Lula e o lugar do Brasil no mundo

Para o cientista político Guilherme Casarões, o presidente busca recolocar o país no mapa-múndi transitando entre o desejo de uma multipolaridade e a percepção da assimetria nas relações com China e EUA

Reconstruir a reputação do Brasil na política externa depois de um governo que deliberadamente tornou o país um pária internacional é um dos propósitos de Luiz Inácio Lula da Silva em seu terceiro mandato. Ele nunca escondeu isso. E, num cenário de oposição histriônica e enormes dificuldades na política interna, é no campo das relações internacionais que Lula pode ousar, exercitar alguma liberdade de ação. O cientista político Guilherme Casarões, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP), avalia que, nesses primeiros cinco meses de governo, o presidente tem mais acertado do que errado. Feitos alguns ajustes de por quais lentes enxergar a nova correlação de forças entre as potências China e Estados Unidos, e levando-se em conta que Lula é um homem da velha esquerda latino-americana, o Brasil tem retomado suas posições clássicas na diplomacia e reconquistado relevância no debate.

Nesta conversa, Casarões relembra como o país abriu mão de buscar protagonismo global desde o governo Dilma Rousseff, que expressava publicamente não ver na política internacional uma prioridade — especialmente, diante de graves crises internas em sequência. Ele admite ter visto com preocupação, desde a campanha petista para voltar ao Planalto, a retomada do discurso de Celso Amorim da política externa “ativa e altiva”, por temer que ela viesse sem qualquer atualização depois desses 20 anos em que o mundo se transformou bastante. Mas acredita que, aos poucos, essa reciclagem vem, sim, acontecendo e Lula está compreendendo que a multipolaridade, embora relevante do ponto de vista de posicionamento e retórico, é inalcançável no cenário atual. Confira os principais trechos da entrevista.

Como você avalia essa tentativa do presidente Lula de recolocar o Brasil no mundo até aqui?
Ele está fazendo um movimento, mais do que qualquer outra coisa, de reconstrução da credibilidade e do lugar que o Brasil ocupava no mundo pré-Bolsonaro. Claro que o movimento é muito mais longo, vem desde o governo Dilma, que foi corresponsável nesse processo. Ela não gostava de política externa, dizia isso até com uma certa tranquilidade, nunca foi uma entusiasta das grandes iniciativas internacionais do Brasil e o argumento dela basicamente era de que o Brasil tinha muitos problemas internos e não tinha razão para focar nas grandes questões internacionais. Ela pessoalmente não gostava muito de viajar, e isso acaba atrapalhando o trabalho de um presidente numa era em que a globalização é impõe que o líder participe de maneira muito ativa dos processos internacionais. Mas o governo Bolsonaro representou uma quebra importante, não só em termos da intensidade da participação brasileira no mundo, como também dos princípios orientadores da política externa do Brasil. O problema do Bolsonaro, além de não valorizar a política externa do jeito que ela deveria ser valorizada, foi romper literalmente com todos os princípios da inserção internacional do Brasil. Princípios que estão na própria Constituição brasileira. Então, o primeiro trabalho de Lula, que até antecede a reinserção propriamente dita do Brasil, foi de aparar as arestas de um Brasil que tinha sido deixado pelo presidente Bolsonaro como um pária.

E ele tem conseguido?
Lula está há um mês praticamente, desses cinco meses de mandato, viajando o mundo. Se pegarmos o arco longo dessa história da Nova República, existem dois presidentes que tiveram um investimento realmente sistemático na chamada diplomacia presidencial: Fernando Henrique Cardoso, que já tinha transitado pelos círculos acadêmicos internacionais e era amigo pessoal de muitos dos líderes da época, como Tony Blair, Bill Clinton e Miterrand; e Lula, que que talvez seja o presidente que melhor entendeu isso. Ele foi a figura que projetou o Brasil no mundo a partir da sua imagem pessoal. De certa forma, Lula vai descolando-se, ainda que não rompa com nenhuma linha, daquela que seria a imagem tradicional do Itamaraty como centro de gravidade da política externa. Lula desloca esse centro de gravidade para a figura dele, que carismática como é dentro e fora do Brasil, vai dar ao país uma certa envergadura lá fora que a gente não tinha conseguido até então. Lula tem esse primeiro trabalho de reconstrução daquele que foi um movimento de destruição — o governo Bolsonaro foi muito eloquente no sentido de que ele precisava destruir pra construir. O segundo trabalho é reposicionar o Brasil no mundo, só que a partir de uma perspectiva muito diferente daquela que a gente tinha há 20 anos. No início do governo Lula, me incomodaram muito certas referências que foram feitas, tanto pelo próprio Lula quanto pelo Celso Amorim, que agora é assessor pessoal internacional do presidente, do regresso aquela chamada política externa “ativa e altiva” do começo dos anos 2000.

