Edição de Sábado: O pêndulo chileno

Na posse do presidente Lula, em janeiro, produziu-se uma sequência de fotos em Brasília com os chefes de Estado que vieram prestigiar o novo ciclo do país. Nelas, alguns líderes políticos da América Latina exibem sorrisos que não são estranhos ao olhar brasileiro — à exceção de um, mais arejado e luminoso. Esse dispensa gravata, dobra as mangas da camisa, exibe tatuagens e tem menos de 40 anos de idade. E há exatamente um ano chegou à presidência do Chile. Gabriel Boric Font, o presidente chileno, pisava oficialmente pela primeira vez no Brasil.

Na ocasião de sua visita, alegre com a vitória de seu colega da esquerda, foi logo dizendo: “Durante muito tempo, o Chile foi apresentado como um Jaguar à parte na América Latina. Mas eu, como presidente, reivindico um Chile profundamente latino-americano. E me interessa construir desde a nossa região para o mundo”. Veio criar laços e acabou tocando no delicado ponto de que o Chile destoa do resto da América Latina, mesmo a hispânica. Lá, o modelo neoliberal chegou antes e se enraizou mais — o que às vezes, à distância e com o brilho de números como o da renda per capita (mais que o dobro da brasileira) e a média anual de crescimento (em torno de 5% até pouco tempo atrás), gera uma certa inveja. Mas nem tudo o que reluz é bem-estar social.

Boric é um tipo de frases, famoso por escrever seus discursos usando o próprio laptop. Depois de vencer as primárias para ser o candidato da esquerda, em julho de 2021, fez um apelo emotivo ao povo chileno: “Não temam a juventude. Não temam a juventude para governar esse país”. E acrescentou, profético: “O Chile foi o berço do neoliberalismo e também será sua cova”. Foi assim que conquistou o punhado de eleitores que faltava para se tornar o presidente mais jovem da história chilena e se tornar símbolo de uma nova esquerda. A outra parte já estava decidida a votar nele para evitar a vitória de seu oponente, o ultradireitista José António Kast, o “Bolsonaro chileno”. Boric se elegeu com mais de 55% dos votos.

A questão é: com mais três anos de mandato, sem poder apelar à reeleição, que no Chile não existe, Boric poderá cumprir o que prometeu e começar a cavar essa cova? O atual cenário aponta a um “não”, que começou a se desenhar em outubro do ano passado, com a rejeição de 62% dos chilenos à proposta de uma nova Constituição abraçada por seu governo. Mas isso não explica tudo.

O rotundo “não”

Com a constituinte já em curso quando Boric assume — resultado de um plebiscito de outubro de 2020, em que o Chile optou por substituir a atual Constituição do general Pinochet —, matar o projeto neoliberal teria que ficar para depois. Ao se instalar no Palácio da Moeda, o presidente fez da nova Carta a maior bandeira dos ideais da esquerda jovem e progressista que o formou e alçou ao poder.

Foi uma surpresa para ele (e eles) quando o novo texto, redigido em sua maioria por legisladores independentes e de esquerda, terminou rejeitado com tamanha contundência, levando a aprovação do governo a meros 20% na ocasião. Nele, afinal, estavam assentadas as bases de um país “profundamente democrático”: poderes descentralizados, valorização da cultura e dos territórios indígenas, paridade de gênero, ampla descriminalização do aborto e até a contemplação do direito dos animais, considerados “seres conscientes”. O voto no Chile é facultativo, mas na constituinte foi obrigatório. E as urnas falaram alto: os chilenos não estavam prontos para tão grande transformação. Havia espaço demais para questões consideradas identitárias.E

