Edição de Sábado: ‘Olhem para mim!’

Duas fotos de desenhos rabiscados em folhas de caderno — um de uma arma, com a legenda “Um tiro, uma morte”; outro de uma faca ensanguentada, onde se lê “Apenas ódio e vontade de matar” — foram postadas pelo perfil “Taucci0001” no dia 30 de março, no Twitter. Receberam 31 curtidas, foram visualizadas mais de 4 mil vezes. No primeiro comentário, um outro perfil, o “Pretty Taucci”, diz: “Oi queria tanto conversar com alguém que pensa igual eu...podemos conversar?”. Na página desse segundo, há uma imagem do que parece ser uma sala de aula, e os dizeres “novamente nesse inferno de escola”. O Taucci a que se referem em seus nicks é de Guilherme Taucci, jovem que, em 13 de março de 2019, invadiu com um amigo sua ex-escola, em Suzano (SP), e matou a tiros duas funcionárias e cinco estudantes. Ainda nesta sexta-feira, o “Taucci0001”, que tem 316 seguidores, publicou a imagem de uma faca de verdade, que afirmou ter comprado. Foi retuitado pelo “shooting school”, que declara ser LGBTfóbico e recorre com frequência às hashtags #Bolsonaro e #Mito. Como “Taucci0001” diz aguardar a chegada da máscara de caveira que agressores desse tipo costumam vestir, avisa que seu ataque deve acontecer, provavelmente, na terça-feira. Um outro usuário com a foto do Taucci original atrás da tal máscara responde: “Planeja bem isso manda uns 10 pro inferno para vc sempre ser lembrado”.

A conta “Taucci0001” no Twitter foi aberta logo depois do atentado que aconteceu na escola Thomazia Montoro, em São Paulo, em que um garoto de 13 anos matou a professora Elizabeth Tenreiro, de 71, e feriu outras cinco pessoas. Ele também usava “Taucci” em seus perfis nas redes sociais. Naquele mesmo dia, no Rio, um aluno entrou com um faca numa escola na Gávea, no Rio. Na mesma semana, em Goiás, a polícia civil frustrou ataques coordenados por três adolescentes em três cidades. No perfil do usuário, que alerta desde o dia 29 de março que sua conta pode ser suspensa a qualquer momento, há vídeos sem qualquer censura, editados com trilha sonora e legendas, do ataque de Taucci, em Suzano, e o de Aracruz, no Espírito Santo, em novembro do ano passado, em que um rapaz de 16 anos matou quatro pessoas, incluindo uma garota de 12 anos, ostentando uma suástica no braço. Eles são chamados de “heróis”. E essas comunidades que exaltam os assassinos são conhecidas como True Crime Communities. As interações descritas no parágrafo acima encerram três dos diversos aspectos que compõem a fórmula de combustão desses jovens: o ódio pelo ambiente escolar, visto como opressor e excludente; a liberdade com que meninos que se sentem isolados conseguem se agrupar nas redes sociais e se radicalizar; o culto a quem extrapola da violência virtual para a real, realizando os “kills”, como eles chamam — de colegas, professores e/ou de si mesmos. Até o fechamento desta edição, a conta “Taucci0001” seguia no ar.

Desarmar esse espírito de violência requer um tipo de audácia muito particular — aquela que implica em, primeiro, admitir a complexidade do problema. Em segundo lugar, reconhecer que só a integração entre múltiplos atores pode dar resultado. E, por fim, compreender que paciência e dedicação, num tempo em que não se dispõe tão facilmente desses atributos, vão ser fundamentais. O Meio ouviu três especialistas para fazer um diagnóstico e procurar respostas para esse descaminho de parte de nossa juventude: Miriam Abramovay, doutora em Ciências da Educação, coordenadora do Programa Estudos sobre Juventudes , Educação e Gênero : Violências e Resistências da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso) e pesquisadora sobre violência no ambiente escolar; Camila Rocha, cientista política e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e estudiosa da nova direita brasileira; e Fernanda K. Martins, pedagoga, antropóloga, diretora do InternetLab e parte do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS/USP) e do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu (Unicamp).