Por que o incômodo?
Não tenho problema nenhum com uma política externa ativa e altiva, ela é importante. O que me pareceu muito problemático naquele início de governo e mesmo durante a eleição foi a ideia de que basta a força de vontade de um presidente ou de um governo para que tudo volte ao lugar onde deveria estar. Só que o mundo mudou profundamente nesses últimos 20 anos. As condições em que o Brasil se coloca no mundo são absolutamente diferentes e essa me parece uma constatação que o governo Lula, até sabiamente, esconde embaixo do tapete — a de que esse mundo em que o Brasil navega hoje é um mundo mais difícil. Vinte anos atrás a gente falava muito na palavra multipolaridade: a ideia de que o mundo estaria se abrindo para várias potências de vários lugares do mundo, emergindo mais ou menos ao mesmo tempo. Daí a ideia dos Brics. Hoje, é muito difícil imaginar o mundo perfeitamente multipolar. Ao contrário, a tendência atual é da constituição de uma bipolaridade entre China e Estados Unidos.

Mas no G7 o presidente Lula insistiu na ideia de multipolaridade.
É natural, esse tem que ser o discurso do Brasil, tem de ser a posição brasileira não aceitar que o mundo esteja congelado na mão de duas superpotências, sem espaço para que um país como o Brasil possa emergir. A questão é que 20 anos atrás a gente estava trabalhando com a China a partir do mesmo status, se colocando como potência emergente. Hoje temos que aceitar que a China está em outro patamar de poder, de inserção econômica. Isso é meio óbvio, olhando-se para o mundo. Mas tem também de fazer parte da linguagem, da narrativa da política externa brasileira. O uso da expressão “multipolaridade” é muito mais uma declaração de intenções, que está correta porque até fala um pouco sobre essa visão futura do Brasil, mas o desejo da multipolaridade não pode esconder a necessidade de se constatar que hoje o mundo está, de alguma maneira, polarizado e que os espaços de atuação do Brasil são muito mais estreitos do que há duas décadas.

Faz sentido, então, Lula retoricamente persistir na ideia de multipolaridade, mas é importante que internamente ele tenha a noção de que ela não vai se materializar. É isso?
Sim, é isso. Há uma uma questão muito concreta a ser enfrentada, que é a crescente dependência econômica do Brasil com relação a China. Quando a gente trata os Estados Unidos como superpotência, isso embute uma série de diagnósticos, de soluções e de um entendimento do nosso lugar, digamos, assimétrico na relação. O Brasil não lida com os EUA de igual para igual — lida com a Argentina, com a Turquia... Mas com os Estados Unidos temos uma relação assumidamente assimétrica, seria um equívoco imaginar que não. A questão sobre a China é justamente essa. Hoje, temos que tratar um relacionamento com a China como assimétrico. Isso não é demérito brasileiro. Não pode ser visto como uma aceitação de subalternidade brasileira. Muito pelo contrário. A constatação dessa assimetria é fundamental para que a gente possa estabelecer políticas corretas diante da China. Se o Brasil ancora seu crescimento econômico, seu setor mais dinâmico, que é o agronegócio, isso vai dificultar qualquer projeto brasileiro, por exemplo, na reindustrialização do país. Por duas razões. Primeiro, porque uma economia dependente do agronegócio tem muito pouco interesse em dar o passo industrial. O Brasil se desindustrializou ao longo dos últimos 20, 30 anos. E isso acabou colocando o agronegócio não só como o motor do crescimento econômico brasileiro, mas também no comércio internacional. Segundo: para o Brasil se reindustrializar, precisa de mercado consumidor interno, mas também nos vizinhos, nos países africanos.

Ao contrário de colegas da esquerda e da direita, que tendem a ver a China como uma espécie de redenção para a economia brasileira, vejo a China como um país com quem temos que nos relacionar de maneira muito calculada.