Embora a pressão por uma nova Constituição tenha vindo na esteira de uma série de protestos de 2019 — o chamado “estallido social”, quando as ruas do país se encheram de manifestantes sem lideranças reconhecíveis, mas com queixas claras —, não era por isso que o povo clamava nos protestos. Conforme explica Pierina Ferreti, diretora da Fundação Nodo XXI, centro de pensamento da esquerda chilena, ao portal uruguaio Zur: “A revolta não se produz para mudar a Constituição. Não era uma demanda imediata. As demandas eram materiais. A Constituição, ao contrário, era um velho tema da esquerda, da centro-esquerda e das minorias politizadas. Apesar de tudo, as pesquisas continuam marcando uma opinião favorável à nova Constituição. Mas quero destacar que não há uma continuidade automática entre revolta e processo constituinte ou, depois, entre revolta e governo de esquerda. Ainda que nem um nem o outro teria acontecido sem a revolta”.

As demandas materiais citadas por Pierina estão vivas e reunidas numa rejeição cada vez maior dos modelos de aposentadoria, educação e saúde que vigoram no Chile. Juntos eles configuram o que a socióloga chama de “insegurança vital”. São condições de “uma sociedade onde todas as áreas da vida social foram mercantilizadas, onde não existem direitos sociais universais, nem serviços sociais públicos de qualidade, que gerem confiança e experiências virtuosas de proteção social diante de doenças ou da velhice. No Chile, todo mundo sabe que uma doença pode desmantelar economicamente uma família. Sabe também que sua aposentadoria será insuficiente. A isso se somam condições precárias de trabalho, baixos salários, altos níveis de endividamento para financiar custos básicos (pagar a compra do supermercado um procedimento médico com cartão de crédito, por exemplo)”, afirma.

Sociedade impaciente

No Chile, os problemas se acumulam e só trocam de mãos. Quando eles passaram às de Boric, ele precisou reagir aos recados do povo, resistente a mudanças, mas cuja insatisfação desde o “estallido" só cresceu com as agruras da pandemia do coronavírus. Jogando o jogo político, depois da rejeição também a ele que resultou da Constituinte, o presidente resolveu se temperar. Correu para renovar seu gabinete ministerial, agregando membros da esquerda e da centro-esquerda que estava acostumado a criticar. Quando se pronunciou depois da amarga derrota, usou essas palavras: “Como disse um velho militante, estar à frente de sua época é uma forma elegante de estar equivocado”.

Aos chilenos, vira e mexe pede paciência. Mas isso é algo que eles não têm. Autor do livro La sociedad impaciente (ed. Ariel; 2023), o sociólogo Eugenio Tironi arrisca um porquê: “A nossa é uma sociedade que sente que suas conquistas ficam sempre pra depois. Que acha que o presente não é uma fase, nem que haja um processo, mas que o presente é tudo. Uma sociedade em que as pessoas não se sentem parte de agrupamentos e coletivos e que vê em si mesma seu próprio destino, assim como o fracasso. Não acredita na autoridade nem na ciência, e quer resultados imediatos”, adverte.

Mas o que tem essa leitura, que descreve hoje o Brasil e outros países ditos em desenvolvimento, de tão local? “No Chile, nos últimos 30 anos, fomos submetidos a um ataque monstruoso, inicialmente da direita e depois também da esquerda. Então, nos tornamos um povo que rapidamente se desencanta. Elege um presidente em poucos meses e depois passa a buscar algo totalmente diferente do que buscava um tempo atrás”, complementa Tironi, colunista do jornal El Mercurio. É o que ele descreve como o “movimento pendular” da sociedade chilena, que desde o fim da ditadura de Augusto Pinochet alterna “velhos” representantes de uma esquerda e uma direita que entram e saem sem fazer diferença: “Vide os 16 anos em que nos alternamos entre Michelle Bachelet e Sebastián Piñera, quatro anos dela, depois ele, ela, ele...”.

Anjo Gabriel

Foi nesse contexto de impaciência que surgiu a imagem lustrosa de um político jovem, moderno e aguerrido. Descendente de croatas, a família Boric, Gabriel nasceu em 11 de fevereiro de 1986 em Punta Arenas, na Patagônia chilena. Hoje tem 37 anos e uma companheira, Irina Karamanos, que recentemente abdicou das funções de primeira-dama.