A escola

Miriam Abramovay não gosta de trabalhar com o conceito de bullying. Acredita que o termo é insuficiente e tende a suavizar, em alguma medida, a violência objetiva que acontece no ambiente escolar. “Bullying acontece somente entre pares. Não inclui, por exemplo, as relações entre educadores e alunos. E não tem consequências graves de vida e morte”, explica. Ao tratar da violência, a professora reconhece de pronto que a escola, como aparelho da sociedade, está, evidentemente, sujeita às condições de seu entorno. Brigas de gangues, tráfico de drogas, abusos policiais, pais agressivos — tudo atravessa os portões e as grades. Ao mesmo tempo, há uma violência institucional do próprio sistema educacional. Com as devidas exceções subentendidas, crianças e adolescentes são constantemente calados em suas manifestações. As grades que deviam protegê-los acabam vetando a entrada de sua cultura, do mundo do aluno. O ambiente escolar não costuma ser democrático. E a escola, muitas vezes, sequer se dá conta desse funcionamento, dessa estrutura autoritária. “Tanto que ela não muda”, acrescenta Miriam.

Enquanto os desconfortos da adolescência são absolutamente democráticos em termos de classe social, gênero e qualquer outro recorte, as escolas particulares tendem a ter muito mais condições de identificar situações de perigo e evitar que elas se agravem. Os pais de classe média para cima, por mais ocupados ou desligados que sejam, também costumam oferecer algum tipo de atividade extracurricular e suporte psicológico aos filhos. Mas a grande maioria das crianças e jovens brasileiros está na escola pública: das 47,3 milhões de matrículas na educação básica (infantil, ensino fundamental e médio) do país em 2022, 38,3 milhões são da rede pública. “É até covardia fazer essa comparação”, ensina Miriam. Lição aprendida, é sobre esse universo que vamos tratar.

Pois nele a escola é o único espaço, para muitos desses jovens, de socialização e convivência — e só 6,9% das escolas públicas têm entre 20% e 50% de alunos em tempo integral. É ali que essa massa de garotos e garotas aprendem sobre responsabilidades, sanções, consequências, direitos. Na pandemia, essa arena foi simplesmente suprimida. E os adolescentes, gregários em essência, intensificaram o uso das plataformas digitais para se comunicar — um ambiente em que responsabilidades, sanções, consequências e direitos não estão no centro das preocupações, para usar um eufemismo. No retorno à sala de aula, diz Miriam, a agressividade dos alunos está palpável. Paralelamente, as equipes de educadores e funcionários das escolas diminuíram, se precarizaram. Um problema que já existia — o de um jovem que, bicho social por natureza, pode se revoltar por se sentir isolado dos demais — voltou para as salas de aula potencializado. Os jovens perderam parâmetros e limites; os adultos, capacidade de mapear conflitos e reportá-los. E colocar um psicólogo numa escola de 500 alunos não vai solucionar isso.

O que pode, então, ajudar? Um primeiro passo nesse novo governo, ainda na transição, foi elaborar um manual de como evitar esses atentados. Mas Miriam diz que falta uma pesquisa profunda e nacional sobre violência nas escolas. “Sem dados, não se produz política pública”, decreta. Daí, a formulação de políticas que passem por programas de convivência escolar, onde os jovens sejam mais escutados e possam se sentir protegidos, o que tende a levá-los a proteger a escola em contrapartida. Esse tipo de programa era conduzido em alguma escala antes do governo Bolsonaro, que interrompeu qualquer coisa nesse sentido. É hora de retomar, urge Miriam. Mas ela aponta, ainda, a necessidade de integração da educação com outras áreas de atenção aos jovens. “Não podemos culpar somente a escola. Nem somente as famílias, que, preocupadas em sobreviver, muitas vezes não dão conta do que está acontecendo com seus filhos ou não entendem.”

