Edição de Sábado: Tudo que você sempre quis saber sobre IA

Nas contas da PWC, uma das principais consultorias do mundo, inteligência artificial poderá injetar quase US$ 16 trilhões na economia global em 2030. Um terço viria de aumento da produção e, o outro quinhão, do impacto no consumo. É mais do que produzem, por ano, China e Índia juntas. Mas o valor bonito esconde outro número ali dentro — parte do lucro virá com economia de gente. Os sistemas assumirão trabalho que, antes, pessoas assalariadas faziam.

A expectativa, de cara, é que os maiores ganhos virão no setor de saúde e no automotivo, seguidos de financeiro, logística e mídia. As empresas desses ramos que não começarem rápido a investir em IA ficarão para trás. Em não muito tempo veremos carros sem motoristas, diagnósticos feitos por computador, planejamento financeiro idem e publicidade inteligente. Mas, se empresas precisam investir, países terão também de se preparar para um grande deslocamento profissional.

E é incrível. Afinal, para a maioria das pessoas a tecnologia só entrou no radar nestes últimos meses.

A pedra filosofal

O sonho inicial da computação foi a busca de uma inteligência artificial. A corrida dominou os anos 1950 e 60, computadores eram chamados de cérebros eletrônicos. Nas universidades, boa parte dos departamentos investia pesado para encontrar uma pedra filosofal, a maneira de fazer com que os circuitos fossem capazes de emular o comportamento da mente. Pensar por conta própria, chegar a conclusões inteligentes. Toda sorte de caminhos foi testada sem chegar a qualquer resultado. Esta busca alimentou a ficção científica daquelas duas décadas, com os robôs de Isaac Asimov, o HAL 9000 de Arthur C. Clarke, ou o Blade Runner de Phillip K. Dick.

Foi o desenvolvimento do microchip e um grupo de engenheiros ligados à contracultura hippie, no Vale do Silício, que mudaram a rota da computação. Imaginaram não máquinas capazes de pensar, mas máquinas capazes de fazer com que pessoas transcendessem em suas possibilidades. Que pudessem fazer mais, melhor. Esse grupo transformou computadores em instrumentos pessoais, em produtos de consumo na década de 1970, que vinte anos depois permitiram a todos que nos ligássemos uns aos outros pela internet.

Os computadores pessoais, agora, andam conosco no bolso.

Mas, em 2012, o Google pôs no ar um sistema que era capaz de reconhecer gatos em fotos e vídeos. Dois anos depois, o Facebook anunciou aos usuários que a rede poderia reconhecer o rosto de nossos amigos nas fotos que publicávamos. Faz só nove anos, parece que foi há muito mais. E assim, lentamente, inteligência artificial foi se inserindo em nossos cotidianos sem que muitos a percebessem. Um algoritmo aqui, um filtro de foto ali, uma assistente digital que entende a fala acolá.

Os apps de texto como ChatGPT e de imagem, caso do Midjourney, mudaram a percepção por completo no ano passado. E todo mundo percebeu que o desenvolvimento acelerou. Que vai continuar ganhando velocidade a cada nova versão. O que talvez tenha passado despercebido é que, na origem, todos esses sistemas datam dos anos 50.

A pedra filosofal foi descoberta lá atrás e nem os primeiros cientistas da computação o haviam percebido.

Máquinas que aprendem

A inteligência artificial que conhecemos foi inventada por Arthur Lee Samuel, um matemático que trabalhava na IBM, em 1959, quando escreveu um vídeo game. Era um jogo de damas digital com uma peculiaridade. Ele ficava melhor a cada partida — o jogo aprendia. Como naquelas máquinas primitivas a memória era parca, Samuel desenvolveu um método para o computador sintetizar em poucas informações cada jogada, cada possibilidade de distribuição no tabuleiro, cada caminho novo que aprendia para vencer. Quando quase trinta anos depois o Deep Blue da mesma IBM venceu o campeão Garry Kasparov numa partida de xadrez, a técnica empregada era a mesma. A diferença é que entre 59 e 1997 houve um salto na capacidade de processamento dos computadores e, assim, as máquinas foram capazes de dominar a complexidade do xadrez. O que faltava àqueles primeiros engenheiros não era descobrir o jeito de fazer computadores pensar. Era dar a eles capacidade de processar muita informação simultânea em frações de segundo.

