Edição de Sábado: A política da vingança

Os versos de Chico Buarque vieram à mente do conselheiro Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho na terça-feira de julgamento no Conselho Nacional de Justiça, o CNJ: “Roda mundo, roda-gigante. Rodamoinho, roda pião. O tempo rodou num instante”. A imagem de uma imensa roda empurrada ladeira acima, que muda de direção e passa por cima de quem a empurrava, dava ao conselheiro uma perspectiva menos comezinha e mais poética sobre o que ocorria no plenário. Na visão de muitos dos presentes, o relatório apresentado pelo corregedor Luís Felipe Salomão contra magistrados da Operação Lava Jato tinha ares de vingança. O texto destrinchava mandos e desmandos da força-tarefa. “Mais do que a imagem da vingança, eu prefiro ver esse processo político como uma roda-viva”, disse o conselheiro ao Meio, após o julgamento.

Na véspera, Salomão havia afastado das funções quatro magistrados (dois juízes e dois desembargadores), em decisão monocrática, o que reforçava a avaliação de que a peça estava eivada de revanche — à operação em si ou ao fato de que o presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, vinha adiando a apreciação do caso. Entre os punidos estava a juíza Gabriela Hardt, que substituiu o ex-juiz Sergio Moro nos processos que levaram o presidente Luiz Inácio Lula da Silva à prisão, em abril de 2018. O parecer de Salomão, e especialmente o fato de que a decisão do corregedor foi tomada sem aval do colegiado, deixaram Barroso particularmente irritado. Pedindo todas as “vênias”, Barroso, um defensor da Lava Jato no auge da operação, antecipou seu voto, na intenção de influenciar os demais conselheiros. E foi duro. Tratou possíveis condenações da juíza antes de um processo administrativo como “injustiça e perversidade”. Falou que ela não poderia estar sujeita à mudança de ventos — referindo-se claramente à roda-viva que desce desenfreada no rumo dos lavajatistas. Estava na mesa, com o voto de Barroso, todo leque de sentimentos que perpassava o julgamento que, ao final, livrou Hardt e um colega juiz do afastamento por atos suspeitos de ilegalidade na força-tarefa de Curitiba. E pediu vista sobre a abertura de um processo disciplinar. Foi acompanhado pela maioria.

O ingrediente da vingança, nesse caso, já havia sido introduzido por Barroso em discussões anteriores. “Há um certo sentimento social que se formou. Estão se vingando dessa moça”, disse o presidente do STF, na sessão do CNJ de 20 de fevereiro, quando o órgão deliberava a respeito de uma reclamação da presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, sobre uma decisão da então juíza substituta de homologar um acordo firmado entre a Petrobras e o Ministério Público Federal para a criação de um fundo. Barroso se referia à sede de vingança alheia (o desejo do governo, do PT, do próprio presidente Lula e de militantes do partido de retaliar Moro, procuradores e todos que agiram contra eles na Lava Jato). Mas também à sede encrostada no próprio Judiciário. O ministro é parte de um grupo no STF que se opõe ao antilavajatismo explícito de Gilmar Mendes e Dias Toffoli, por exemplo. Não é mais um defensor vocal da operação, o que se tornou quase impossível pós-Vaza Jato, mas segue protegendo os eventuais acertos que ocorreram.

No julgamento do CNJ, Bandeira de Mello votou com o relator. Para ele, nada havia de vingança no texto. Com os olhos de quem passou pela política, como secretário-geral da Mesa Diretora do Senado, e de quem esteve no Conselho Nacional do Ministério Público na época da força-tarefa, ele disse conhecer as práticas “do outro lado do balcão”. “Havia vários elementos técnicos importantes”, argumentou. “Não acho que a Justiça se faz por meio da vingança. Acredito que existem revezes que se movem, em momentos distintos, para um lado e para o outro. É compreensível que as partes tenham eventualmente essa necessidade de dar a última palavra e vencer ao final.”

É de fato na Justiça que a compreensão da vingança como motivação está mais estudada. Afinal, simplificando séculos de filosofia do Direito em pouquíssimas linhas, foi para impedir o sujeito de agir puramente por seus instintos primitivos, em estado de natureza, de reparar malfeitos com as próprias mãos, que se criaram as leis e seus operadores. Criou-se, em última instância, o Estado para julgar, condenar, punir. Explora-se um pouco menos a vingança como motivação política. Mas, conforme os pactos sociais e políticos entre indivíduos vão se corroendo, é ela que aflora, em seu registro mais bruto, nas ações dos atores do poder.