Sem clima de acolhimento em casa, a escola seria o lugar onde esses jovens poderiam elaborar ressentimentos. Mas, nos últimos anos, diz Miriam, houve uma forte interdição da discussão de vários temas na escola e uma atmosfera de culpabilização dos professores. “Some a proibição de se falar de sexualidade, com essa noção equivocada de 'ideologia de gênero' na cabeça das pessoas, com problemas de desigualdades sociais, de falta de emprego... Tudo isso está fora das discussões.” O gênero, sem dúvida, é um fator importante. Embora a prática de estudantes levarem armas, brancas ou de fogo, para as escolas seja relativamente antiga e também de meninas, como forma de mostrar poder, os agressores mais violentos são quase sempre meninos. E suas trajetórias online indicam que, por meio da masculinidade exacerbada, eles acabam desembocando em grupos afins ao nazismo, se não explícito, com suástica e Hitler, no discurso da eliminação de grupos pela violência, pela morte.

O extremismo

Camila Rocha não hesita em traçar essa via da radicalização. Há algum tempo, cair em grupos de discurso de ódio exigia algum esforço e conhecimento dos caminhos da deep web. Agora, a porta de entrada é a de grupos “masculinistas”. Ou, um passo antes, desses influenciadores de fala misógina, que “ensinam” meninos a se revoltar contra mulheres que os desprezem. E eles estão em todas as redes, sem qualquer constrangimento. O passo seguinte desses garotos, que têm um grau importante de fragilidade emocional, é cair em comunidades violentas, como as de True Crime, extremistas, neonazistas, supremacistas — cujas células se multiplicaram nos anos de Bolsonaro no poder. É tolice culpar exclusivamente os quatro anos de horror do bolsonarismo pelo que está acontecendo. É cegueira ignorar o efeito nefasto que o bolsonarismo e o reacionarismo tiveram nesse contexto. Um estudo da Unicamp e da Unesp mostra que, dos 22 ataques em escolas desde 2002 no Brasil, nove foram de agosto do ano passado para cá.

Sentindo-se representados nesses “clubes”, até mais fortalecidos emocionalmente, e autorizados por um discurso político bélico, os garotos vão se radicalizando. Para quem tem dificuldade de entender como a noção de supremacia se transplanta para um país de negros e pardos como o Brasil, Camila explica que essa adaptação passa por mirar pessoas vistas como “socialmente inferiores”. Então, além da misoginia, os alvos desses ataques podem ser homens homossexuais, pessoas transgênero e travestis, pessoas em situação de rua, nordestinos, pobres, beneficiários de programas sociais. “A juventude da classe média baixa é muito suscetível a ressentimentos sociais, e convive de perto com os pobres que 'consomem o dinheiro dos impostos' dos seus pais, que lutam para sobreviver”, diz Camila. E sofre também de uma falta de perspectiva brutal. Nesses grupos, passa a comungar de códigos comuns e receber reconhecimento. “Nos fóruns, tem uma dimensão de publicizar a sua dor, o que você vai fazer a respeito. Esse reconhecimento que esses jovens não têm, por algum motivo, na sociedade, acaba vindo de alguma forma nessas comunidades.” Não raro, como na interação mencionada no início da reportagem, em forma de incentivos categóricos por mais kills.

Camila, assim como Miriam, indica que a intersecção entre diferentes campos é fundamental para mudar esse cenário. Forças policiais e da Justiça monitorando essas células extremistas, acadêmicos com suas pesquisas nessa linha robustecidas, escolas mais bem equipadas para tratar da saúde mental dos alunos, famílias com mais condições de acompanhar seus jovens e o que eles fazem online. Porque, como qualquer bolha, a da violência sequestra esses garotos. Navegar por poucos minutos nesse conteúdo causa, num cérebro maduro e com rede de apoio, um misto de engulho, angústia e opressão. No cérebro de um adolescente, ainda em formação fisiológica, química e psíquica, além de política, e comumente com algum tipo de problema de saúde mental, o que pode motivar? Transcender da ameaça virtual para a violência real passa necessariamente por aí.

