A era da antiverdade

O Brasil está prestes a embarcar numa CPI e na análise de um projeto de lei que vai testar os limites do que estamos dispostos a aceitar de distorção dos fatos e da realidade

Pouco mais de dois anos atrás, no dia 13 de abril de 2021, o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), lia o requerimento de criação da CPMI da Pandemia. Fazia três meses que o Brasil começara a vacinar sua população, apesar dos esforços contrários do governo de Jair Bolsonaro. Ainda com alto grau de isolamento social e de estupefação pelo negacionismo científico da extrema direita, os brasileiros se acomodaram diante de suas múltiplas telas para assistir, atônitos, à brutal exposição do quanto o bolsonarismo estava disposto a mentir e distorcer dados concretos e estudos acadêmicos para justificar sua incompetência e má-fé. As redes sociais eram as câmaras de ressonância. Da evocação da ex-atriz pornô pesquisadora de cloroquina (meme que virou notícia falsa que virou piada global) aos depoimentos devastadores de pessoas que perderam familiares para o vírus, passando pela prisão de quem mentia flagrantemente, a CPI da Covid, nome que pegou na imprensa e nas redes, produziu muito barulho e, até aqui, poucos resultados práticos. Mas ofereceu conhecimento empírico, em tempo real, da pós-verdade enquanto estratégia política.

Estamos prestes a embarcar numa nova CPMI — essa ainda sem nome, oficial ou de guerra. Vamos chamá-la, aqui e por enquanto, de CPI dos Patriotas. Governo e oposição se inverteram. O governo Lula se opunha a essa investigação no Congresso, argumentando que ela já corre na Justiça — e Bolsonaro deve depor ainda hoje nesse inquérito e, possivelmente, permanecerá calado sobre o ataque em si. Perante o ilimitado acervo de imagens regalado ao Brasil, na mídia tradicional ou nos perfis golpistas, sobre como foram depredadas as sedes dos Três Poderes da República naquele 8 de janeiro, era de se supor que a investigação fosse se ater a quem idealizou e financiou a intentona e quem foram os participantes que não estiveram fisicamente presentes na selvageria, mas ali estavam enquanto patrocinadores ideológicos. Acontece que na gênese da CPI está um questionamento surreal: o governo vítima da tentativa de golpe teria sido cúmplice dos golpistas? Para quem tem a dosagem mínima de apego aos fatos para se produzir civilização, a mera suposição, em se tratando dos envolvidos, é risível. Só que ninguém está rindo.

Na era da pós-verdade, tudo se torna questionável. Fatos principalmente. A extrema direita não tem plataforma, a não ser a de embaçar os limites do incongruente com os do lógico.

Paralelamente, na Câmara dos Deputados, o PL das Fake News teve seu trâmite acelerado. O texto ainda não está bem acabado, contribuições (ou desidratações) devem ocorrer, há críticas e elogios a serem feitos. Ao menos um efeito a movimentação na Câmara já provocou. Deputados bolsonaristas — já é hora de perdermos o pudor de admitir que quase todo o lavajatismo se aninhou descaradamente no bolsonarismo — usaram suas redes, o alvo da regulação, para espalhar fake news sobre o projeto de lei, que proibiria posts de passagens bíblicas. É como se alguém tivesse encomendado um PowerPoint a Deltan Dallagnol pedindo que ele desenhasse o porquê de a lei ser tão necessária. É pós-verdade de almanaque.

Um dos maiores teóricos da pós-verdade, o filósofo Lee McIntyre descreve assim o conceito: pós-verdade é uma afirmação de supremacia ideológica pela qual seus praticantes tentam obrigar alguém a acreditar em algo, independentemente das evidências. Esse ataque às evidências pode ser via ciência, como vimos na pandemia. Tudo indica que, na CPI dos Patriotas, será via História. E a história do tempo presente, que aconteceu há 108 dias. Fresca na memória do desmemoriado povo brasileiro.