Engajado politicamente desde cedo, participou ativamente dos protestos estudantis de 2011, quando se tornou presidente da Federação de Estudantes da Universidade do Chile, na capital. Foi lá que estudou Direito, mas, em lugar de prestar o exame para ser advogado, atuou na política até estrear como deputado em 2014. No calor do dito “estallido”, deu um passo à frente e candidatou-se às eleições presidenciais do país pelo partido Convergência Social quando estava em seu segundo mandato como parlamentar. Diante de Kast (Ação Republicana), o oponente que derrotou no segundo turno conquistando 55,86% dos votos, trouxe à mente de muitos a imagem de um anjo que lhes sussurra a um ouvido, enquanto no outro fala o Diabo. Melhor o primeiro.

Boric levou às urnas, quando votar ainda não era obrigatório no Chile, mais de um milhão de pessoas que não tinham comparecido ao primeiro turno das eleições. São eleitores que deram seu voto de confiança a uma esquerda aparentemente renovada, celebrando seus novos símbolos. Tinham agora um presidente que se declara um ávido leitor e poeta frustrado, dispensa o carro para ir ao trabalho, sofre declaradamente de TOC, interage em redes sociais com celebridades descoladas como o ator Pedro Pascal (The Last of Us, Narcos) e como fez quando se declarou fã da cantora e compositora Taylor Swift. “Aqui no Chile sabemos que você compõe suas próprias canções com o coração. Abraços do Sul, Taylor”, escreveu em seu tuíte.

Gestos e declarações do presidente também fomentaram muita esperança. “Esse vai ser um governo feminista”, disse ele em seu discurso de vitória, pouco antes de empossar um ministério com 14 mulheres e 10 homens. Com a mesma confiança, apressou-se em criticar governos autoritários de esquerda, em especial a Nicarágua de Daniel Ortega; ressaltou a importância da cultura, da saúde mental e da proteção ao meio-ambiente — uma questão especialmente sensível no Chile. Por isso, contava com o apoio de diversos movimentos sociais, esperançosos de romper com o modelo extrativista chileno.

Moderação e desorientação

Boric já não conta com o mesmo respaldo, e o pêndulo está à espreita, com chances de arrastá-lo. Parte importante da esquerda que apoiou Boric, os movimentos sociais estão desapontados com o rumo de seu governo. Há hoje graves tensões com setores mais radicais e autonomistas do povo mapuche, de que o presidente a princípio tentou se aproximar, depois passou a reprimir com maior presença militar na região da Araucanía, no Sul. No Norte, também instalou as Forças Armadas para o controle das fronteiras por conta dos altos níveis de migração, sobretudo de venezuelanos. A 50 anos do golpe militar, que serão completados em setembro, são medidas que causam controvérsia.

Isso sem falar nas críticas vindas dos setores ambientais. Catalina Huerta, coordenadora política do Movimento de Defesa da Água, da Terra e do Meio-Ambiente, expõe a visão da organização criada em 2009 para promover o acesso à água. No Chile, o serviço de fornecimento de água é 100% privado, o que o torna cada vez mais difícil para os mais pobres. “Víamos o programa de Boric como uma transição, que atendia a necessidade de melhorar certas condições do país. Dessa maneira, nos posicionamos com certa esperança e inclusive participamos da campanha eleitoral. Havia mais abertura. Hoje, vemos que o programa foi moderado e que há desorientações também. Estamos nos distanciando desse governo cada vez mais”.