Foi a isso que assistimos acompanhando o noticiário de Brasília da semana que passou. Cada qual no seu quadrado, políticos de todo naipe empunharam suas armas de vingança uns contra os outros, internamente ou entre Poderes, em busca de restabelecer — ou ampliar — seu espaço, sempre com a justificativa de corrigir abusos anteriores. No caso do Judiciário, cada vez mais embrenhado na política, também foi assim. “O poder é um recurso escasso. A vingança aparece como uma forma de luta num ambiente desregulado. Com a crise instalada no Brasil desde 2013 e o pacto em torno da Constituição posto à prova com o golpismo, os conflitos, naturais de um ambiente de divergência, escalam para a retaliação”, analisa Christian Lynch, jurista, cientista político e colunista deste Meio.

Casa Baixa

A vingança é um sentimento difícil de admitir. É raro alguém que queira falar abertamente sobre ele, embora seja palpável sua  presença na política. Na quarta-feira, um dia depois do julgamento no CNJ, o ministro Gilmar Mendes, do STF, não conteve a risada, daquelas que vêm despidas de qualquer cerimônia, ao ser perguntado sobre o assunto pelo Meio. Ele entrou no elevador que dá acesso ao plenário da Corte e, antes que a porta se fechasse, brincou: "Tem muitas músicas por aí que falam desse tema”. Já o ministro Flávio Dino, personificação dos caminhos cruzados da Justiça com a política, apertou o passo para não falar sobre o assunto em sua nova postura de não emitir tanta opinião como ministro do STF. Em tempos passados, Dino talvez não resistisse a comentar os casos — lembrando que, jocosamente, já se declarou um dos Vingadores.

A questão é que, admitindo-se ou não, a revanche inflama. Como uma vendeta leva a outra, é praticamente impossível determinar quem foi o primeiro. E enquanto um lado não toma a decisão de parar, ambos vão trocando agressões. Não foi gratuita, por exemplo, a comemoração que teria ocorrido entre membros do governo, no Palácio do Planalto, na última semana, quando identificaram que, no pacote de emendas liberadas para o Congresso, nada havia para o presidente da Câmara, Arthur Lira. Nada. Dos R$ 2,4 bilhões em repasses, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, considerado um aliado do governo, recebeu R$ 24 milhões. “Tenho convicção que não foi de caso pensado”, justificou um interlocutor do Planalto. “Foi só uma feliz coincidência.”

Convencer de que não houve sentimento de revanche fica até difícil diante da discrepância. A lista de liberações recebeu o aval da Secretaria de Relações Institucionais (SRI) e de seu ministro, Alexandre Padilha. Em um dos vários arroubos de ira do alagoano, uma semana antes da liberação de recursos, Lira disse que considera Padilha um “desafeto pessoal” e o chamou de “incompetente”. Em resposta, o presidente Lula disse que Padilha ficaria no cargo por muito tempo, "só de teimosia".

Nos bastidores, o governo atribui a irritação de Lira ao fato de que o Planalto não aceitou a proposta defendida pelo Centrão de que as emendas fossem liberadas diretamente na relação dos parlamentares com cada ministério. A recusa acabou oficializada um dia após os ataques de Lira ao ministro, na publicação de uma portaria que manteve com Padilha a decisão sobre a destinação dos recursos. Publicada no dia 12, o documento havia sido redigido no dia 1º de abril e Lira já estaria ciente da recusa do Planalto em aceitar a proposta quando vociferou contra Padilha.

Mas não foi só isso. Outros dois episódios enfureceram Lira. Um foi a demissão de seu primo, Wilson César de Lira Santos, que ocupava o cargo de superintendente do Incra em Alagoas e colecionava uma lista de atritos com movimentos sociais do campo. Nesse caso, o embate foi com o ministro de Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, de quem Lira reclamou quando viu a exoneração do parente publicada no Diário Oficial da União (DOU). Teixeira precisou explicar publicamente que “não havia movimento do governo contra o presidente da Câmara", desculpa que não convenceu o alagoano. “Ele acha que é um movimento do governo contra ele e eu fui lá dizer que não se trata disso. Inclusive, eu disse que ele pode oferecer um nome que dialogue com os movimentos sociais agrários e que não brigue com o MST”, disse Teixeira, em conversa com o Meio. Um dos argumentos de Teixeira é que a demissão de César já havia sido informada a Lira, que aceitara a decisão com a condição de apontar um novo afilhado. O que ele fez.

