Deltan, a nova vítima da Lava Jato

Bolsonaro erodiu Executivo e Legislativo, relegando ao Judiciário a tarefa de manter em pé a democracia. Agora, lavajatistas aninhados no bolsonarismo provam da elasticidade de interpretações jurídicas que ajudaram a inaugurar

Toda análise a quente é imprecisa. Não tem jeito. Os acontecimentos ainda estão em curso, não estão claros todos os impactos. Mas a natureza jornalística exige que a gente procure significado no que acaba de acontecer. O artigo desta quarta para o Meio Político era para tratar doutro assunto. Só que foi cassado o mandato de Deltan Dallagnol e assim tem início a já esperada ofensiva do Tribunal Superior Eleitoral contra o bolsonarismo. E não é só. Ao cassar Deltan, o TSE apresentou também uma interpretação rara da Lei da Ficha Limpa. Os juízes podem fazer isso, mas não há como fugir de um fato: parece que se escolheu uma leitura muito pouco usual especificamente para tirar o mandato de um deputado particular.

O artigo 2 da Lei da Ficha Limpa torna inelegíveis membros do Ministério Público que pedem exoneração enquanto há um processo administrativo disciplinar pendente. Ocorre que Deltan não enfrentava um destes quando deixou a Procuradoria Federal. Havia, sim, 15 procedimentos no Conselho Nacional do Ministério Público que poderiam vir a se tornar processos. Quando pediu sua exoneração, foram todos extintos. O TSE cassou Deltan por unanimidade, 7 votos a 0, ao considerar que ele fugiu da possibilidade de que um desses fosse aberto. Tivesse sido aberto e Deltan pedisse exoneração após, estaria inelegível.

Só que não aconteceu.

O TSE, assim, condenou Deltan à inelegibilidade a partir de uma interpretação que não parece ter adotado antes: a de que ele avaliou que poderia terminar sem condições de ser candidato, então se antecipou. É uma inovação dos sete juízes que não segue a praxe da Corte. Aliás, não segue um princípio que o tribunal sempre havia adotado. O de que, na dúvida, opta-se por preservar o direito de escolha do eleitor. A elegibilidade.

O gatilho para considerar injusto contra Deltan e seus eleitores dispara de imediato. Ocorre que esta é a matéria da qual foi feita toda a Lava Jato: inovações jurídicas, mudanças na jurisprudência, uma busca constante por interpretações novas e deliberadamente pinçadas das leis para encaixar as pessoas que se buscava condenar. Reconhecer a ironia do caso é inevitável. E, por isso mesmo, precisamos retornar ao que foi a Lava Jato.

Muitos que ainda defendem a operação se queixam de quem observa o óbvio: ela criou o bolsonarismo e, depois, se misturou e se dissolveu nele. A queixa dos defensores vem com uma busca clara. A de separar Lava Jato da ideologia que governou o Brasil entre 2019 e 22.

A Lava Jato até talvez não fosse, inicialmente, um movimento de extrema-direita. Mas, ao abraçar Jair Bolsonaro como líder, se tornou ambos. Um movimento político e de extrema-direita.

Quando Sergio Moro divulgou uma acusação nunca comprovada do ex-ministro Antonio Palocci na véspera da eleição presidencial de 2018, quis interferir no pleito. Ao aceitar o cargo de ministro da Justiça logo que Bolsonaro se elegeu, demonstrou afinidade política. É verdade que Moro depois renunciou ao ministério e saiu acusando Bolsonaro. Aí tentou ensaiar uma candidatura à presidência que nunca decolou. Retrocedeu e imediatamente tornou ao berço. No Paraná, ele para senador, Deltan para deputado federal, fizeram ambos campanha em dobradinha repetindo o nome de Bolsonaro a torto e a direito. Seguiram o script, beijaram a mão, elegeram-se com votações recordes. Num dos cantos mais bolsonaristas do país. Os dois principais responsáveis pela Lava Jato no Paraná se tornaram os principais representantes do bolsonarismo no estado.

Isso é escolha política.

Mas para além das relações pessoais, há uma segunda dimensão, uma dimensão ainda mais importante para este elo entre a Lava Jato e o bolsonarismo. O crime principal desvendado no caso ocorreu. Dinheiro foi desviado da Petrobras através de obras superfaturadas, distribuídas por entre um punhado de empreiteiras. Neste caminho, executivos da companhia e uma longa lista de políticos foram beneficiados com percentuais dos contratos. Propinas.

Não foram apenas políticos do PT. Foram de toda gama de partidos. PP, PL, incontáveis do MDB. A lista terminou por incluir até tucanos, principais adversários petistas. Logo a Lava Jato adotou um padrão de comportamento. Mandava prender gente sem condenação, apelando para uma detenção provisória ou preventiva, em geral mais de um que conheciam a mesma história, para enfia-los no dilema do prisioneiro. Quem delatar primeiro terá mais vantagens perante uma condenação. Foi com este truque que a Lava Jato se ergueu. E, depois soubemos pelas conversas vazadas dos telefones que Deltan, Moro e os procuradores combinavam o jogo o tempo todo.