Demorou mais vinte anos para, em 2016, uma outra máquina vencer um humano no ainda mais abstrato jogo Go.

O desenvolvimento da inteligência artificial no século 21 pode ser dividido em três fases.

A primeira é a entrada da Big Data no jogo. Logo que a internet se popularizou nasceu junto o problema de como achar informação ali. Eram muitas páginas web, cada qual com sua estrutura. Os sites de busca iniciais não conseguiam resolver o problema da hierarquia. De como informar qual página era mais adequada para aquele tema. Em 1988, o Google fez isso. Obra de dois doutorandos em engenharia da computação da Universidade de Stanford, a mesma onde Arthur Samuel havia dado aula até o fim da vida.

Um dos truques da eficiência do Google, após um tempo, era o fato de que o sistema havia, em essência, copiado quase toda a web em suas próprias máquinas. Já no início do século, era uma jovem e promissora companhia que tinha uma imensa quantidade de dados desorganizados armazenados. De um lado, aquele bando de páginas. Do outro, informação sobre que pessoa clicava no quê. Para se tornar lucrativa, a empresa precisava criar um sistema de publicidade que mostraria o anúncio certo para cada usuário.

O que aprendizado de máquina faz, em essência, é isso. Pode analisar os padrões de movimento das peças num tabuleiro de jogo. Aí precisará entender qual é o lance seguinte mais provável de levar à vitória. Após ver centenas de milhares, milhões de partidas, ele vai dominando. Afinal, faz contas muito rápido. Qual, então, a probabilidade de alguém que faz buscas por um tema se interessar por outro não necessariamente correlato? Após analisar milhões de buscas de pessoas muito diferentes ao longo de muitos anos, o sistema também vai aprendendo. E é capaz de inserir propaganda com mais chances de ser clicada.

Naquela mesma primeira década do século, a técnica de aprendizado de máquina foi aplicada também pelo Facebook, a rede social que inaugurou o uso de algoritmos que escolhem qual postagem vai nos levar a maior interação.

Este processo foi acelerado a partir de 2006, com a invenção do Deep Learning, aprendizado profundo. Em essência é uma técnica inspirada na forma com que neurônios funcionam para resumir aquilo que a máquina aprende. Este tipo de aprendizado de máquina é particularmente eficaz, até por ser inspirado em nossos cérebros, em resolver o tipo de problema que nós resolvemos. É do Deep Learning que vem a segunda geração da inteligência artificial: aquela capaz de reconhecer imagens, voz ou texto. Do carro autônomo ao Google Photos à Alexa ou Siri, todas tecnologias surgidas após 2010.

Agora, entramos na era em que as máquinas deram novo salto. Não apenas reconhecem imagens, voz ou texto mas também são capazes de criá-las. Gen-AI ou inteligência artificial generativa.

Máquinas que alucinam

Ocorre que inteligência artificial não é de fato inteligência. Assim como lá atrás, no jogo de damas da IBM, cada um destes sistemas segue sendo uma calculadora de probabilidades. O que muda é a proporção. Lançado em 2019, a versão 2 do GPT, o modelo de linguagem escrita da empresa OpenAI, trazia embutidos 1,5 bilhão de parâmetros.

LLMs como o GPT são Grandes Modelos de Linguagem — a sigla vem da expressão em inglês. Estes LLMs são uma aplicação de Deep Learning para texto escrito. O modelo é alimentado com uma quantidade imensa de textos de pessoas, em geral coletados livremente da internet. Então, comparando cada frase de cada texto com cada frase de cada outro texto, o sistema vai aprendendo tanto como criar estrutura gramatical como sobre os assuntos diversos tratados naquela base de dados. As lições que aprende ele as resume nestes parâmetros — 1,5 bilhão no GPT 2. Ou 170 trilhões no GPT 4, que está por trás da versão paga atual do ChatGPT.

Sim: a diferença é muito grande.