O outro vinha da semana anterior, quando Lira levou ao plenário a votação do relatório que confirmava a prisão do deputado Chiquinho Brazão, acusado de ter mandado matar, em 2018, a vereadora do PSOL Marielle Franco. Brazão foi preso a mando do STF, no processo relatado pelo ministro Alexandre de Moraes, mas a Câmara precisava avalizar a decisão. Nessa sessão, Lira chegou a abrir mão de cobrar o chamado efeito administrativo sobre os ausentes. Trata-se de um desconto no vencimento dos deputados quando eles faltam a votações e sempre é cobrado. Só que, naquela sessão, não houve esse rigor. Isso porque seu aliado político e um dos nomes à sucessão, Elmar Nascimento, articulava com deputados do Centrão o esvaziamento da sessão para tentar impedir que a bancada à esquerda conseguisse os 257 votos para a aprovação do relatório. Resultado: a sessão aprovou a prisão com 277 votos a 129 contra. Outros 28 se abstiveram, ou seja, foram à Câmara, mas não votaram. Mais 78 estavam ausentes. E Lira culpou o governo.

Na terça-feira, Lira reuniu os líderes partidários na residência oficial da Câmara. Disse que se sentia “retaliado”. E, então, anunciou que, a partir dali, priorizaria pautas da oposição ao governo Lula nas votações — incluindo as de costume, o pacote anti-invasão de terras e a derrubada de vetos do presidente, entre eles ao projeto da “saidinha”. Aproveitou o ensejo de vingança e já mandou o alerta ao Judiciário também: criou grupos de trabalho para pensar uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para blindar parlamentares de decisões do STF, e outro sobre fake news. O ministro Alexandre de Moraes, do STF, fez, então, uma visita ao Congresso, reuniu-se com Lira e Pacheco e tentou dirimir os sentimentos de vingança e substituí-los por negociação.

Na mesma reunião, Lira ainda ameaçou abrir pelo menos cinco comissões parlamentares de inquérito (CPIs) na Câmara, ideia que foi considerada um blefe pelo governo, visto que nenhum dos pedidos da lista de oito protocolados na Casa levava preocupação para o Planalto. Então, na quarta-feira, Lira sacou da manga uma nova carta: colocou na pauta de votação um projeto de decreto legislativo (PDL) contestando o decreto do governo que regulamenta a igualdade de salários entre homens e mulheres, editado em novembro do ano passado. Com esse movimento, o presidente da Câmara chamou a atenção. Colocou a articulação do governo em xeque e demonstrou que ainda tem “tinta na caneta” — ao menos até fevereiro do ano que vem, quando ocorrem as eleições para a sucessão na Câmara e no Senado.

Lula estava na Colômbia e, com ele, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves. “Estava com Janja e quando vimos isso, levamos ao presidente”, disse a ministra ao Meio. As condições de reação não eram as melhores. O governo sabia que se Padilha entrasse em campo para tentar resolver a questão – o que seria natural considerando a sua atribuição –, as negociações poderiam desandar mais ainda. De Bogotá, alertado por Cida e pela primeira-dama, o próprio presidente passou a cuidar da reação, ligando diretamente para o líder do governo na Câmara, José Guimarães.

Em Brasília, a deputada Benedita da Silva chamou uma reunião da bancada feminina, com a presença da deputada Adriana Ventura, que apresentou o PDL contrário à igualdade salarial na véspera. O encontro foi tenso. Enquanto isso, a deputada Maria do Rosário saía e entrava da pequena sala, tratando pelo telefone com o presidente da Câmara. O alívio apareceu cerca de uma hora após o início da reunião. Rosário entrou na sala anunciando que Lira havia desistido de levar o PDL ao plenário. “Ele retirou da pauta”, anunciou a deputada gaúcha, uma das poucas mulheres do PT que conseguem uma boa articulação com o presidente da Câmara. “Se fosse a voto, perderíamos”, disse, aliviada, uma das funcionárias do Ministério das Mulheres. Em seguida, ela diagnosticou: “Foi por vingança”.

