O lulismo na era da polarização

Polos e extremos não se confundem. E, enquanto chega a ser uma platitude a verdade de que apenas um polo na disputa atual é extremista, é preciso admitir que a sociedade brasileira está exacerbadamente polarizada

Faz bem menos de cem dias que o Brasil se livrou do pesadelo do controle bolsonarista sobre o aparato estatal. O complemento nominal é importante, porque não se pode dizer que o Brasil esteja livre do pesadelo bolsonarista enquanto tal — apenas nos livramos do cenário distópico em que ele controlava o aparato de Estado. Como se viu em Brasília em 8 de janeiro, o bolsonarismo continua capaz de causar considerável dano à pólis.

No recém-inaugurado governo, Lula comanda uma aliança de caráter bem diferente das que comandou entre 2003 e 2005, quando já existia o presidente Lula mas não existia o lulismo, e das que comandaram ele e Dilma Rousseff de 2005 a 2013, enquanto existiu o lulismo como pacto estável que administrava os antagonismos políticos. De lá para cá, desde que se espatifou a sinfonia de oxímoros com a qual o lulismo gerenciou o pacto pemedebista até a emergência das multidões de Junho, “lulismo” passou a significar, sem ambiguidade, a força política em que se congregam os seguidores de Lula, e não mais o pacto através do qual se administravam todos os antagonismos da pólis. O lulismo passa a ser um dos polos do antagonismo, não mais o acordo através do qual ele é administrado.

O polo lulista não é, portanto, simétrico ao outro polo no antagonismo de hoje, porque o lulismo costumava designar a própria administração da totalidade dos antagonismos — colhendo com isso os frutos de rejeição que a população brasileira dirigiu, crescentemente, contra aqueles que ela via como representantes do sistema político. Claro que Bolsonaro, um deputado inexpressivo, preguiçoso e mama-tetas do Estado durante 28 anos, também representava a quintessência do sistema político, mas não foi dessa forma que uma expressiva pluralidade da população o viu em 2016-18. Bolsonaro, aliás, emergiu como candidato viável depois que as multidões verde-amarelas zanzaram durante dois anos em busca de um antipetista não tucano, um outsider, a quem abraçar.

No Brasil da Nova República houve o antagonismo entre petistas e tucanos (1993 a 2014), o antagonismo entre antipetismo e petismo (depois de 2013-14) e o antagonismo entre bolsonarismo e lulismo (depois de 2017). Não convém confundir esses antagonismos nem as datas, ou imaginar que eles se sucedam de forma simples. O primeiro morreu em 2013-14, ao ponto de vermos hoje o gerente da pax tucana, Geraldo Alckmin, assumir a vice-presidência no governo petista. O segundo antagonismo, entre petismo e antipetismo, nutriu boa parte do jogo político entre 2014 e 2018 e inaugurou a era da polarização exacerbada no Brasil. Continua operando, evidentemente, mas a ele se superpõe um terceiro, entre lulismo e bolsonarismo, inaugurado pela campanha de 2017-18.

A ciência política estudou abundantemente a polarização do voto à luz do antagonismo eleitoral entre PT e PSDB, e na bibliografia brasilianista essa tradição culminou em Partisans, Antipartisans, and Nonpartisans: Voting Behavior in Brazil, obra em que David J. Samuel e Cesar Zucco constatam a relativa escassez de estudos da figura do antipartidário, essencial para se entender o Brasil contemporâneo, em que o antipetismo passou a ser não apenas uma identificação, mas uma força política autônoma e, em certo momento, majoritária.

No histórico de pesquisas sobre identificação partidária, são conhecidas algumas curvas: a maioria do eleitorado brasileiro mantém sua identificação com “nenhum partido” em níveis que oscilam entre 30% e a maioria absoluta, atingida em coincidência com as Jornadas de Junho; a identificação com o PT passa a ser a maior entre todos os partidos no final dos anos 1990 e jamais deixa de sê-lo, em alguns momentos com distância até de vários corpos em relação à soma da identificação com todos os outros partidos; entre 1980 e 2012, a porcentagem de brasileiros que se identifica com o PT saltou de 5% para 30%, que foi o seu cume, também coincidente com as Jornadas de Junho, quando se iniciou uma trajetória descendente que o levou a seu piso de 10%, em 2015-16; essa identificação voltou a crescer a partir de abril de 2019, chegando a alcançar a 32% em 2022, empatado na margem de erro com seu cume histórico. A conclusão é uma trivialidade, de tão óbvia: o governo de Jair fez muito mal ao país, mas fez muito bem ao petismo. Em 2018 já se sabia que esse seria o caso, como afirmou famosamente um dos apparatchiks do petismo, ao declarar que naquelas eleições havia se produzido o “segundo turno ideal”.

É isso o que se quer dizer com polarização: a relação entre os polos não é de coincidência cronológica, nem de simetria (eles não estão necessariamente equidistantes do centro), nem de equivalência moral (falcatruas aconteceram no período lulista, mas em nada foram comparáveis à fúria destrutiva da extrema direita).

Muito tempo depois de que o pacto político, em sua forma de pax lulista, já havia desmoronado, as multidões verde-amarelas ainda zanzavam órfãs. Elas estavam dispostas a expulsar Aécio Neves e Geraldo Alckmin a tapas da avenida na busca de um antipetista que não fosse tucano nem pemedebista, ou seja, que não fosse identificado com o sistema político. Não era uma fatalidade que o Napoleão III encontrado pelos verde-amarelos fosse um fascista legítimo, formado na escória da ala Brilhante Ustra da ditadura militar, mas foi ele que se cacifou para traduzir o antagonismo que havia passado a dominar a política brasileira, entre petismo e antipetismo (em um processo que estudei em um trabalho anterior, intitulado Eles em nós). À raiz da centralidade desse antagonismo, entramos na era da polarização exacerbada.