A moderação e a “desorientação” a que se refere a socióloga ficam claros, segundo ela, na continuidade do Acordo Abrangente e Progressivo da Parceria Trans-Pacífica, o TPP11. Assinado em 2016, esse tratado reúne 12 países da Ásia, Oceania, América do Norte e América do Sul (Chile e Peru) para o estabelecimento de uma área de livre comércio. As críticas de parte da sociedade são de que os chilenos entram com a exploração econômica de seus recursos naturais em troca de vantagens comerciais que não reduzem as desigualdades sociais no país e só levam embora o que hoje lhes faz falta. “Boric assinou o TPP11, que ele rejeitou profundamente no governo anterior, de Piñera”, ela diz, “reforçando o modelo econômico extrativista”. O presidente que chegou a vestir uma camiseta com os dizeres “não ao TPP” se defende do paradoxo afirmando “respeitar profundamente o Congresso”, que votou a seu favor. “Mesmo que não seja o resultado que eu queria”, disse ele em pronunciamento oficial.

Horizonte turvo

Na última quarta-feira, 8 de março, a Câmara dos Deputados do Chile rejeitou a proposta de reforma tributária de Boric, que previa o aumento de impostos com taxação progressiva e pressão sobre os grandes patrimônios, em mais uma derrota do governo, atualmente desaprovado por 60% da população. Mais uma vez, as demandas materiais ficarão para depois. “Continuaremos governando”, afirmou o presidente, apesar de falar em “golpe à esperança”.

Se uma nova Constituição, por sua parte, vai de fato contribuir com mudanças reais, não se sabe. Ainda de pé, o processo segue, agora com menos interesse popular, de acordo com as pesquisas. O Congresso chegou em dezembro a um acordo para a segunda tentativa de redação da Carta — trabalho que será feito por um conselho de 50 pessoas eleitas por voto popular e contará com o apoio de 24 especialistas designados pela casa. Deve ser concluído em outubro, e um novo plebiscito já está marcado para novembro deste ano. E agora, vale ressaltar, adotou-se permanentemente o voto obrigatório no país.

O resultado desse trabalho, apesar de “mais frio, mais técnico e mais conservador”, deve resultar, para Eugenio Tironi, numa Constituição diferente da atual, “incorporando os avanços na igualdade de gêneros, reforçando a descentralização e a importância dos territórios frente a Santiago, por exemplo”. Mas “deixando de fora elementos de um Estado subsidiário” que, ele acredita, os chilenos sempre hão de rejeitar. “Há um pequeno capitalista que todos temos dentro de nós, que além de tudo é meritocrático e está muito vivo. Ele salta à vista quando nos dizem que vamos passar, por exemplo, de um sistema individual de pensão a um coletivo. Ou quando indicam que a saúde será fornecida pelo Estado e não poderemos mais usar o atendimento particular”, opina ele sobre os chilenos.

O analista político Patricio Navia, colunista do jornal El Líbero e profundo crítico da atual gestão, vai além. Acredita que o que os chilenos mais querem é poder validar uma carta sobre a qual pesa a mão ditatorial. “O governo de Boric atrelou o futuro do Chile à criação de uma Constituição nova, o que é uma grande mentira, e isso ficou claro com a derrota da primeira Constituinte. Os chilenos não querem ‘um novo mundo’, querem acesso ao mundo que já conhecem. Esse texto vai ser igual ao de Pinochet, só que escrito e validado por um regime democrático. É uma maneira de legitimar o que já existia”, opina Navia, que é professor de Estudos Liberais na Universidade de Nova York.

Outros guardam mais esperança, ainda que a transformação esteja escondida num horizonte turvo. Resta saber que diferença faz um texto para um país que mantém um resiliente lado conservador. A lei do divórcio, por exemplo, é uma conquista recente no Chile, um dos últimos países do mundo a adotá-la. O que dá para dizer é que a foto do país, ao menos, já não é a de antes. Não se apagará da memória chilena a experiência coletiva de força que se viu nas ruas do país em 2019. E quando Boric sorri com seu gabinete de ministros para a imprensa chilena, aparece rodeado mais de mulheres do que de homens — imagem que a vizinhança ainda não pode ostentar.