Casa Alta

O próximo capítulo da revanche entre Câmara e Planalto pode vir diretamente de um jogo de vinganças entre Senado e Supremo Tribunal Federal. A oposição ao governo quer emplacar a votação da chamada PEC das Drogas, recém-aprovada no Senado, confiando que Lira, “só de teimosia”, vai pautar a proposta o mais rápido possível. A emenda, de autoria de Rodrigo Pacheco, foi aprovada no Senado na terça — e foi construída num clima de revanche depois de o STF avançar na votação para determinar a quantidade de droga que diferencia um usuário de um traficante.

O governo, no entanto, não enxerga a PEC das Drogas como vê a questão da igualdade salarial entre homens e mulheres e dificilmente vai se mobilizar com o mesmo afinco para derrotá-la ou adiá-la. O governo entende que teria mais condições de vencer Lira em uma disputa pela opinião popular defendendo salários iguais entre gêneros do que pela questão da legislação sobre drogas, que divide o eleitorado. Além disso, Lula segue em busca da simpatia de conservadores e religiosos e não daria um passo decisivo com o qual perderia, de vez, as chances de conquistar essa fatia de eleitores. Além disso, essa vingança não é dele, por assim dizer. Não que o Senado lhe tenha sido exatamente dócil.

Ainda na quarta-feira, a Comissão de Constituição e Justiça, presidida por Davi Alcolumbre, aprovou a PEC do quinquênio, que prevê aumento de 5% a cada cinco anos para carreiras do Judiciário e pode causar um impacto de até R$ 42 bilhões aos cofres públicos por ano. Não exatamente no espírito de rigor fiscal que os parlamentares cobram tanto do governo. Não à toa, para desarmar essa bomba, o escolhido foi o ministro Fernando Haddad.

A lógica da vingança é tão entranhada em Brasília que há os que pensam que ela nunca acabará e que seguirá movendo as relações. Alcolumbre, por exemplo, é, até o momento, o nome mais articulado para a sucessão de Pacheco. O governo antevê que não haverá páreo para ele e teme dias piores, porque Alcolumbre é um senador que negocia mais e que transita mais entre um polo político e outro. Além disso, um membro do Judiciário, em reservado, aponta o senador como uma pessoa mais vingativa que Pacheco. A aposta é que, com Alcolumbre, a rixa com o Supremo será frequente e que ele, ao contrário de Pacheco, seria capaz de atender um antigo desejo da oposição: o de colocar para tramitar processos de impeachment contra ministros do STF. “Não podemos esquecer que ele teve sua reeleição como presidente do Senado barrada com os votos de três ministros do STF, proferidos às 20h de um domingo. Ele, eu tenho certeza, não se esqueceu disso.” Os votos foram dados em dezembro de 2020 pelos ministros Barroso, Luiz Fux, Edson Fachin, Cármen Lúcia, Rosa Weber e Marco Aurélio.

Harmonia “agitada”

Houve outros lances do noticiário político que poderiam se enquadrar no instinto vingativo. Tivemos ainda o vazamento de ofícios de Moraes sobre a suspensão de contas do X a deputados americanos, por exemplo. E aqui vai depender do ângulo de quem conta a história. Moraes suspende contas por querer se vingar de quem tem uma ideologia diferente da sua, como quer fazer crer a extrema direita? Ou por encontrar nelas postagens de clara ameaça de golpe? “A desarmonia entre os Poderes é incentivada incessantemente por extremistas nas redes sociais”, aponta Lynch.

Um regime só consegue ser estável com um modelo de governabilidade funcional. Hoje, temos um Executivo sem apoio, um Congresso que quer se expandir e um Judiciário acuado pelo golpismo. Cada Poder busca se reacomodar às custas do outro e não em consenso com o outro. “Na prática, esse sentimento de vingança imperando é manifestação da descrença no pacto de 1988, a Constituição. Ela representa um consenso mínimo, que autoriza divergências internas. Quando se passa a questionar o papel do STF, por exemplo, os Poderes ficam desbalanceados.” Ou, nas palavras do vice-presidente, Geraldo Alckmin, numa recaída tucana, ficam em uma "harmonia agitada".