As plataformas

Fernanda K. Martins alerta que a saída não é transformar a tecnologia num bode expiatório. A internet como local de encontro com pares é instrumento tanto para o bem quanto para o mal. E o risco é se cair na falácia de considerar as redes sociais as vilãs em vez de encarar que o problema tem “uma dimensão gigante que envolve muitos setores da sociedade”. Ela lembra ainda que mídias tradicionais, como TV e jornais, fazem coberturas nocivas desses episódios, com sensacionalismo, facilitando a glorificação desses garotos. Mas especialista em internet que é Fernanda reconhece a escala que as plataformas dão aos sentimentos, inclusive ao ódio — e vale registrar que 78% das crianças e adolescentes brasileiros estão em pelo menos uma rede social. Numa pesquisa com 14 jovens de 16 a 26 anos da periferia de São Paulo, testemunhou como, no mundo online, os limites do que é violência são cinzentos para eles. Muitos não reconheciam um ato explícito de misoginia, justificavam que era “humor”, “brincadeira”. A partir de oficinas realizadas por 9 meses, em que esses jovens iam a campo entrevistar pessoas sobre discurso de ódio, viu a transformação nessa percepção.

Por isso, Fernanda defende que, além de discussões sobre racismo, machismo, violência, a conversa com os jovens precisa passar por educação midiática, digital. “As crianças aprendem que não podem morder ou bater no coleguinha. Mas o ambiente de crescimento delas agora também é nas plataformas. Elas precisam entender os limites nesse lugar.” E não só elas. Influenciadores e políticos, com seus milhares ou milhões de seguidores, também precisam ser responsabilizados, especialmente no contexto da polarização. Um dos caminhos de reduzir os efeitos nocivos das redes é não tratar da mesma forma figuras públicas e usuários comuns.

O Brasil, quiçá o mundo, está longe de um consenso sobre como regular tudo isso. Fernanda diz que é nas pautas sobre proteção de crianças e adolescentes que as plataformas estão mais abertas e ativas. Mas há dificuldades e retrocessos. Os usuários dessas comunidades usam palavras com grafias modificadas e numerais para confundir os algoritmos e robôs de moderação. Ou contextos que essas inteligências, criadas por plataformas que são de outros países, não reconhecem. Em resumo: para se fazer esse monitoramento com eficiência, só humanos. Nisso, a sociedade civil e o poder público poderiam ajudar — olha a atuação conjunta aí, novamente. Mas as plataformas ainda andam para trás em questões de transparência, quando um Twitter, por exemplo, passa a cobrar o acesso de seu API. Fernanda, então, conta uma história que a marcou. A de uma senhora bolsonarista, já com mais de 50 anos, que se radicalizou tão profundamente que precisou ser internada, em surto psiquiátrico, pós-8 de janeiro. Parcialmente recuperada, tentou limpar suas redes do bolsonarismo ali impregnado. Mas os algoritmos continuavam empurrando para ela conteúdo radical de extrema direita. “Precisamos ter mais conhecimento de como os engajamentos acontecem e empoderar o usuário para que eles consigam sair dessa rota. A radicalização acontece, mas você pode ter uma mudança de percurso. Agora, se isso aconteceu com uma adulta, imagina o que faz na cabeça de um jovem?”. Infelizmente, não precisamos imaginar.

O alívio de Haddad

A entrevista coletiva estava atrasada em mais de uma hora. Quem conseguiu cadeiras chegou com pelo menos uma hora de antecedência. Tudo justificável diante do grau de sensibilidade do tema a ser apresentado: o novo arcabouço fiscal. A assessoria do Ministério da Fazenda já havia pedido paciência. “Está tudo pronto, mas o ministro ainda está lá no Senado, com os líderes. Então, temos que esperar aquele último 'check' dele antes da divulgação do texto.” Era o último ato do período de “tensão pré-acabouço” e o ministro era aguardado para colocar fim naqueles dias.