*Camila Moraes é jornalista e roteirista. Formada pela Universidade de São Paulo, no Brasil, e pela Universidad Nacional de Bogotá, na Colômbia, faz parte da equipe do programa “Conversa com Bial”, da TV Globo, e foi repórter de cultura do jornal “El País”.

Digite seu CEP

Quando uma moradora contou que sua avó vira e mexe precisa de atendimento médico devido a crises de labirintite, mas nenhuma ambulância conseguia localizar a casa para socorrê-la. Foi neste momento Leonardo Medeiros, cofundador da logtech social naPorta, percebeu o impacto de seu trabalho na Favela dos Sonhos, em Ferraz de Vasconcelos, na Grande São Paulo. Entre vielas, a residência que, até então, não tinha endereço, agora pode ser encontrada facilmente no GPS graças a uma ação da empresa. Em parceria com o Google, a startup mapeou digitalmente cerca de 350 casas na região, tornando as comunidades dos Sonhos e Itaprata as primeiras do Brasil com endereços digitais em 100% das residências. “O trabalho de mapeamento é feito com o Plus Code, uma tecnologia integrada ao Google Maps que, baseada em latitude e longitude, identifica a exata localização e gera um CEP”, explica Medeiros.

A ausência do Código de Endereçamento Postal, o CEP, ainda é uma realidade para cerca de 36,2 milhões de pessoas que vivem em áreas periféricas no país, segundo a pesquisa “Economia das Favelas: Renda e Consumo nas Favelas Brasileiras”, de 2020. Na rotina, muito além da gravidade da falta de acesso a uma ambulância, moradores não fazem compras pela internet porque sabem que as encomendas não chegarão a suas casas. Os que compram colocam o endereço de parentes ou conhecidos como destino da entrega. Ainda tem aqueles que pagam mensalidades para associações de moradores, que recebem as mercadorias e deixam à disposição para retirada.

“Existem comunidades gigantes que usam apenas cinco ou seis CEPs para mais de 200 mil moradores. Fica muito difícil fazer encomendas. Sem falar em outras barreiras imensas. Cansei de ver meninos que não conseguem se candidatar a vagas de emprego porque, formalmente, não têm endereço. Fora a questão da internet”, diz Medeiros. O empreendedor relata que há regiões nas quais a conexão é precária porque as operadoras se recusam a instalar seus serviços. “Já ouvi dos próprios atendentes que algumas favelas são classificadas, internamente, como ‘área de risco’. Por isso, eles não entram. Na realidade, é claro que as áreas de risco existem, mas são pontos específicos, como perto de bocas de fumo ou onde há alta concentração do tráfico. Então, com o mapeamento e a criação de endereços precisos, a gente reduz o preconceito. Sabe, são crianças prejudicadas pela falta de internet. A gente está falando de exclusão social mesmo.”

Ô de casa

Criar endereços virtuais é apenas parte do processo desenvolvido pelo naPorta, que tem como objetivo garantir que as entregas cheguem às áreas desassistidas. Para isso, a empresa cobre toda a logística — do mapeamento às entregas. “Contratamos os moradores da própria comunidade para fazer essas entregas porque eles conhecem a vizinhança. E a nossa ideia é criar um ecossistema lá dentro, capacitar quem já é dali. Atualmente, cada bairro nosso tem um líder de operação e um auxiliar, que cuidam de toda a operação. Recrutando pessoas da favela, nos conectamos de verdade.”

De acordo com Medeiros, a parte mais difícil é conquistar a confiança dos moradores. “O engraçado é que, quando nossos funcionários chamavam o pessoal, a galera ficava com bastante receio. Diziam: ‘O que é isso aí? Vão pegar meus dados?’. Mas quando trocavam uma ideia com o vizinho e descobriam que era para ter um endereço, voltavam. É realmente um trabalho de porta em porta.” Sonhos e Itaprata serviram como um laboratório. Os próximos passos: expandir os serviços na Rocinha, Vidigal e Rio das Pedras, no Rio de Janeiro.