Mas não se trata de uma inteligência. Continua sendo uma calculadora de probabilidades incapaz de pensar logicamente. O que ele faz é compreender a pergunta que lhe foi feita e, a partir dali, escrever uma palavra, então encaixar a palavra mais provável de aparecer após aquela anterior, e assim sequencialmente.

A jornalista Cora Rónai costuma brincar com o que o ChatGPT diz quando perguntado quem ela é. Fala de uma artista plástica brasileira dos anos 1950 — uma pessoa que jamais existiu. O fotógrafo Jairo Goldflus também relatava esses dias a própria experiência com o aplicativo, que inventou para ele um alter-ego, também fotógrafo paulistano de nome Jairo Goldflus. Mas este migrou para Los Angeles aos 18 e seguiu carreira na publicidade trabalhando em campanhas de Nike, Adidas e Apple. Não é o Jairo real.

São alucinações — este é o termo técnico. Quando não tem informação o suficiente entre seus bilhões ou trilhões de parâmetros, o ChatGPT segue fazendo aquilo que sabe fazer. Encadeia palavras, uma após a outra, baseando-se na probabilidade que depreendeu a partir dos bancos de dados com os quais foi alimentado. Não tendo informação, inventa. Inventa sem saber que está inventando. Porque não pensa, não sabe, só lista palavras uma a uma calculando probabilidade. Alucinações de inteligência artificial não são exclusivas de modelos de texto. O retrato de uma mulher apavorante, ao que parece baseado em ninguém que exista, foi percebido se repetindo nas imagens de um aplicativo criador de imagens. Ela foi batizada de Loab.

Embora saibamos que estes sistemas de inteligência artificial alucinam, em geral não conseguimos descobrir que caminho os levou até a história inventada ou o rosto terrível que se repete aparentemente sem razão. É que a maioria das aplicações são caixas pretas. Os sistemas são alimentados com grandes bancos de dados e aí criam seus parâmetros. Estes parâmetros não são compreensíveis nem para os programadores que os criaram. A inteligência artificial cria um texto ou uma imagem mas, em geral, não temos como saber qual o ‘raciocínio’ que seguiu.

Quando o algoritmo ameaça

Ser caixa preta é um problema. Afinal, o uso destas tecnologias que nasceram na esteira do aprendizado de máquina não se limita à criação de textos ou imagens. Anticorpos, proteínas e mesmo remédios já estão sendo criados seguindo rigorosamente o mesmo processo. Nenhum foi aprovado ainda para uso humano, mas acontecerá em breve. E há aplicações que não passam pela criação de algo novo mas de análise de padrões. Confirmação da identidade de alguém pelo rosto em aeroportos. A decisão do risco que uma pessoa oferece para uma seguradora ou para um banco que precisa definir se concederá um empréstimo. Vai além — IAs podem ser usadas para selecionar quem uma empresa irá recrutar ou quem ganhará uma promoção. Não é difícil imaginar um futuro em que sistemas assim poderiam ser usados na Justiça para definir que pena dar a cada pessoa baseado no que for mais eficaz para cada indivíduo.

Quanto mais longe vamos nas possibilidades abertas, mais conflitos são levantados perante os valores que uma democracia representa.

A União Europeia já começou a desenhar um anteprojeto de regulação. Uma das decisões consolidadas é de que a nova lei irá proibir o uso generalizado de reconhecimento facial à distância. Será ilegal reconhecer pessoas na multidão com, por enquanto, uma única exceção aberta — para busca de crianças desaparecidas.

Criar regras para algo tão novo exige buscar paralelos. Os europeus começaram, portanto, nos direitos já estabelecidos para consumidores. A partir daí, criaram uma classificação em quatro níveis de risco: inaceitável, alto risco, risco limitado ou mínimo. Os casos inaceitáveis são aqueles em que direitos individuais são abertamente violados. Reconhecimento facial ou biométrico na multidão é um, mas também sistemas que manipulem pessoas ou aqueles que dividam a sociedade em hierarquias de pessoas de maior ou menor valor. Estes usos serão proibidos.