A crônica do presente é mediada pela imprensa. Mais recentemente, pelas redes sociais. Numa CPI, também pelos políticos. E, convenhamos, não é fácil acreditar em político algum. Políticos e mentira vivem uma união estável — com as poucas e distintas exceções de praxe. Esse senso comum de que todo político mente era mais associado à ideia da desonestidade pecuniária, de que todo político é ladrão e, portanto, mentiroso. Também era uma percepção de que os políticos, com suas tecnocracias ou platitudes, frequentemente não eram verdadeiros; além de desonestos, eram chatos. O bolsonarismo subverteu isso. Transformou a mentira política em estratégia e entretenimento, não apenas em ferramenta de diversionismo para eventuais atos de corrupção.

A inversão é que, em vez de temer serem pegos na mentira, os bolsonaristas se refestelam nela. Usam as distorções como trampolins. Além de enganar, querem chocar, provocar, contaminar qualquer tentativa de conversa produtiva. E ainda aproveitam essas mentiras ultrajantes para tentar convencer a todos de que elas só são tão escandalosas porque ninguém mais as percebia enquanto verdades, ou não tinha coragem de falar daquilo. Transformam a fraude em audácia. Foi o que fizeram ao “denunciar” o repórter fotográfico da Reuters, que estava perto dos golpistas apesar de sua violência contra jornalistas, como operador do governo Lula. Ou, numa amostra ainda mais patética, ao “revelar” uma bandeira do MST na invasão do Planalto, sendo que se tratava da bandeira do Rio Grande do Sul.

O bolsonarismo não é original em sua capacidade de criar um movimento político em torno do completo desprezo por fatos, não só da habilidade para distorcê-los. O termo pós-verdade apareceu pela primeira vez na década de 1990. Virou verbete de dicionário em 2016, na esteira do trumpismo e do Brexit. Donald Trump é o pioneiro da pós-verdade enquanto política de Estado. Foi tão longe que criou uma rede social com o único propósito de ecoar suas mentiras cujo nome é Truth Social. Esse é o nível da distopia.

Se quisermos encarar o problema de lidar com uma categoria inteira de políticos que tem a mentira como plataforma, não pode haver espaço para hipocrisia.

A relativização da verdade já serviu a comentaristas políticos da imprensa e intelectuais como uma espécie de super poder, uma visão além do alcance que só os abençoados teriam, e não os mero mortais.

Isso pode ter servido, em alguma medida, para distanciar as pessoas do desejo de compreender a verdade factual das coisas. Enquanto a descrença na mídia tradicional crescia, surgiam os veículos com pinta de convencionais que transitam no limiar da mentira — e cruzam a fronteira intencionalmente muito mais vezes do que o aceitável. FoxNews e Jovem Pan News são exemplos. Esses veículos entram na cadeia da desinformação com papel relevante. A mentira nasce e é primeiro jogada em canais pequenos e visivelmente pouco confiáveis. Depois, é testada em grupos privados de WhatsApp e Telegram. Aceita, ela passa por uma fermentação em redes sociais, até ser reproduzida com cara de “eu, analista com independência e fontes que você não tem, tenho o direito de questionar” nesses veículos que se vendem por sérios. Está completo o ciclo.

É a esse teste de estresse que nossa democracia será submetida com as fake news sobre o PL das Fake News e a CPI dos Patriotas. Há ao menos dois resultados possíveis: ou a desfaçatez da extrema direita vai ficar tão evidente que pode beneficiar o governo Lula e acabar cada vez mais fadada à sua bolha. Ou, ao estourá-la, contaminará de forma indelével os moderados e a democracia brasileira. É papel de vários atores preservar a história do dia 8 de janeiro. Cabe à imprensa parte da enorme responsabilidade de não relativizar fatos, de mediar a história corrente com precisão e sobriedade. O delírio dos golpistas de porta de quartel, a depender do resultado da CPI, pode virar versão oficial. Seria a inauguração de uma nova era, talvez a da antiverdade explícita.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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