Perigo na tela

As plataformas de vídeo se tornaram verdadeiras assistentes dos pais quando o quesito é entretenimento infantil. Os pequenos selecionam os programas favoritos em redes sociais baseadas em vídeo, como YouTube, Instagram e TikTok. Mas os tutores podem ser surpreendidos com conteúdos que, mesmo se dizendo infantis, apresentam cenas inapropriadas para crianças, com linguagem imprópria, violência e sensualidade que beira a pornografia. Mesmo utilizando ferramentas próprias, como o YouTube Kids, esse material de baixa qualidade não é totalmente afastado dos olhos curiosos dos menores.

Para entender os problemas das redes no controle de conteúdos inapropriados, conversamos com Thiago Tavares, presidente da SaferNet Brasil, associação civil sem fins lucrativos focada na promoção e defesa dos direitos humanos na internet. Ele critica a falta de empenho das redes sociais para reduzir a disponibilidade de conteúdos sensíveis, citando, inclusive, o caso do Twitter, que demitiu massivamente seus funcionários, principalmente da área de segurança. Na entrevista, ele defende três pilares para atenuar os problemas com uso infantil das redes: o refinamento de conteúdo pelas próprias plataformas, o controle dos pais e a atuação dos educadores. Confira os principais trechos da entrevista.

Conteúdos inadequados para crianças estão em todas as redes sociais ou é um problema específico de algumas?
Esse é um ponto importante, porque as plataformas estão em estágios diferentes de desenvolvimento de políticas, mecanismos de proteção, ferramentas de segurança etc. É como você comparar água e óleo. O YouTube foi quem primeiro lançou essas políticas em camadas. Tem uma primeira que seriam vídeos ilegais, ou seja, que violam a lei. O vídeo que esteja difundindo uma mensagem racista, incitando a violência, ou de abuso sexual infantil é criminoso, quem postou tem de responder criminalmente e o vídeo precisa ser removido. A segunda são vídeos que não necessariamente são ilegais, mas que violam a política de termos de uso do serviço. Por exemplo, os spammers, que saem criando vários canais para poder espalhar conteúdo não solicitado, não desejado pelo usuário. Isso não é ilegal, não tem nenhuma lei que diga que spam é ilegal, mas é uma violação aos termos de uso da plataforma, e são removidos. Ação coordenada também, na qual sujeitos saem criando dezenas de canais diferentes para publicar os mesmos vídeos. E tem uma terceira camada que o YouTube anunciou que passaria a levar em consideração que é a da qualidade quando esse vídeos têm como público alvo crianças ou adolescentes. O vídeo não é ilegal, não viola os termos da plataforma, mas ele pode ser considerado de baixa qualidade por uma série de fatores, entre eles o incentivo ao comportamento negativo.

Qual o estágio das demais plataformas?
O YouTube saiu na frente nessa definição de princípios balizadores do que seria vídeo de qualidade ou não. Agora, não vejo nada similar nessas outras plataformas, como Kwai ou TikTok. Eles estão nos níveis um e dois ainda. Eu diria até mais na camada um. Kwai especialmente, porque há muitos vídeos que violam a política e os termos de uso. E eles não removem. Isso se tornou muito comum agora no Twitter. Elon Musk demitiu 70% ou 80% dos funcionários da empresa, inclusive os times que cuidavam da aplicação das políticas e dos termos de uso. Ele passou a enxergar a segurança como centro de custo e o resultado é que os conteúdos do Twitter não estão sendo removidos. Discurso de ódio, imagem de abuso sexual infantil estão permanecendo na plataforma. É um exemplo de retrocesso.