O cenário era o pequeno auditório do ministério, palco do anúncio de vários planos econômicos. Passaram pelo local os sucessivos pacotes nas décadas de 1980 e 1990, que tentaram conter a inflação e evitar a corrosão da moeda nacional ao longo da história recente do país. A hiperinflação reinou por anos. Ali, nossa moeda mudou de nome várias vezes: de cruzeiro para cruzeiro novo, depois cruzado, depois cruzado novo, aí veio o cruzeiro real. Também foram anunciados naquele espaço momentos traumáticos, desde o congelamento artificial de preços que levou a uma crise de abastecimento no governo de José Sarney até o confisco da poupança pela equipe do então presidente Fernando Collor de Mello, em 1990. Foi um longo caminho até se chegar ao Plano Real, em 1994, no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). No histórico auditório, o ministro Fernando Haddad (PT-SP), considerado por políticos moderados e pelo mercado como o “o mais tucano dos petistas”, anunciava sua proposta, sem deixar de fazer referência ao feito de FHC. “Estamos desde 1994 com uma moeda estável, que tem resistido ao tempo no que diz respeito aos efeitos inflacionários e corrosão do seu poder de compra. Isso tem sido uma coisa importante para a gente manter a nossa estabilidade monetária”, elogiou.

Ladeado pela ministra do Planejamento, Simone Tebet (MDB-MS), e pelos secretários que ajudaram a construir a proposta, Haddad iniciou a coletiva como num desabafo, um alívio: “Finalmente, vazou o arcabouço”, suspirou. “Agora podemos conversar mais tranquilamente sobre isso.” O único sinal de ansiedade vinha de suas mãos, ainda inquietas sob a bancada. O tom de voz era de quem se livrava, naquele momento, das pressões vindas de todo canto. Também se libertava ali do temor de que os tradicionais vazamentos tivessem resultados negativos na bolsa de valores. A impressão de ansiedade se desfez no fluxo da coletiva. Por volta das 12h30, quando os operadores já haviam tomado conhecimento da nova regra, o índice Ibovespa avançava quase 2% e o dólar comercial recuava 0,5%. O mercado gostou.

Roteiro frustrado

A semana havia começado com uma inversão de expectativa. Haddad acompanharia o presidente Lula na viagem à China, que acabou adiada devido a uma pneumonia do presidente. O ministro planejava conversar no avião com o chefe e demais membros da comitiva, entre eles o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), sobre o desenho final do arcabouço que seria apresentado depois da Semana Santa.

Com a viagem frustrada, Haddad deu início à finalização do plano. Na segunda, desembarcou às 8h30 no Bloco P da Esplanada, disposto a acertar os últimos detalhes. Entrou pela garagem para driblar a portaria, sempre repleta de jornalistas acomodados em suas cadeiras de praia. Foi direto para o gabinete, onde permaneceu durante todo o dia. Ele aguardava a chegada dos demais secretários. O secretário-executivo da pasta, Gabriel Galípolo, voltava de São Paulo. O assessor de imprensa, Chico Prado, que já estava na China aguardando a chegada do chefe, iniciou o caminho de volta. O secretário de Política Econômica, Guilherme Mello, também foi acionado. Ainda na segunda, tanto Galípolo quanto Mello entraram no prédio de cabeça baixa, evitando trocar até olhares com os repórteres, e se reuniram com o ministro. Haddad saiu do gabinete por volta das 19h e acenou aos jornalistas: “Falamos depois”.

Na terça, depois de receber em seu gabinete o ex-governador de Minas Gerais Fernando Pimentel e prestigiar o evento com prefeitos, no qual falou só de reforma tributária, o ministro partiu para articular a proposta que seria anunciada. Ele havia recebido de Lula a indicação de que a última reunião sobre o assunto ocorreria na quarta-feira e, ainda sem saber o horário do encontro, ao retornar ao ministério, comunicou aos jornalistas a promessa de uma “reunião conclusiva”. Seria o fim da temporada de justificativas diárias sobre o silêncio.