Os usos de alto risco são justamente aqueles para definição de crédito, de recrutamento profissional, identificação biométrica individual. Nestes casos, em que direitos individuais podem ser potencialmente ameaçados, será cobrada transparência — uma pessoa precisa receber a garantia de que não foi vítima, por exemplo, de algum viés preconceituoso do algoritmo. E este tipo de uso bate, diretamente, com o fato de que a maioria das aplicações são caixas pretas. Existem exceções, os sistemas chamados XAI, na sigla em inglês para inteligência artificial explicativa, mas são raros. A solução para as caixas pretas, então, deve passar por testagem frequente das aplicações com casos hipotéticos. É para ter certeza de que pessoas serão tratadas com justiça, de forma equivalente. Talvez um órgão regulador seja instado a dar um selo garantindo a qualidade dos sistemas.

Qualquer aplicação de IA para classificar pessoas e determinar quem tem acesso a que tipo de serviço ou emprego, numa sociedade, oferece o perigo de reforçar as desigualdades já existentes. Afinal, treinadas com bases de dados que carregam o histórico do passado, podem terminar por consolidando um comportamento baseado em preconceitos já instalados.

A nova Guerra Fria

No ano de 2022, os chineses promoveram mais conferências, publicaram mais revistas científicas e artigos acadêmicos do que os americanos na área de inteligência artificial. Os EUA dominam em apenas uma frente — artigos técnicos de americanos continuam sendo mais citados. Ocorre que isso indica na verdade quem dominava a produção passada.

Mas este não é o único parâmetro para definir quem está vencendo a corrida pelo domínio da tecnologia. Até 2014, universidades lideravam no mundo a produção de conhecimento no campo da IA. Desde então, o setor privado assumiu a dianteira. Os cientistas seguem publicando artigos quando trabalham para empresas ao invés da academia, mas não no mesmo ritmo. E, em 2022, os EUA investiram principalmente nestas companhias quase US$ 50 bilhões em IA. A China, que vem em segundo no investimento, pôs pouco mais de US$ 13 bilhões.

Ou seja: é fora das universidades que os americanos estão botando suas fichas para dominar o setor da IA. E é um engano enxergar este processo como um de rivalidade e só. De 2010 para cá, projetos de colaboração entre americanos e chineses quadruplicaram.

Pois é. Na conta da PWC, quase US$ 16 trilhões novos, injetados na economia global em 2030 pela inteligência artificial. A consultoria aposta que os EUA levarão US$ 4 trilhões deste pacote e, a China, US$ 7 trilhões. A América Latina é a região do mundo que menos se beneficiará. O impacto, por aqui, será de meio trilhão de dólares — o que fará diferença é a adoção num ritmo mais lento. Só confirma a maior a maior ameaça que a inteligência artificial impõe: a de reforçar desigualdades já existentes.

Uma espiada na Rio2C

Na terça-feira, começou no Rio de Janeiro o maior encontro de criatividade da América Latina. A Rio2C, que acontece até amanhã, pretende levar 40 mil pessoas às mais de 800 horas de conteúdo em 12 palcos da Cidade das Artes, na Barra da Tijuca. Com a proposta de unir diferentes indústrias criativas, o evento apresenta painéis com temas como streaming, políticas públicas, esportes, cinema, música, criptomoedas, moda, artes manuais, sociologia, educação e muito mais.

IA é top-tema

Inteligência Artificial não ficou de fora da programação do festival. O australiano Brett King, pioneiro nas discussões sobre o futuro das fintechs e best-seller internacional, com obras como Bank 2.0, apresentou a palestra “A Ascensão Do Tecnossocialismo — Como a Desigualdade, a Inteligência Artificial e o Clima Irão Mudar o Mundo”, tema de seu livro mais recente. Provocativo, o futurista pintou um cenário, segundo ele bastante provável, de automação de tudo o que não precisa ser feito por humanos até 2050 ou 2060. Ele é otimista. Defende que a humanidade tem chances de viver em um mundo melhor. “Haverá preocupações com emprego, claro, mas se as pessoas pressionarem o governo para desenvolver políticas públicas para que essas automatizações cheguem a todos, a gente consegue ter um mundo mais equalizado, trabalhar menos e consumir um pouco de tudo”, afirmou.