Não pode um juiz combinar o jogo com um dos lados. Ele fere a própria natureza do equilíbrio que a Justiça exige. Prisões, numa sociedade democrática, deveriam ser a exceção, não a regra. Aquilo que se evita ao máximo sempre ao ponto do inevitável. Não há Justiça com prisões arbitrárias. Não há Justiça e sim vingança quando se violam direitos fundamentais, quando se impõe sofrimento, para obrigar confissões.

Escolhemos, no Brasil, coletivamente, ver os pecados daqueles de quem discordamos e fechar os olhos para aqueles do lado que defendemos. É uma escolha profundamente antidemocrática que se tornou aguda nos últimos dez anos.

O pior pecado da Lava Jato não foi este. Foi, num processo que evidentemente expunha a corrupção de todo o sistema político brasileiro, construir uma campanha que pôs no centro um único partido político. A politização que o juiz e o principal procurador impuseram à operação se tornou ainda mais clara quando, apesar de todas as evidências de corrupção da família Bolsonaro, eles permaneceram fidelíssimos ao seu lado.

Isto torna evidente o que antes apenas dava para intuir: o problema nunca foi corrupção. Foi ideologia. A Justiça foi posta a serviço de um resultado político que privilegiava um lado contra o outro. Mas isto não afetou apenas o PT. Afetou, ainda mais, o PSDB. Destruiu a polarização democrática que o país um dia teve.

A relação entre corrupção e política, no Brasil, é gravíssima. É grave porque ela está inscrita na regra do jogo. O sistema que elege deputados e a maneira como distribuímos recursos na República se misturam. O resultado é o incentivo para a escolha de parlamentares que atendam à demanda de certas regiões. Promove, portanto, um tipo muito particular de aliança entre prefeitos e deputados federais, que são transformados em despachantes nos ministérios. O que define suas reeleições é a capacidade de trazer obras e bens para as localidades de onde vêm. O jeito que elegemos deputados cria a relação de dependência pelo Executivo federal. Leva à troca de verbas por votos na Câmara. A partir do momento que este elo se constrói, porque campanhas eleitorais se tornaram caras, o poder de distribuir obras logo atrai a tentação de buscar propina para financiar eleição. As regras contaminam o jogo.

Combater corrupção sem mudar as regras eleitorais põe em risco a ruptura de todo o sistema político. Foi o que aconteceu no Brasil após a Lava Jato. Não é uma história bonita de contar pois não há vilões ou mocinhos claros.

Há quem prefira ver o PT como o herói do povo, injustiçado, caçado por um juiz protofascista. Há os que gostariam de ver os lavajatistas na posição de heróis. Eles que tentaram combater a corrupção mas terminaram derrotados pelo sistema. Não faltam defensores da operação que tentem fingir não ver que seus protagonistas são inseparáveis do bolsonarismo. E há, claro, ainda quem veja os Bolsonaro como heróis desta história.

Só que a história como ela é termina bem mais complicada, uma realidade dura demais de encarar. A de que, ao escolhermos um sistema presidencialista com partidos demais, negamos ao presidente a possibilidade de construir uma base que lhe permita governar. O quebra-galho para resolver o problema terminou sendo o presidencialismo de coalizão que só consegue se organizar porque há corrupção no meio. A corrupção que é inerente à existência dos deputados-despachantes. A cobra morde o rabo, a relação se fecha. Se impõe.

A Câmara está tão forte que pretende forçar o Planalto a lhe entregar de volta controle sobre o orçamento. O mesmo tipo de controle que teve durante o governo Bolsonaro. Se acontecer, será a ruptura final. O governo Lula não terá condições de governar. Nenhum outro governante teria. O único poder que o Executivo tem para negociar com o Congresso é o controle sobre estas verbas.

No governo, Jair Bolsonaro não destruiu apenas a já delicada relação Executivo-Legislativo. Ao sequestrar a Câmara com o Orçamento Secreto e a Procuradoria-Geral da República com a escolha de um prevaricador, pôs o Supremo Tribunal Federal na posição de único capaz de manter a democracia em pé.

O Supremo fez isso usando os truques abertos pela Lava Jato. Abandonando jurisprudência, forçando novas leituras, interpretando as leis de acordo com o resultado desejado. Agora, Deltan Dallagnol perdeu seu mandato de deputado federal. Tudo indica que Jair Bolsonaro seguirá o mesmo caminho. As prisões improvisadas já estão acontecendo. Claro, por crimes que de fato aconteceram. Ainda mais graves que o Petrolão: o planejamento e a tentativa desastrada de golpe de Estado.

É irônico que Deltan seja vítima, mas é difícil sentir pena. Eles quebraram a democracia imperfeita que tínhamos. Talvez tenham quebrado de vez.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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