Não há apenas uma ideologia que aja movida à vingança, como ficou claro. Mas a ascensão de um extremismo à direita no Brasil permitiu que se instalasse um ambiente em que a política é sinônimo de guerra, aos moldes de Carl Schmitt. O outro é sempre inimigo. E, quando todos se sentem ameaçados, apela-se aos instintos, à vingança. É um modelo de que não escapa ninguém, de sobrevivência, de luta permanente, nunca de conciliação.

O mito fundador de Brasília

Ele está no meio de nós. Dá nome a colégios, lojas, pizzarias. Tem um bairro batizado em sua homenagem e, por fim, é padroeiro da capital. Mesmo sem sequer ter pisado no Brasil, Dom Bosco é uma figura pulsante no Distrito Federal, tendo diversos devotos nas 153 paróquias da cidade. Em Brasília, tão numerosas quanto as placas com o “JK”, as homenagens ao santo são marca da terra candanga. Italiano, João Melchior Bosco viveu entre 1815 e 1888, tendo passado a maior parte de seus dias em Turim, e, por conta de suas ditas profecias, entrou na história do Brasil, sendo usado por interesses diversos com objetivos distintos, mas todos relacionados à sede do poder nacional. 

Depois das celebrações religiosas em um dia de agosto de 1883, ele se deitou. Acordou num sonho, segundo diz, e um jovem o guiou pela América do Sul enquanto lhe mostrava uma futura civilização, capaz de promover o crescimento daquela região. A princípio, era apenas mais uma dita profecia daquele frade, em meio a tantas que já tivera ou escrevera. É possível levantar dúvidas sobre o sonho de várias formas, ainda que isso represente uma ofensa visceral a qualquer brasiliense. 

Na Europa, já se sabia que alguns membros da elite brasileira debatiam a interiorização com alguma frequência. José Bonifácio o fez em 1821, com instruções à representação paulista que foi às Cortes de Lisboa. O historiador Francisco de Varnhagen escrevia sobre isso de Viena, onde chefiava a diplomacia brasileira. Isso para não falar que a profecia tem buracos comumente preenchidos com a fé, numa espécie de “crer para ver”. Fundador da Ordem Salesiana, D. Bosco foi canonizado duas vezes: a primeira em 1929, por ordem do Papa Pio XIII; a outra em 1956, no interior do Brasil, por obra de políticos audaciosos e determinados em ver os principais prédios da República em seus quintais.

A “Operação Dom Bosco”

Juscelino Kubitschek fora eleito em 1955 com uma meta síntese, como é sabido. A construção da terceira capital resumia os projetos para desenvolvimento do país que JK pensara. Apesar disso, enfrentava forte oposição, com um Congresso dominado pela União Democrática Nacional, a UDN. Em maio de 1956, era difícil crer que aquele novo governo com sérios problemas de articulação passaria propostas para edificar uma cidade em local ermo. O mudancismo, depois de avanços no final do século 19, estava em baixa. Apenas em Goiás ainda se nutria a esperança de, um dia, sediar os prédios da República. Lá, políticos como Venerando Borges — o primeiro prefeito de Goiânia —, Segismundo Mello, advogado, e Juca Ludovico, então governador, militavam contra a vontade de políticos mineiros de levar a sede do poder ao Triângulo Mineiro. 

E aí surgiu um plano. JK e Israel Pinheiro, braço-direito do presidente, visitariam Uberaba no dia 3 para a Exposição de Gado. Essa era a chance dos mudancistas. JK dormiu na casa do prefeito, mas Israel rumou para o Grande Hotel. Venerando Borges entrou no local e esperou, levando a tiracolo um livro intitulado A nova capital do Brasil – estudos e conclusões. A obra reunia artigos defendendo o Planalto Central para a causa. Nesta obra, Segismundo Mello incluiu uma menção ao frade italiano, cujo sonho não era tão conhecido no Brasil. Foi só por meio do petróleo que a tal profecia se fez saber por aqui: o escritor Monteiro Lobato publicou, em 1935, no Diário de São Paulo, um texto intitulado “Até os santos afirmam que há petróleo no Brasil”, onde, numa interpretação larga, ele considerou que a passagem em que o santo europeu afirma que a cidade “verterá leite e mel” referia-se à exploração do óleo. 