Para o autor, o caminho da IA é automatizar tudo para que as pessoas tenham acesso ao básico, como comida, habitação, entretenimento. “É fundamental nos adaptarmos de forma inclusiva e mudar o sistema, ou vamos resgatar o feudalismo. Se não houver apoio dos governos, uns irão concentrar mais e as automatizações ficarão embarreiradas só para as pessoas ricas”, alertou.

Negócios sustentáveis

A preocupação com as mudanças climáticas também é foco de boa parte dos encontros na Rio2C. A atriz e ativista socioambiental Laila Zaid conduziu um painel sobre negócios sustentáveis, chamando atenção para as marcas que recorrem ao famoso greenwashing em vez de responderem aos desafios socioambientais em suas estratégias. “Greenwashing consiste em promover campanhas publicitárias com um ‘selo’ de eco-friendly, porém, na prática, as atitudes do anunciante não correspondem. Isso cria uma falsa aparência de sustentabilidade e induz o consumidor ao erro, uma vez que ele acredita que está contribuindo para a causa ambiental ao comprar o produto anunciado”, explica. Laila também é autora do livro Manual Para Super-Heróis, um guia para crianças sobre consciência do impacto ambiental, e atua como educadora na rede municipal do Rio de Janeiro, experiência que ela compartilhou em um TEDx na capital fluminense.

Ancestralidade como ferramenta de criação

A artista e ativista beninense Angélique Kidjo protagonizou um dos mais bonitos talks com o painel “Vozes da Transformação”. Além de cantar e emocionar uma plateia lotada no maior palco do evento, a premiada cantora falou sobre a música e a educação para a transformação social. “Suas memórias do coração são mais fortes que as do cérebro. Cresci numa família em que meu pai foi o primeiro homem feminista que eu conheci. A filosofia dele era de que o ser humano não é uma cor e que a educação era importante para criarmos um mundo de paz. A educação, para mim, é central para deixarmos de ser estúpidos”, afirmou.

A cultura dos memes

A viralização de memes, especialmente os de humor, foi pauta do bate-papo entre os influenciadores Matheus Diniz, do Greengo Dictionary, Alan Pereira, do Saquinho de Lixo, e Gabriel Felix, idealizador do Meme Awards. Responsáveis por engajar milhões de seguidores nas redes sociais, eles debateram com o empresário Flávio Santos sobre a profissão de meme maker, inventada há pouco tempo e que já emprega grandes profissionais criativos do mercado da comunicação. “Meme é feeling, é identificar uma notícia ou assunto que é a tendência e criar algo novo para seus seguidores, dentro da identidade de cada perfil”, disse Gabriel.

A programação completa da Rio2C está no site do evento.

'Popcorner' estreia neste domingo

O sucesso do filme do Mario (que Mario?), os círculos inseguros do Twitter, os últimos lançamentos de séries, cinema e quadrinhos, a TV 3.0. Tudo isso você encontra no Popcorner, o programa de cultura pop do Meio que estreia amanhã, domingo, às 11h15. Entre lá no canal e assista!

'Meu bloco é maior que o seu'

Tarde de quarta-feira, Salão Verde lotado. Refletores triplicavam o calor do saguão da Câmara dos Deputados à espera da entrevista do líder do União Brasil, Elmar Nascimento (BA). Repórteres e assessores se acotovelavam na borda do círculo marcado pelo tapete bege redondo que delimita o picadeiro. Ao centro, sentados no chão, jornalistas estavam prontos para a transmissão do anúncio do dia: a oficialização de um bloco parlamentar com sete partidos e uma federação. O “superbloco”, engendrado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), reuniu sob a mesma lona PP, União Brasil, Solidariedade, Avante, Patriota, a federação PSDB-Cidadania e, mais à esquerda, PSB e PDT. Distante fisicamente, Lira era o personagem mais presente naquele salão.