Caberia, então, uma regulação?
É um mercado que hoje se autorregula. Na ausência de uma regulação que diga o que eles precisam fazer, eles acabam definindo as próprias regras. E é claro que, por serem plataformas que dependem excessivamente de uma receita de anúncio publicitário, o que acaba pesando muito na avaliação é a própria reação do mercado. O anunciante vai querer associar sua marca a um meio onde circula, sem controle, sem fiscalização, sem moderação, conteúdo de ódio ou de abuso sexual infantil? Essa é uma pergunta que o anunciante deve fazer. Deve dizer: “espera aí, eu investi tanto na reputação da minha marca, eu vou arriscar anunciar numa plataforma que aceita e mantém no ar todo o tipo de conteúdo?”. Esse é um pouco o movimento que mercados autorregulados acabam fazendo. As pressões externas vêm dos anunciantes, mas da imprensa, da sociedade civil e das autoridades também.

Como o Estado pode interferir nisso?
Essa é a grande pergunta de 2023, e não há uma resposta definitiva. O que existe são tentativas. A Europa, por exemplo, aprovou 12 leis importantes que já entraram em vigor e têm prazo para implementação. Uma delas é o DSA (Digital Services Act), com prazo de implementação de até dois anos, que já está correndo. E ela prevê uma série de medidas, principalmente com foco em transparência e responsabilização. Esse é um pilar importante. As plataformas precisam prover mais ferramentas de transparência e explicar melhor o funcionamento desses algoritmos de recomendação, por exemplo. A partir do momento em que você recomenda um conteúdo, você chancela, legitima aquele conteúdo. Essa é uma discussão que está na Suprema Corte americana agora. É um julgamento com potencial de redesenhar a maneira como as plataformas funcionam, pelo menos nos Estados Unidos. Ele vai dizer exatamente qual é o papel, a responsabilidade da plataforma a partir do momento em que ela recomenda um conteúdo violento ou extremista. Ou seja, num conteúdo que foi recomendado quer dizer que houve uma postura proativa da plataforma. Ainda que essa decisão seja tomada por um algoritmo, ele não funciona por livre e espontânea vontade. Ele funciona a partir de filtros, parâmetros e métricas. E quem define isso é a plataforma. Então, há um dever de correta parametrização que deve levar em consideração princípios fundamentais de direitos humanos, o princípio da não discriminação, do respeito à diversidade, da tolerância às diferenças, enfim. Todo esse debate que envolve discurso de ódio.

O que os pais e responsáveis podem fazer para proteger as crianças desses conteúdos inadequados?
Uma das recomendações é usar o YouTube Kids, porque mesmo não estando 100% protegido com relação a conteúdo inapropriado, está mais protegido que no YouTube geral. Pais que permitem que os filhos acessem vídeos no YouTube adulto estão ignorando os próprios termos de uso da plataforma, que limita a idade aos 13 anos. O mesmo vale para Kwai, TikTok, Facebook, Instagram etc. São plataformas para maiores de 13 anos. Não deveria ter crianças usando essas plataformas, porque elas não foram pensadas para crianças, o conteúdo que está lá não é para elas e existe a limitação de idade, mas as pessoas ignoram. E esse é um problema. Mas existem ferramentas de supervisão. Por exemplo, o YouTube tem uma ferramenta de controle supervisionado dos pais, que vincula a conta dos seus filhos à sua própria conta, como se fosse uma conta familiar. Você consegue acompanhar os vídeos que ele está assistindo, fazer uma curadoria, permitir playlists ou canais específicos, restringir contatos, acompanhar o que ele anda fazendo e filtrar os conteúdos que está consumindo. Isso não existe num Kwai, por exemplo. Não tem nada parecido por lá. No Instagram tem algo nessa direção de conta supervisionada, lançada recentemente, mas ainda é pouco popular, pouca gente sabe.