Até o anúncio na quinta, Haddad cumpriu o ritual determinado por Lula. Da “reunião conclusiva”, partiu direto para a casa do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que havia organizado um encontro no qual Haddad explicou ponto a ponto da proposta a líderes aliados. A reunião com Lira se estendeu tanto que o encontro com senadores precisou ficar para a manhã de quinta. “Então, fiz duas sabatinas, de duas horas cada uma, respondendo a todas as perguntas”, contou o ministro, dizendo-se disposto a acatar questionamentos que julgue pertinentes, "inclusive de oposicionistas”. “Pergunte para os parlamentares. Eu passei quatro horas nesses dois dias respondendo parlamentares da oposição. Eu estava sentado agora com o Rogério Marinho, com o Ciro Nogueira e todo mundo sabe que eu respeito um parlamentar da oposição quanto um da situação. As pessoas perguntaram o que queriam para mim.”

Aval de Lula

O anúncio do arcabouço fiscal teve tom de volta por cima para Haddad. Desde que assumiu, o ministro já havia amargado derrotas e episódios que o deixaram, no mínimo, vulnerável às críticas de ser um ministro fraco. Logo após tomar posse no cargo, perdeu para o então indicado à presidência da Petrobras, Jean Paul Prates, e para o próprio partido, a disputa em torno da volta de impostos federais sobre os combustíveis. Na época, o presidente Lula, grande árbitro desses conflitos, contrariou o ministro da Fazenda, dando razão ao PT e a Prates.

O segundo embate sobre o mesmo assunto se deu de forma ainda mais espalhafatosa e rendeu desgaste público com a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann. Quando se voltou a discutir o fim da desoneração, Gleisi foi para as redes sociais acusar o governo de “descumprir promessas de campanha”, o que deixou o ministro furioso. Haddad estava em Bangalore, na Índia, participando da reunião do G-20, quando viu o tuite. A reação foi imediata. Telefonou para Gleisi e evocou sua autoridade no cargo, dizendo que “não dava para ela virar ministra da Fazenda no Twitter”.

“Estranho no ninho”

Equacionar um interesse aqui, outro acolá, aliás, foi a principal tarefa de Haddad na construção de seu plano para substituir a atual regra constitucional de controle de gastos, furada sete vezes desde que entrou em vigor, durante o governo do ex-presidente Michel Temer. Durante todo processo de alinhamento do arcabouço, ele precisou não melindrar o mercado, não desagradar o PT, conquistar o apoio dos presidentes das duas casas legislativas, equacionar ciúmes dentro do Palácio do Planalto e dividir com Simone Tebet (ministra do Planejamento) a feitura do plano.

O nível de melindre no Planalto foi tanto que Haddad precisou até posar sorridente para fotografia ao lado do ministro da Casa Civil, Rui Costa (PT-BA), na tentativa de dirimir qualquer insinuação de que o baiano tivesse se sentido alijado do processo de discussão. Só com Lula foram três reuniões de apresentação do arcabouço. Dos encontros, Haddad queria sair com o aval para anunciar as medidas, mas só saiu com mais recomendações de ajustes e tarefas de acertos com membros do Congresso.

Na última reunião, Lula deixou Haddad frente a frente com Gleisi. Enquanto todos do lado de fora entendiam as funções do ministro; da secretária-executiva da Casa Civil, Miriam Belchior; dos dois líderes do governo, José Guimarães (PT-CE), da Câmara, e Jaques Wagner (PT-BA), do Senado, naquele encontro, a figura de Gleisi causou estranhamentos.

Era uma acareação? Lula queria prevenir contratempos envolvendo a presidente do seu partido? Enquanto a reunião ocorria, um petista graúdo da Câmara, em reservado, fez o seguinte diagnóstico: “Gleisi está lá para puxar para os interesses do partido. Nosso programa não pode ser prejudicado por uma regra fiscal dura demais”.

Antes de o conteúdo ser divulgado, outro petista dizia ter medo da proposta. “Dependendo do que vier, será bombardeado pelo PT e pelo mercado. É ilusão de Haddad achar que vai agradar todo mundo”, confidenciou. “Nós temos um programa a zelar e, para isso, a gente tem que ter dinheiro”. Mesmo sendo do partido, Haddad ainda precisa provar que não é um “estranho no ninho”.