Vindos da Residência Oficial da Câmara, onde Lira se restabelece de uma cirurgia, os atores chegaram pelo elevador privativo que dá acesso ao cafezinho. Antes da coletiva, Nascimento e o deputado Felipe Carreras, do PSB de Pernambuco, ainda tentavam arrumar explicações para as diferenças internas do bloco. Reconheceram que o melhor caminho era admiti-las. “Colocamos nossas questões de lado no sentido de construir um bloco que seja majoritário na Câmara dos Deputados”, iniciou Nascimento. “Não há qualquer tipo de interesse de criar, sobretudo com o governo, qualquer tipo de celeuma”, avisou. Carreras seguiu: “Nós, do PSB, do PDT, do Solidariedade, partidos do campo de centro-esquerda, aliados de primeira hora do presidente Arthur Lira, vamos iniciar a largada desse bloco, simbolizando que ele vai ajudar o presidente Lula a pavimentar a governabilidade e ter uma base sólida aqui na Câmara. Isso tem que ficar muito bem registrado”, ressaltou.

Ao apresentar a nova tropa, de 173 deputados, Lira tenta embalar como uma grande vitória sua readequação a um tamanho bem mais realista na disputa por poder em Brasília. “É como na pré-história. Lira ainda é dono do tacape”, comentou um aliado, sob reserva. Mas é claro que não é possível comparar a dimensão atual com a que ele tinha no ano passado, no governo de Jair Bolsonaro (PL-RJ), quando controlava todo fluxo de emendas do orçamento secreto e ao menos 315 deputados do Centrão. Lira também tinha nas mãos parlamentares do PT e outros partidos de oposição, que se beneficiaram das emendas de relator. “Aquela conjunção não se repete mais e ele sabe disso”, resumiu outro interlocutor.

“Dois centrões”

O superbloco nasce de um outro superlativo e uma frustração. Duas semanas antes, foi oficializado o “blocão”, com 142 deputados, unindo MDB, PSD, Republicanos, Podemos e PSC, legítimas agremiações do centrão. Lira viu seu feudo dividido e precisou reagir.

Enquanto a entrevista ocorria no Salão Verde, a poucos metros dali, no corredor das comissões, um petista graúdo reclamava: “Por que o PT, tendo o governo, não puxou o bloco de apoio? Tem gente da nossa base lá, Se antes a gente tinha um centrão, agora temos dois. Haja cargo!”, reclamou, em conversa reservada com o Meio. Bem que Gleisi Hoffmann, presidente do PT, tentou trazer PDT e PSB para um bloco de esquerda. Mas falhou.

Os dois blocos do Centrão escancararam o desenho atual da Câmara. Deixaram, de um lado, o PT sozinho na federação com o PCdoB e PV. Dessa forma, a federação que era a segunda maior bancada da Câmara, com 81 deputados, passou para o 4º lugar. Do outro lado está o PL, com 99 deputados, que passou a ser o terceiro na lista. Como é da política, todo mundo tentou revestir as derrotas de escolhas bem calculadas. “O PL achou que não seria vantagem compor bloco agora, com todas as presidências de comissões já distribuídas”, disse ao Meio o deputado Ricardo Salles (PL-SP), ex-ministro de Meio Ambiente de Bolsonaro. “Seremos o fiel da balança”, avaliou o líder do partido, Altineu Côrtes (RJ), prevendo os embates que serão travados em plenário.

O resmungo em relação ao superbloco de Lira não é unanimidade no PT. Também não corresponde ao sentimento da articulação do Planalto. É claro que a apresentação da tropa de Lira foi vista como demonstração de um poder ainda bastante grande. Mas o governo enxerga pontos vantajosos. O maior deles é a percepção de isolamento do PL, principalmente da ala mais radical, bolsonarista. O Planalto sabe que teria um cenário muito pior se o PP de Lira e o União Brasil se unissem ao PL de Valdemar da Costa Neto. Também é vista com bons olhos pelo governo a presença de partidos aliados no superbloco de Lira. “Facilita o diálogo”, disse um dos auxiliares de Lula.

A divisão do Centrão teve mais um efeito: antecipou a corrida pela sucessão na Presidência da Câmara, que só acontece em 2025. O blocão do Republicanos já aponta para o nome do deputado Marcos Pereira (Republicanos-SP), que foi 1º vice-presidente da Casa no mandato passado, mas sempre esteve longe de ter o apoio de Lira que, por sua vez, quer Elmar Nascimento. Na coletiva, Nascimento tentou se desvencilhar do assunto. “Tem dois meses que ele assumiu e eu vou tratar de sucessão?”, devolveu. Mas, ao ser confrontado com a condição de candidato de Lira, não resistiu: “Deus te ouça. Eu gostaria muito”, respondeu.