Pais que não deixam seus filhos acessarem esses conteúdos populares, mas impróprios, correm o risco de deixar as crianças à parte do que seus colegas estão vendo.
Tem isso também, mas isso nos leva a outro ator importante nesse processo, que é o educador, o professor. Não dá para atribuir somente aos pais essa função. Até porque crianças e adolescentes passam a maior parte do tempo nas escolas. Então, como é que o professor aborda esses assuntos em sala de aula? Cabe ao professor também transmitir noções de cidadania, de autocuidado, de direitos, de promover um uso positivo e responsável da rede. E aí há o desafio, sobretudo na rede pública de ensino, de como levar essa discussão para dentro da sala de aula. Lançamos recentemente um caderno didático com uma disciplina eletiva sobre cidadania digital. São 292 páginas de conteúdo para esse educador trabalhar em sala de aula. Mas a gente, ao mesmo tempo, reconhece que é um desafio para a maioria das escolas públicas que ainda sofrem com problemas bem básicos, como falta de luz, água, professor e equipamento. Esse é um debate necessário. E as escolas particulares não estão submetidas ao mesmo nível de dificuldades, e podem atuar de forma mais assertiva.

E o que o Estado poderia fazer para estimular as plataformas a se responsabilizem mais?
A minha preocupação maior é quando o Estado resolve interferir no conteúdo em si que não viole claramente consensos internacionais em matéria de direitos humanos. Não é nem legislação nacional, porque nós estamos falando do Brasil, que felizmente é uma democracia que sobreviveu aos últimos quatros anos, mas imagine uma Arábia Saudita, uma Rússia, que criminaliza relações LGBTQIA+, por exemplo. Você vai cumprir a legislação russa que criminaliza conteúdo LGBTQIA+? É complicado. Quando você dá ao Estado esse poder de regular conteúdo, ainda mais em países de democracias jovens como a nossa, é arriscado. É que a gente pensa esses parâmetros a partir de uma lente de que nós estamos dentro de uma democracia e continuaremos vivendo dentro dela, mas nós vimos recentemente que ela é frágil e constantemente ameaçada. Então, nesse ponto eu sou mais cauteloso. Hipertrofiar o Estado de poderes pode não ser o melhor caminho.

Dez anos de Papa Francisco

Para ler com calma. Dez anos atrás, redondos na segunda-feira, dia 13, o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio se tornava Papa Francisco, o único jesuíta e latino-americano entre os 266 papas que já existiram. Outro ineditismo de seu papado: o de conviver com um antecessor vivo. Sua personalidade dócil e reformista contrasta com a de Bento 16, e a relação entre os dois rendeu até filme. Mas, assim como Bento, Francisco já admite a possibilidade de, dominado pelo cansaço de seus 86 anos, renunciar ao posto de líder espiritual dos católicos. Francisco tem uma década de legado absolutamente condizente com sua formação, como provam seus discursos. Muitas de suas posições o emparedaram na pecha de esquerdista. O teólogo Timothy Gabrielli, professor de Tradições Intelectuais Católicas da Universidade de Dayton, explica que os jesuítas, ordem fundada por Santo Inácio de Loyola, seguem seus “exercícios espirituais”para moldar suas ações: reconhecem a si mesmos como pecadores, mas amados por Deus. E tendem, diante de problemas complexos, a dispensar soluções superficiais que não abordem a “doença” subjacente. Buscam mudanças estruturais, do espírito. É assim que Francisco conduz seu rebanho, navegando em temas tão delicados quanto abuso cometido por clérigos e mudanças climáticas.

Joias e perucas estiveram nos mais clicados da semana, mas não como um desavisado suspeitaria. Dá uma olhada:

1. Estadão: Bolsonaro recebeu e conferiu a "caixa 2" de joias.

2. Globo: Bento Albuquerque não contou aos árabes da retenção dos diamantes.

3. CNN Brasil: Nikolas Ferreira faz ataque transfóbico no Dia das Mulheres.

4. Valor: Tebet diz que arcabouço fiscal vai agradar a todos.

5. g1: PF deve ouvir Bolsonaro, Michelle e Albuquerque no caso das joias.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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