Foi nesse contexto que, na coletiva, Haddad comemorou o apoio de Lula. “A rota está traçada e com o aval do presidente da República. E nós vamos perseguir, e agora, com mais robustez, porque nós teremos passado um terceiro desafio juntos. Uma equipe plural, que enfrentou um terceiro desafio e conseguiu entregar o que prometeu”, disse. Ele também mandou recado ao mercado. “Quem quiser continuar duvidando, é um direito.”

Gleisi está em silêncio. Não houve um comentário sequer, nem elogio, nem crítica, nem em entrevistas, nem nas redes sociais e nem em perguntas enviadas à deputada. O que havia sido o assunto do dia na quinta-feira, suplantando até a perspectiva de uma micareta bolsonarista em Brasília, com a volta do ex-presidente dos Estados Unidos, passou batido na timeline da presidente do PT, que preferiu falar sobre o encontro que teve com o ministro da Educação e sobre a proibição de comemoração do 31 de março (aniversário do golpe de 1964) nos quartéis.

Na saída da coletiva, Guimarães, líder na Câmara, se adiantou para dizer que não haverá “fogo amigo”. “O PT vai se comportar apoiando a proposta. Eu sou líder do governo e sou vice-presidente nacional do PT, portanto, estou pronto para ajudar na aprovação dessa matéria porque ela interessa ao país e interessa ao PT”. A conferir.

Caiu, caiu...

Do hospital de Roma no qual está internado, o Papa Francisco baixou ontem um decreto canônico alterando o código de vestimenta da missa e de demais rituais católicos em regiões tropicais. Doravante, devido ao calor, os fiéis poderão frequentar a igreja de shorts e minissaias (estas exclusivamente para mulheres) e camisas regata e crop. Também foi aprovada uma versão da batina com os braços de fora e comprimento até o joelho. Na próxima semana, o Colégio de Cardeais vai se reunir para avaliar se autoriza, nas áreas de litoral, o uso de roupas de banho nas igrejas. O topless, esclareceu a Santa Sé, segue proibido.

Caiu, caiu, primeiro de abril.

Todas as culturas do mundo louvam formalmente a verdade, a ponto de João (8:32) enfatizar: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. E, no entanto, a mentira segue popular a ponto de ter um dia dedicado só a ela. Existem mentiras de todos os tipos: as grandes, capazes de mobilizar uma infinidade de pessoas; as maldosas, que destroem reputações e até mesmo a vida de indivíduos; as aparentemente leves etc. Assim como existem tipos de mentirosos: os que ruborizam até a alma, os que se entregam por pequenos sinais e os que mantêm a fleuma ao mentirem escandalosamente. Mas afinal, qual a maior mentira?

“A maior mentira que existe é ‘eu nunca minto’”, afirma a psicóloga clínica Mônica Portella, autora do livro Como Identificar A Mentira (2013). Segundo ela, embora não haja uma estatística fechada, estudos indicam que cerca de 25% das interações de um ser humano são mentiras. Mais, aprendemos a mentir antes de aprendermos a falar, pois a manha de uma criança é basicamente um choro falso para obter algo. Conseguir vantagens, aliás, costuma ser a motivação das grandes mentiras.

Ferramenta social

No filme O Mentiroso (trailer), de 1997, Jim Carey interpreta um advogado que construiu sua carreira mentindo compulsivamente. Até que, num recurso de realismo fantástico, fica não apenas incapaz de mentir, mas compelido a falar a verdade o tempo todo. É uma tragédia para a causa que está defendendo, baseada em pura falsidade, e ainda o torna incapaz de interagir com qualquer pessoa. Isso porque, como explica Mônica Portella, a “mentirinha” é uma ferramenta social.

Segundo a psicóloga, existem dois motivadores das pequenas mentiras do dia a dia. O primeiro é a autopreservação. “A pessoa mente para evitar uma punição. Por exemplo, um casal. Um dos dois chega tarde do trabalho, e o outro pergunta o motivo. A pessoa foi numa happy hour, mas, temendo uma represália, mente, fala que fez uma hora extra”, diz ela. O segundo é a proteção ao outro. “Às vezes, falar a verdade é extremamente deselegante. ‘Amor, eu perdi peso?’ ‘Não, está mais gordo ainda.’ Ninguém vai dizer isso”, explica, ressalvando que não se trata de uma apologia da mentira.