Outro fator para o redimensionamento de Lira é o embate com o Senado, de Rodrigo Pacheco (PSD-MG), na questão do rito de tramitação de medidas provisórias. Lira até teve uma pequena vitória no Congresso, com a decisão de que apenas três MPs prioritárias voltariam ao modelo pré-pandemia e a discussão sobre a proporção entre deputados e senadores seguiria adiante. Mas perdeu feio diante da opinião pública. E sentiu. As comissões mistas para as matérias priorizadas pelo Planalto foram instaladas sob os moldes previstos na Constituição (ainda que as relatorias estejam sob forte influência de Lira). Sobraram a ele críticas que falam de desrespeito à Carta Magna, de boicote e chantagem ao governo.

Na terça, na hora marcada para a instalação das comissões mistas, Lira chamou uma reunião de líderes na residência oficial, que atrapalhou, por pelo menos duas horas, o quórum de deputados para a definição dos colegiados. Foi o suficiente para inflamar os senadores, principalmente seu adversário local, o senador Renan Calheiros (MDB-AL). A repercussão negativa da falta de quórum fez Lira se mobilizar. O que seu viu foi um corre-corre de deputados para desfazer a ideia de boicote. “Eu estava na residência oficial e Lira me pediu que viesse desfazer o mal-entendido. Ninguém está boicotando nada”, disse o deputado Danilo Forte (UB-CE), enquanto atravessava, a mil, os salões Verde da Câmara e Azul, do Senado, para marcar presença na sala da comissão.

Sinais de adaptação

Desde a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que acabou com o orçamento secreto, Lira tem se visto obrigado a se adaptar. Vai se redimensionando para se apropriar dos espaços restantes e, assim, evitar que esses flancos troquem de dono. No dia seguinte ao anúncio do superbloco, o próprio Lira se ocupou de fazer acenos tranquilizantes ao Planalto, sobre “chantagens” ou “oposição”. No passado, dificilmente Lira se dedicaria a esse desagravo.

Lira sabe que hoje existe um presidente forte no Planalto. Não por acaso foi o primeiro a reconhecer a vitória de Lula nas urnas, enquanto Bolsonaro, seu aliado na época, se trancava no Alvorada. Lira também foi certeiro e rápido em condenar os atos antidemocráticos de 8 de janeiro. E tem se colocado como um interlocutor importante do ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), nas articulações para aprovar um novo marco fiscal. Movimentos feitos por ele viabilizaram exaustivos encontros de Haddad com deputados para explicar a proposta. Na véspera da apresentação do plano, a “aula de Haddad” na residência oficial da Câmara durou mais de quatro horas.

Outro sinal de que Lira quer evitar celeumas com o Planalto e com Lula está em sua disposição para botar freio nos arroubos bolsonaristas, principalmente de novos deputados, que vêm perturbando os trabalhos. Nesta semana, após ser cobrado publicamente pelo ministro da Justiça, Flávio Dino (PCdoB), Lira pediu à TV Câmara a íntegra da gravação da visita de Dino à Comissão de Segurança Pública da Casa.
“Ou o presidente Arthur Lira toma providências, ou essa gente extremista, violenta, além de fazer ameaças, é capaz de agredir pessoas aqui”, apontou o ministro, enquanto se retirava sob gritos de “fujão”. Lira ouviu e não gostou. Segundo interlocutores, ele cobrará providências do Conselho de Ética. É o Lira modelo 2023.

Acusações de comportamentos inapropriados pautaram a semana. Aqui estão os mais clicados pelos leitores:

1. g1: Quer ver a explosão de uma supernova de 340 anos atrás?

2. Twitter: A deputada Júlia Zanatta acusa o colega Márcio Jerry de assédio sexual.

3. YouTube: Ponto de Partida — O que Lula e inteligência artificial têm a ver?

4. Twitter: A defesa de Márcio Jerry sobre a acusação da colega.

5. CNN Brasil: Dalai Lama pede desculpas.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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