A dissonância entre a altivez a ser projetada por Lula em sua retórica e a realidade pode estar por trás dessa ambição de mediar a paz entre Ucrânia e Rússia?
Olha, a Guerra da Ucrânia caiu no colo do Lula quando ele assumiu a presidência. Os primeiros prognósticos sobre a guerra eram de que ela terminaria em algum momento de 2022. Mesmo quando se candidata à presidência, Lula não esperava que a guerra fosse se estender por tanto tempo. E, para Lula, ela pode ser uma benção ou uma maldição. Num dos primeiros textos que escrevi a respeito do que seria a política externa de Lula, eu dizia que ele ia investir muito na construção de um legado diplomático, porque, diante de um país extremamente dividido, em que ele dificilmente vai bater o mesmo nível de popularidade que tinha ao sair do seu segundo mandato, o único caminho de deixar realmente uma marca para os livros de história seria pela diplomacia. Claro que há outras políticas importantes, tanto na área ambiental quanto na área de desenvolvimento, de redistribuição de renda, mas a gente sabe, pelo menos imagina com base no que já aconteceu nesses últimos seis meses, que ele vai enfrentar uma oposição histriônica e difícil de manejar, brigas internas do próprio PT, etc. Então, a política externa acaba sendo uma das áreas em que o presidente tem mais liberdade para fazer o que quer e para tentar inovar, ser ousado, fazer alguma coisa diferente. Quando escrevi sobre isso lá atrás, achava que esse legado diplomático se daria em duas áreas: a liderança brasileira no tema do clima e no tema da Venezuela.

De que maneira?
Minha premissa analítica é que não há como reconstruir o processo de integração regional do Brasil, pensando em Mercosul e Unasul, toda essa estrutura política e econômica de integração regional, sem resolver a profunda crise política, humanitária e econômica que a Venezuela vem vivendo já uns seis anos. Achei que Lula fosse assumir as rédeas desse processo de reconciliação nacional na Venezuela, que é urgente e necessário. Lula tem um ótimo trânsito com Maduro e alguma entrada com a oposição venezuelana. Há aí uma oportunidade que o Brasil poderia explorar muito bem. Mas quando Lula assume a presidência cai no colo o tema da Ucrânia. Esse tema já tinha sido sondado numa entrevista que Lula deu à revista Time, em agosto do ano passado, em que ele tinha feito uma comparação que não foi bem recebida. Essa comparação tem sentido dentro da cabeça do petista histórico, que tem a ideia da Rússia como bastião contra o imperialismo americano, vendo a principal responsabilidade pela guerra não da Rússia, mas sim da expansão da Otan. Esse não é um diagnóstico só do PT. Pelo contrário. Tem muita gente que defende essa leitura, inclusive acadêmicos americanos. Lula, movido por essas ideias, foi lá e comparou, como fez recentemente também, dizendo que Putin e Zelenski têm a mesma responsabilidade. Em janeiro, naquela visita do Olaf Scholz, chanceler alemão, ao Brasil, Lula usou a expressão “quando um não quer, dois não brigam”. Essa maneira como o Lula vem se colocando se baseia numa espécie de improviso com base na bagagem histórica que ele tem de ver o mundo a partir de uma lente anti-imperialista, colocando os Estados Unidos como pivô dessa história. Lembrando que o próprio Lula e o Celso Amorim, seu assessor direto, atribuem ao imperialismo americano a prisão de Lula em 2018, a condução da operação Lava Jato. Existe ali uma visão, que não é totalmente incorreta, ainda que às vezes meio conspiratória, de que os Estados Unidos interferem na política interna de certos países de acordo com seus interesses estratégicos.

Mas sustentar essa tese tem um custo nesse esforço de reposicionamento do país, não?
Eu acho um equívoco, porque mostra que o Brasil tem uma dificuldade até de conformar uma narrativa que lhe permita ser mediador. A mediação não é só fruto de uma equidistância. Ela tem de ser construída a partir de uma narrativa que faça sentido para ambos os lados. O Brasil inquestionavelmente é um dos países do mundo que melhor trânsito tem entre os atores envolvidos, seja Estados Unidos e Europa, seja a própria Ucrânia, seja a Rússia. As condições estavam mais ou menos colocadas e faltava Lula encontrar uma narrativa que coubesse nesse desejo brasileiro de mediação. Agora, uma coisa que ficou muito mal esclarecida é que quando Lula fala pela primeira vez da ideia do “clube da paz”, com o Scholz, aquilo foi mais uma resposta a uma demanda que a Alemanha tinha feito para que o Brasil mandasse armas para o conflito da Ucrânia. E o Brasil tem uma posição histórica, inclusive de outros presidentes, de não mandar arma para conflito dos outros. O Brasil tem uma defesa do multilateralismo, da solução pacífica negociada. Aquela proposta do clube da paz veio meio que de improviso ali. Não há evidências de que Lula já estivesse pensando nisso há algum tempo, se ele estava preocupado com essa questão. Eu acho que o próprio Lula preferia, com razão, não se envolver tanto. O problema é que, quando o chanceler alemão vem ao Brasil e coloca como tema principal da sua pauta a contribuição brasileira com armas e munições à Ucrânia, isso acaba colocando o Brasil numa situação difícil. Veio ideia da Cúpula da Paz e onde está a incompreensão sobre essa proposta?