Em boa parte do ensaísmo de esquerda brasileiro, o termo polarização aparece entre aspas, designando uma espécie de truque ilusório dos meios de comunicação de massas, da ideologia, do poder ou das classes dominantes, que estariam criando uma falsa simetria, um discurso mistificador, uma espécie de signo sem referente. Boa parte desse ensaísmo nos repassa as demonstrações de que os grosseiramente diferentes não são comparáveis ou equivalentes, de que a distância entre um ponto extremista e um ponto democrático do espectro político não é ou não deveria ser o marco de um genuíno centro, e de que apenas um dos lados da atual polarização brasileira é extremista. Todos esses fatos são verdadeiros ao ponto de serem truísmos, ou quase platitudes, mas nenhum deles muda os outros fatos, os de que a sociedade brasileira encontra-se mais polarizada e de que o conceito de polarização descreve um fenômeno real.

Característico da polarização não é a existência de dois extremos, posto que os conceitos de polo e de extremo não se confundem. Uma eleição pode estar polarizada entre a extrema-direita e a centro-esquerda, como aliás foi o caso no Brasil em 2018 e em 2022. Denunciada por certo sentido comum centrista como a fonte de todos males e desentendida por boa parte da esquerda como uma mera cortina de fumaça, a polarização alcançou o estatuto de termo divisor de águas no interior dos antagonismos da academia e do jornalismo. Não se trata apenas de que a política brasileira tornou-se mais polarizada. A própria oposição entre o uso e a rejeição do conceito tornou-se matéria polarizada, suficiente para identificar pertenças dentro dos debates político, acadêmico e jornalístico.

Mas o que se quer dizer com “a sociedade se encontra mais polarizada”? O que aqui é quantificável? Para responder com o termo exato, maior polarização quer dizer a diminuição da curtose, ou seja, do espaço da dispersão entre duas opiniões ou posições no espectro. A polarização reduz a política aos dois polos de um antagonismo e os transforma em lugares absolutos, que esgotam as identidades dos sujeitos.

É axiomático que os antagonismos existirão sempre em uma sociedade democrática complexa. A polarização exacerbada, no entanto, é apenas uma entre várias formas possíveis de tradução dos antagonismos.

Não foi assim que eles se traduziram, por exemplo, no Brasil de 1994 a 2013, no qual petistas acusavam tucanos de planejar privatizar o Banco do Brasil e tucanos acusavam petistas de se aliarem a “bandidos do MST”, mas a polarização não era, nem de longe, um marco absoluto que traduzisse tudo. Aliás, não custa lembrar que, para um naco enorme do Brasil, nada é mais semelhante ao PT que o PSDB: ambos parecem saídos do mesmo habitat, alguns quarteirões da cidade de São Paulo, tão parecidos entre si como diferentes de quase todo o resto do país. Poderíamos dizer que a era da polarização é aquela que se segue à derrubada da pax petucana.

Típico da polarização é a desaparição do espaço de respiração fora dos dois polos, em uma estrutura metonímica que captura toda a identidade do sujeito político. Compartilhar um componente da identidade do polo já te instala no interior do polo em tua totalidade como sujeito. Assim, no governo bolsonarista, os negócios do Partido do Boi chegaram a ser prejudicados pela enxurrada ideológica de tintas racistas com que o chanceler Ernesto Araújo, a família de Bolsonaro e a ala olavista do governo se referiam à China, o maior parceiro comercial do Brasil. Passou a custar prejuízo à balança comercial brasileira o fato de que ser bolsonarista exigia a adesão ou, pelo menos, a tolerância a estereótipos cruzadistas ou ao racismo anti-oriental puro e simples.

Da mesma forma, a captura do discurso do presidente Lula pela polarização pareceu deixar estupefatos alguns analistas do campo democrático, que andam se perguntando: se o governo é uma frente ampla e o objetivo é pacificar o Brasil, por que a insistência em causar o desconforto advindo da tecla do “golpe”, tendo seu próprio vice-presidente sido um partícipe da aliança pró-impeachment em 2016? Se Lula sabe que terá que apertar cintos, por que a manutenção de um quadro partidário, Gleisi Hoffmann, bombardeando as metas do próprio ministro da Fazenda escolhido por ele, o histórico petista Fernando Haddad? Se o próprio Lula sabe que a fórmula do sucesso dos anos de bonança foi a arrumação da casa feita em 2003-05 e uma fórmula ganha-ganha baseada no crescimento do bolo a partir de então, por que voltar a um discurso que associa a fome dos muito pobres aos hábitos alimentares dos ricos, como em um jogo de soma zero?

As respostas aqui não são simples, mas o horizonte para entender as perguntas é este: Lula III administra um país que os Lulas I e II não conheceram, o Brasil da polarização exacerbada, no qual a tarefa é desarmar bombas de antagonismos enquanto uma boa parte da população o associa ao processo pelo qual a própria bomba foi fabricada.

*Idelber Avelar é professor de estudos latino-americanos na Universidade Tulane (EUA). Seu livro mais recente é “Eles em Nós: Retórica e Antagonismo Político no Brasil do Século 21” (Record, 2021). Prepara um livro sobre a memória e o futebol.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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