Na mesma linha, o artigo Lying motivations: Exploring personality correlates of lying and motivations to lie (Motivos da mentira: Explorando correlações de personalidade da mentira e motivações para mentir), do Jornal de Ciência Comportamental do Canadá, sustenta que as intenções altruístas ou pró-sociais estão entre as principais motivações da mentira.

Me engana que eu gosto

O ato de mentir só é eficiente se alguém acreditar. A pessoa está sendo enganada, mas não necessariamente (ou somente) pelo mentiroso. Mônica Portella conta que o autoengano é um fator importante na aceitação da mentira. Não raro em busca de conforto. “Um exemplo trivial é o início de um relacionamento. As pessoas próximas estão dizendo, por exemplo, à mulher que o homem está mentindo quando diz que a ama, e ainda apontam sinais claros disso. Mas, como aquela relação lhe dá conforto e alimenta sua autoestima, ela coloca antolhos. Escolhe não ver a realidade e ainda procura enxergar sinais do contrário”, explica a psicóloga.

Na avaliação dela, o mundo online propicia a proliferação de mentiras de todos os tipos por ser um ambiente de simulação. “Nas redes sociais nós vemos mentira o tempo inteiro, sobre o que a pessoa faz, seu padrão de vida, seu estado de espírito etc. E começa a gerar uma piração na cabeça dos usuários. Também temos distorções maldosas de fatos, difamações de indivíduos”, diz Mônica Portella, para quem a pandemia de covid-19 aprofundou essa situação. “Como psicóloga clínica, eu observei que a pandemia foi um marco. Foram mentiras criadas sobre temas complexos como vacinas, medicações, tratamento etc. E essa conta está sendo paga agora”, afirma.

O mesmo pode ser visto em quase todas as áreas. A agência de checagem Aos Fatos compilou centenas de mídias na plataforma Golpeflix mostrando a rede de mentiras que levou à tentativa de golpe de Estado no Brasil em 8 de janeiro deste ano. Mesmo na arte, a mentira e sua aceitação vão se tornando normais. Tido como anátema há algumas décadas, o playback em shows ficou comum na música pop. No meio de um passo de dança, o artista cai no chão, seu microfone voa longe, mas sua voz continua saindo das caixas.

Seja qual for o tipo de mentira, a melhor postura é o bom senso. “Algumas mentiras têm consequências perigosas para as pessoas individualmente e para a humanidade como um todo. Cada vez mais o ser humano vai precisar de discernimento, o que é particular de cada pessoa, e ter os pés no chão”, diz Mônica Portella.

Mas por que 1º de abril?

O Dia da Mentira, ou Dia dos Bobos, é uma tradição em diversos países, mas sua origem é controversa. A versão mais comum – a menos mentirosa, talvez – remete à disputa pelo ano novo. Em boa parte do Norte da Europa, por herança pagã, ele era celebrado numa série de festas que começava no equinócio da Primavera (fim de março) e terminava no dia 1º de abril. O calendário juliano, estabelecido por César em 46 A.C., marcava 1º de janeiro como início do ano, coincidindo com a posse dos cônsules que governavam Roma. Segundo a tradição, com o passar dos séculos, o calendário romano foi se tornando prevalente, com o ano novo em 1º de abril sendo tido como falso, uma mentira na qual só os bobos acreditavam.

Mas, se lembrarmos que os Júlios, família de César, afirmavam descenderem da própria Vênus, é capaz de o calendário ser mentira também.

Flopou? O ex-presidente voltou ao Brasil e virou piada, mas as mentiras alimentadas pelo bolsonarismo não são brincadeira. Eis os mais clicados da semana pelos leitores:

1. Poder360: A volta de Bolsonaro virou meme.

2. CNN: Cidades desenhadas para trabalhar com falta ou excesso de água.

3. Aos Fatos: O catálogo das mentiras que levaram ao 8 de janeiro.

4. g1: O papa "puffer" era fake.

5. The Direct: Jonathan Majors, de Homem-Formiga 3, é preso.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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