Em nenhum momento, Lula disse que queria resolver o assunto da Ucrânia sozinho. Essa foi uma interpretação que a imprensa muitas vezes deu até para ridicularizar a iniciativa, tachar Lula de megalomaníaco.

De qualquer forma, ele passou a se apresentar sempre nesse papel de mediador.
Lula de fato tem um histórico, na sua primeira passagem pela presidência, de iniciativas muito ousadas, mas que não deram em nada. Ele sugeriu em Israel, em março de 2010, que poderia resolver o conflito entre Israel e Palestina. A fala dele a empresários israelenses foi de que, se ele havia conseguido resolver o problema das greves gerais de 1977, mataria no peito o conflito com a Palestina. É claro que isso é bobagem, é jeito de falar, mas não deu em nada absolutamente. Agora, o Brasil fez uma coisa importante naquele contexto, que foi reconhecer a soberania da Palestina como um país mesmo. E teve o acordo com o Irã, Brasil e Turquia, de troca de combustíveis nucleares. Naquele momento, o Brasil só não conseguiu levar adiante o acordo porque o próprio governo brasileiro alega ter sido sabotado pelos Estados Unidos. Está no livro de memórias do Celso Amorim. Ele conta que o Obama havia pedido para o Brasil fazer esse meio de campo, construir essa ponte com os iranianos, e quem sabotou e redirecionou toda a agenda do Conselho de Segurança da ONU para novas sanções contra o Irã, a despeito do que o Brasil e a Turquia tinham negociado, foi a Hillary Clinton. Aqui, volta a questão do imperialismo americano na cabeça dos atuais dirigentes do país. Agora, os movimentos brasileiros têm sido corretos.

Em que sentido?
Lula foi primeiro foi a Washington, depois a China — ou seja, há essa constatação de que há duas potências do mundo. Depois, ele tem uma passagem por Portugal, Espanha e Inglaterra, em que foi cobrado sobre a Ucrânia e adaptou, modulou o discurso. Ele já tirou a responsabilidade igualada entre Rússia e Ucrânia, aprendeu com as críticas. Agora, o G7 veio num momento curioso, porque Zelenski apareceu na reunião sem ser convidado, de surpresa. O grande temor da diplomacia brasileira, até porque quer ser parte da mediação, era que a reunião do G7 se tornasse um fórum de condenação unilateral da Rússia. A diplomacia brasileira queria puxar a discussão para os assuntos substantivos, como segurança alimentar, desenvolvimento e desigualdade, reforma do sistema financeiro internacional. Com razão, o governo brasileiro queria dar uma outra ênfase à reunião do G7. Mas a ida do Zelenski meio que deu o xeque-mate nas aspirações da diplomacia brasileira, porque ali ficou claro que se tratava de uma reunião para encaminhar, ainda que esse seja um fórum econômico, o problema da Ucrânia, para criar uma divisão ainda mais profunda entre os interesses do Ocidente e os interesses da Rússia. Mesmo que Lula tivesse já adaptado a sua narrativa para tentar dar construir a questão do conflito ucraniano de uma maneira mais palatável pros dois lados, essa ida ao G7 acabou parecendo —não diria no longo prazo —uma derrota do Lula.