Com ajuda do padre Cleto Caliman, um salesiano, eles localizaram o relato do sonho entre os 19 tomos da biografia de D. Bosco. Traduzido, era mais vago ainda. Não dava maiores pistas sobre a localização da dita cidade. Instado a “dar um jeitinho”, o padre declinou. Como manobra editorial, Mello publicou uma foto do santo com uma legenda enviesada: o homem “que profetizou uma civilização, no interior do Brasil, de impressionar o mundo, à altura do paralelo 15”. No hotel, Venerando Borges emparelhou com Israel Pinheiro — e ele era um notório devoto do italiano, pois os salesianos lhe bancaram os estudos depois da morte do pai, o ex-governador de Minas João Pinheiro.

Entraram juntos Borges e Pinheiro no elevador e o goiano deixou o livro à vista do mineiro. Deu certo. Israel pediu-lhe um empréstimo. Fazendo-se de bobo, Borges disse que Israel podia ficar com o livro, pois tinha outros. Era mentira. O exemplar único fora criado justamente para chegar às mãos do governista. O episódio está narrado em Brasília - Memória da Construção (2003), de Lourenço Tamanini.

Israel enlouqueceu. O santo de sua devoção e a principal promessa do governo que compunha estavam unidas por uma foto de legenda tendenciosa. A partir daí, a suposta profecia passou a ser usada para conclamar a população, majoritariamente católica, à meta síntese de Juscelino. Em setembro, o governo aprovou a Mensagem de Anápolis (ou a Lei 2.874/56), que criava as ferramentas para erguer a cidade, como a Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), e batizou a futura capital em homenagem a José Bonifácio: Brasília, nome cunhado pelo patriarca da Independência. 

Primeiro presidente da Novacap, Israel Pinheiro mandou erguer a Ermida D. Bosco, primeira obra de alvenaria de Brasília, às margens do que viria a ser o Lago Paranoá. A partir daí, a narrativa do sonho do frade ganhou os corações candangos. Poucos anos depois da inauguração, ela se configurou numa ferramenta do regime militar contra Juscelino. 

O choro do 'presidente sorriso'

Cassado pela Ditadura em 1964, Juscelino voltou a Brasília em 1972 para um passeio. Sob um chapéu Panamá que lhe garantia anonimato, rodou pela capital e chorou em silêncio. No Eixo Monumental, JK viu a Catedral Metropolitana, que não estava pronta em 21 de abril de 1960. “Que bela obra o Oscar nos presenteou”, disse ele ao motorista. JK, então, ouviu de seu chofer que a igreja jamais havia lotado, não era muito popular. “Mas vai lotar no dia do meu enterro”, profetizou. 

Juscelino morreu em um acidente na via Dutra, em 1976. Como anteviu, a Catedral foi tomada em seu velório. Uma multidão de 200 mil pessoas, quase metade das 550 mil que moravam na cidade, improvisou o cortejo fúnebre até o cemitério. De acordo com relatos da época, o povo, que gritava em prol da Democracia, apontava os dedos aos militares e urrava que os fardados “mataram o doutor Juscelino!”.

Jornalista e professor, Jarbas Silva Marques tem motivos de sobra para desconfiar dos militares. Foi preso e torturado pela repressão. Em depoimento na Câmara, em 2009, contou publicamente “que sentiu no corpo o processo de evolução científica da tortura”. Jarbas não hesita em combater a idolatria a D. Bosco na capital, por motivos menos religiosos que políticos. “Os militares aproveitaram a manobra dos goianos e ficaram falando sobre D. Bosco para fazer esquecer o legado do doutor Juscelino”, conta. 

“Isso se deu através da comunicação, com agentes nas redações dos jornais. A repressão organizou essa história e procurou convencer as pessoas”, lembra. “A ditadura criava pseudônimos e publicava histórias sobre D. Bosco. O Correio Braziliense [um dos maiores jornais do país, à época] publicava e outros jornais, de fora, copiavam. Antes da internet, já tinha desinformação nas redações durante o governo militar”, acrescenta o jornalista. E assim se constróem mitos.

A guerra dos chips

Eles são a base de muitos dispositivos modernos. Estão no seu smartphone, na TV da sua sala e no computador que você pode estar usando agora para ler esse texto. São peças fundamentais para a produção de consoles de jogos, antenas de celulares, roteadores de internet, satélites, carros, equipamentos de diagnósticos médicos, computação de alta performance e até mesmo aviões de combate. Além disso, muitos avanços na inteligência artificial, computação em nuvem, internet das coisas e outras tecnologias dependem diretamente do desenvolvimento contínuo desse componente para impulsionar a inovação. Eles são, acima de tudo, a peça central da fricção geopolítica e da concorrência que estão remodelando o cenário econômico mundial e impulsionando decisões de investimento multibilionárias.

