eles me fazem perguntas no horário letivo, quando também estou em sala de aula, dando aula para outro grupo. Não respondo ou aviso que só vou responder depois. O horário da aula não é para isso, eles têm de estar atentos ao professor. E a gente precisa ensinar”, afirma Raphaela.

Como mãe, o desafio de Raphaela é o mesmo: dar limites e estabelecer quando o uso do celular é bem-vindo. Trocar mensagem com a filha adolescente só depois que a aula termina. “Minha filha, de 13 anos, ganhou um celular aos 12 por uma questão prática e de logística, para ter mais autonomia, já que começou a usar o metrô sozinha. O aparelho também facilitou nossa comunicação quando está na casa do pai. Mas não envio mensagem no momento da aula porque não é o horário. Só mando a partir das 12h45”, diz.

Esse letramento sobre o bom uso do celular é um trabalho a ser feito em parceria: escola e família. E o exemplo é fundamental. “As escolas precisam tomar medidas que tenham efeito, como impedir o uso durante a aula, deixando os aparelhos em armários, por exemplo. Mas as famílias também precisam se envolver com essas regras. Se os pais não cumprem, a criança ou o adolescente não vai cumprir. Fica difícil de entender. O que vale é o exemplo”, reforça Raphaela.

Perdemos Ziraldo. Eis os mais clicados da semana pelos leitores:

1. g1: Imagens do eclipse solar total.

2. Meio: Ponto de Partida — Musk está errado. O STF também.

3. Meio: Ponto de Partida — O STF caiu na armadilha.

4. X: A homenagem de Mauricio de Sousa a Ziraldo.

5. Panelinha: Tortinha americana de frango.

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A rede social perfeita para democracias

24/04/24 • 11:00

Em seu café da manhã com jornalistas, na terça-feira desta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que a extrema direita nasceu, no Brasil, em 2013. Ele vê nas Jornadas de Junho daquele ano a explosão do caos em que o país foi mergulhado a partir dali. Mais de dez anos passados, Lula ainda não compreendeu que não era o bolsonarismo que estava nas ruas brasileiras naquele momento. E, no entanto, seu diagnóstico não está de todo errado. Porque algo aconteceu, sim, em 2013. O que aconteceu está diretamente ligado ao caos em que o Brasil mergulhou e explica muito do desacerto político que vivemos não só em Brasília mas em toda a sociedade. Em 2013, Twitter e Facebook instalaram algoritmos para determinar o que vemos ao entrar nas duas redes sociais.

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