Além da questão do desencontro entre Zelenski e Lula numa eventual reunião, foi muito criticada a postura de Lula não se levantar para cumprimentar o colega.
As análises de imprensa, baseadas sobretudo num vídeo ou num momento específico, contam só um pedaço da história. Uma situação em que está todo mundo recebendo um líder estrangeiro ali comporta uma eventual gafe, algum mal entendido, algum ato que parece nas câmeras que foi de um jeito, mas na realidade foi de outro. Esse símbolo diz muito pouco sobre o estado das relações entre Brasil e Ucrânia. Há um equívoco da imprensa brasileira de super valorizar a pauta ucraniana. Mesmo diante de problemas internos no Brasil, que eram muito maiores, ou mesmo pautas externas que eram mais interessantes para discussão, nossa imprensa comprou a pauta de uma imprensa estrangeira que queria falar de Ucrânia, e acabou centrando a discussão nesse símbolos e fazendo análises meio apocalípticas sobre a reunião do G7, como se o Lula tivesse sofrido ali uma derrota maiúscula. O jogo ainda é longo, o conflito não vai se resolver amanhã, o Brasil ainda tem um papel importante. Dez anos atrás, fiz um estudo analisando os principais veículos de imprensa — e o cenário mudou desde então —, numa contabilidade básica dos artigos de opinião e editoriais do Globo, da Folha e do Estado sobre a política externa do Fernando Henrique e do Lula. Sabidamente, e essa é uma questão estrutural histórica, há uma má vontade, uma indisposição da opinião da Imprensa tradicional sobre os atos da política externa do presidente Lula. A todo momento aproveitam uma ou outra deixa do Lula pra tratar todas essas iniciativas como se elas fossem uma piada. No atual governo, Lula errou muito na formatação do discurso, fez comparações indevidas. Mas tem uma questão que é: realmente, o foco da política externa deveria ser outro. A Ucrânia é um campo de gravidade que vai puxando os outros assuntos, mas não acho que Lula tenha cometido erros tão crassos ou imperdoáveis como muitas vezes a narrativa meio polarizada de certo setores da imprensa deixam a entender.

Como esse filtro do anti-imperialismo americano pelo qual Lula e Celso Amorim enxergam o mundo e a dificuldade de parte da esquerda brasileira de reconhecer o imperialismo russo e o fato de que Putin é um líder autocrata de direita deixam o Brasil na luta contra a extrema direita por aqui?
Eu daria até um passo além. Putin é um dos maiores financiadores e patrocinadores políticos da extrema direita global. Existe aí uma série de acusações de interferência russa em processos eleitorais, interferência russa no Brexit, na eleição de Trump. Isso de alguma maneira é revelador do tipo de visão meio romântica que muitas vezes a esquerda brasileira tem a respeito da Rússia, que já não é mais a Rússia revolucionária ou até mesmo a Rússia Soviética. A gente está falando de um bicho político diferente. Nesse sentido, existe uma diferença entre uma velha esquerda, que nasce nos anos 1970, é o caso do PT, que tem uma visão muito focada no imperialismo americano e que vê a Rússia a partir daquela ótica da Guerra Fria; e uma esquerda mais moderna, progressista e identitária, que já tem muitas ressalvas com relação ao que a Rússia hoje representa. Na América Latina, vemos essas duas posturas básicas sobre a Rússia: uma defendida por Lula e por López Obrador, no México, e o próprio Maduro, que é de uma certa romantização de uma Rússia como bastião da luta imperialista contra os Estados Unidos; outra, representada por Gabriel Boric, no Chile, e por Gustavo Petro, na Colômbia, que tende a ser mais crítica a Rússia, justamente por entender que Putin é um autocrata e que se trata de um violador serial de direitos humanos. Claro que Chile nem Colômbia, parceiros históricos dos Estados Unidos independentemente da inclinação do Presidente da República, têm uma relação muito mais fraca e distante com a Rússia. Então, eles têm muito mais liberdade para criticar. O Brasil tem menos, levando em conta, entre outras coisas, que 20% dos nossos fertilizantes vem da Rússia a parceria histórica no campo de tecnologia no campo de defesa. Agora, temos de ter um certo ceticismo e não ver o jogo geopolítico como uma luta do bem contra o mal.

Como assim?
Um artigo do Celso Amorim de 2009 sobre direitos humanos diz que ao Brasil cabe zelar pelos seus próprios direitos humanos e pela sua democracia. O Brasil não está na posição, até porque se trata de um país com problemas muito graves, de julgar e condenar unilateralmente o que se passa nos outros países do mundo. O Brasil não tem vocação de promotor da democracia. É muito mais fácil, diz Amorim, você trabalhar e eventualmente melhorar a situação de direitos humanos no país pelo diálogo do que pelo isolamento. Essa posição nos qualifica bem para estabelecer um diálogo com a Rússia e ao mesmo tempo fazer a defesa da nossa democracia nos parâmetros que a gente queira. Inclusive, o Brasil é peça muito fundamental no combate à extrema direita global. A extrema direita brasileira é muito resiliente, com uma vocação antidemocrática. Isso qualifica o Brasil quase de pronto a ser um interlocutor importante nessa discussão. E temos que explorar essa oportunidade.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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