Integrante da classe de materiais capazes de conduzir correntes elétricas, os semicondutores são matéria-prima para a produção de chips usados nos mais diversos aparelhos eletrônicos. Com a popularização da IA e de veículos elétricos e autônomos, a demanda pelos semicondutores cresceu, fazendo com que o controle sobre a produção e o acesso à essa tecnologia virassem uma questão estratégica para muitos países e empresas. Por esta razão, dominar o mercado global de semicondutores é também dominar a economia mundial. Nesse cenário, duas nações se enfrentam em uma guerra: Estados Unidos e China.

A “guerra dos chips” entre as maiores potências do mundo tem raízes em uma série de fatores que se acumularam ao longo do tempo, com momentos de tensão e conflitos nos campos diplomático e econômico. Mas algumas das disputas atuais têm suas raízes no século 20, entre elas o apoio dos Estados Unidos aos nacionalistas durante a Revolução Chinesa, além da assinatura do acordo de proteção mútua com Taiwan, território considerado uma província rebelde pela China. Durante a Guerra Fria, houve uma tentativa do governo americano de reaproximação com a China para inseri-la no contexto da economia global capitalista. No entanto, a economia chinesa cresceu de maneira acelerada no final do século, alcançando um importante status no cenário internacional e ameaçando a hegemonia econômica norte-americana. A partir daí, essa rivalidade geopolítica e comercial alimentou as disputas por tecnologia, proteção da propriedade intelectual e controle sobre a cadeia de suprimentos de semicondutores.

China e EUA são historicamente líderes na fabricação de semicondutores. Entretanto, à medida que a China cresceu econômica e tecnologicamente, os líderes americanos começaram a se preocupar com a dependência em relação aos produtos tecnológicos chineses. Atualmente, a TSMC, com sede na cidade taiwanesa de Hsinchu, produz cerca de 90% dos semicondutores superavançados do mundo. Já a sul-coreana Samsung e a americana Intel também figuram na lista de maiores fabricantes de chips do mundo. Enquanto isso, a norte-americana Nvidia tornou-se fabricante líder mundial de chips de inteligência artificial. Também são potências a holding ASML, uma multinacional holandesa que produz máquinas para a criação de semicondutores, e a Advanced Micro Devices (AMD).

Nos últimos anos, os Estados Unidos têm se movimentado para bloquear o acesso da China aos semicondutores mais avançados, alegando questões de segurança nacional e risco de espionagem. Em 2018, o então presidente Donald Trump aprovou novas tarifas para produtos chineses, com objetivo de aumentar a compra de produtos nacionais e criar empregos. Quando a pandemia de covid-19 provocou interrupções nas cadeias de abastecimento, o governo entendeu que não poderia depender exclusivamente da China. Em 2022, Joe Biden assinou a Lei de Chips e Ciência para incentivar empresas de fora a construírem fábricas no território americano. No ano passado, os EUA também ampliaram a proibição da venda de chips de IA para restringir a capacidade chinesa “tanto de comprar quanto de fabricar certos chips high-end críticos para a vantagem militar”. O movimento de “encurralar” a China se intensificou nas últimas semanas, com a Casa Branca anunciando subsídios para empresas estrangeiras. A Samsung ganhará até US$ 6,4 bilhões para a fabricação de chips de última geração no Texas. Também foram aprovados recursos à Intel e à TSMC para evitar a escassez de semicondutores no país.

A China, por sua vez, acusa os EUA de praticarem “terrorismo tecnológico” e de obstruir injustamente seu crescimento econômico. Como resposta, Pequim começou a proibir o uso de computadores e servidores equipados com CPUs da AMD e Intel no país. A medida estabelece que órgãos do governo não podem mais comprar equipamentos com esses chips, apenas instituições municipais. Ao proibir a compra e o uso de hardwares de gigantes americanas, o governo chinês visa reduzir a dependência do sistema operacional Windows e outros programas ocidentais. Dessa forma, o país focará em soluções feitas no próprio país para acelerar a evolução tecnológica de chips chineses.

A grande questão é se os americanos conseguirão usar sua influência para enfraquecer Pequim na guerra pelos semicondutores e na disputa tecnológica. Para o economista José Eduardo Roselino, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), está claro que as sanções impostas pelos EUA “visam barrar o desenvolvimento chinês”. “A questão não é de sigilo ou de segurança nacional, e sim de uma disputa pela fronteira tecnológica”, disse. “Mas tudo indica que os chineses estão, sim, conseguindo produzir seus próprios semicondutores.”

Embora seja cedo para medir o avanço chinês nessa empreitada, Roselino citou os últimos lançamentos da Huawei. Depois de voltar ao mercado de celulares avançados com o modelo Mate 60, a multinacional de telecomunicações lançou nesta semana o Pura70. O chip Kirin 9000S usado nos dois modelos da Huawei foi supostamente fabricado pela empresa chinesa SMIC, apoiada pela China. A Huawei está sob sanção dos EUA desde 2019, o que a impede de fazer negócios com empresas americanas e usar propriedade intelectual de companhias do país. A empresa não tem mais acesso aos serviços do Google para seus smartphones, por exemplo. Na visão de Roselino, a capacidade tecnológica demonstrada pela China ao longo dos anos e o movimento da Huawei indicam que a política americana pode não sair como planejada. “Talvez os americanos tenham reagido tarde demais para tentar barrar o desenvolvimento chinês. Aparentemente, a China está lançando semicondutores, e o desafio dos analistas ocidentais é entender como eles conseguiram fazer isso.”

Para ele, o sistema financeiro chinês baseado no controle estatal faz com que o país tenha uma “capacidade enorme” de direcionar recursos, com uma “estrutura de ciência, tecnologia e inovação extremamente sofisticada”. “Desde o início dos anos 2000, a questão tecnológica é central no planejamento do Estado chinês. Eles entendem que o projeto nacional deles depende de construir forças produtivas mais avançadas, com uma economia cada vez mais voltada para a inovação.” Roselino acredita que os grandes “perdedores” desta guerra podem ser as empresas ocidentais e as aliadas dos Estados Unidos. Isso porque a China é o maior mercado para companhias como a Intel.

Por outro lado, Chris Miller, professor associado de História Internacional na Universidade Tufts, nos EUA, reconhece que a China fez enormes avanços, mas ele acredita que o país continua pelo menos cinco anos atrás nessa corrida. Em entrevista ao Brazil Journal no fim do ano passado, o autor de livros como A Guerra dos Chips (Globo Livros, 2023) diz que as proibições vão intensificar a dificuldade de empresas chinesas terem acesso aos chips mais sofisticados, gerando dúvida sobre a capacidade da China de produzir esse tipo de semicondutor.

Segundo o economista, é cedo para dizer. “O novo chip da Huawei (usado no Mate 60) é uma conquista, mas é uma conquista altamente irracional, em termos econômicos. Não é um grande avanço. Conseguiram fazer um celular um pouco pior do que o iPhone e potencialmente bem mais caro”, disse Miller. “Não é que seja especialmente bom, mas é bom o suficiente para que a China possa começar a proibir formal ou informalmente o uso de produtos estrangeiros como iPhones, no mercado chinês”. Em um artigo para o Financial Times, ele afirmou: "Dado que as restrições ocidentais às exportações de chips para a China significam que o país não pode produzir os chips de processador mais avançados, grande parte da produção do país será de chips de processadores básicos, que são amplamente utilizados em automóveis, bens domésticos e dispositivos de consumo”.

O mercado de smartphones não é o único parâmetro para analisar a capacidade da China e dos Estados Unidos nessa guerra tecnológica. Pequim pretende construir uma cadeia de fornecimento de semicondutores local que esteja protegida da ameaça de sanções dos Estados Unidos para se tornar uma superpotência automobilística em veículos elétricos e autônomos. Mas este é um assunto para outra pauta.

Qual o centro do seu mundo? Confira os links mais clicados da semana pelos leitores:

1. Folha: O novo mapa-múndi do IBGE, com o Brasil no centro.

2. g1: PEC das Drogas — como votou cada senador.

3. YouTube: O trailer de Cem Anos de Solidão.

4. Meio: Ponto de Partida — Um isentão e um esquerdista entram no bar.

5. YouTube: Conheça a nova geração do robô Atlas.

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