Edição de Sábado: Marina na cova dos leões

Já passava de duas horas e meia de audiência pública, quando o deputado federal Zé Trovão (PL-SC) tomou a palavra. O chapéu preto com abas largas dava mais imponência ao seu porte avantajado diante da esguia ministra Marina Silva, sentada à frente. Na Comissão de Meio Ambiente da Câmara, o bolsonarista — que chegou a ser preso por incitação de atos antidemocráticos contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e, quando eleito e até duas semanas atrás, ainda usava tornozeleira eletrônica — iniciou seu discurso se dizendo muito preocupado com a Amazônia, com os povos ribeirinhos e “com a grande tragédia da miséria”. Dizia-se indignado porque o Ibama barrou o projeto da Petrobras de prospectar petróleo na foz do Rio Amazonas. “A senhora sabe que estão tirando o nosso petróleo de canudinho? A senhora sabe disso, né?”, provocava o deputado, balançando a cabeça com o sorriso no canto do lábio e se referindo a várias prospecções hoje realizadas na região. “São mais de 11 trilhões de reais”, contabilizava o possível lucro da Petrobras com a exploração.

Trovão passou a acusar a ministra de não pensar na população da região que precisa de desenvolvimento e, para isso, precisa do dinheiro do petróleo. “Tem coisas, senhora ministra, que só podem ser compradas com dinheiro”, ensinava. “Eu não estou aqui para atacar a senhora, pelo amor de Deus, nem faz parte do meu feitio, mas eu estou pedindo para a senhora um pouco de consciência”, apelou. O deputado seguiu acusando Marina de dar continuidade à “escravidão” dos povos da Amazônia que, segundo ele, estão sob o “jugo das ONGs”.

A ministra assistiu a toda a performance com os olhos fixos no parlamentar paulista eleito por Santa Catarina. Não movia um músculo da face serena. Estava ali, fitando os leões. Como o profeta Daniel, condenado na Babilônia por não deixar de adorar o Deus de Israel, conforme mandamento do então rei Dario, Marina pagava naquela arena a pena por se manter fiel ao que sempre pregou: a defesa do Meio Ambiente. Intransigente defesa.

Na passagem bíblica, o rei Dario, afeito a Daniel, escolheu o pupilo para chefiar 120 governadores. Insatisfeitos com a ascendência do profeta, mas sem nada concreto para desaboná-lo, os burocratas e incompetentes convenceram Dario a decretar uma lei proibindo orações ao Deus de Israel. Sem suspeitar, o rei assim o fez. Ao receber a denúncia de que Daniel descumpria a nova regra, foi obrigado a puni-lo, ainda que a contragosto. Daniel foi levado à cova dos leões; o rei se quedou insone. Na manhã seguinte, sob a proteção divina, Daniel estava a salvo. E o rei Dario, arrependido, jogou os governadores na cova. Eis a alegoria de uma política símbolo, por quem o presidente tem grande admiração, e a postura predatória dos agentes do atraso — à esquerda e à direita, passando pelo infame Centrão. E o teste da disposição de Lula de salvar Marina do sacrifício.

Quando a ministra se moveu para responder aos argumentos apresentados pelo bolsonarista, ele já não estava mais no plenário. Antes, o parlamentar chegou a reclamar das falas de Marina. “Uma audiência para ouvir palestra. É muita palestra!”, resmungou. Ficou insuportável para ele, principalmente pela pouca chance de fazer a lacração habitual da sua turma na Câmara. Mesmo assim, Marina seguiu sugerindo um exercício de futuro. Era muito para boa parte da plateia, porque a ministra fazia um convite à evolução, a uma mudança de paradigma: “A gente entra em declínio pela repetição. A repetição é a causa do declínio das civilizações”, dizia Marina, citando o passado da Roma Antiga.

Na viagem entre o passado e o futuro, a ministra insistia na necessidade de se iniciar a transição energética — agora. “Tenho insistido no debate que a Petrobras deve, imediatamente, deixar apenas de ser uma empresa de exploração de petróleo para ser uma empresa de produção de energia. Nós (Brasil) vamos alcançar o pico, depois vamos entrar em declínio, e vai chegar o momento em que esse recurso vai desaparecer. Portanto, é fundamental estarmos onde a bola vai estar. Quem tem condições de fazer isso? Nós”, ensinava. “O homem saiu da idade da pedra não foi por falta de pedra, foi porque descobriu coisas novas”, instigava Marina.

Trovão ainda tratou de apontar as divergências com Marina dentro do próprio governo e de seu partido, a Rede Sustentabilidade, e citou a briga com o senador Randolfe Rodrigues, que motivou seu anúncio de saída do partido e até a “fritura” dos pares da ministra. O surreal era que, nesse ponto, Trovão tinha razão. No governo de que Marina faz parte, estavam os que a acusavam da mesma intransigência na questão do petróleo. O presidente da Petrobras, Jean Paul Prates; o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira; o líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues; e até a “cozinha” do Planalto, com os ministros da Casa Civil, Rui Costa, e o chefe da articulação política, Alexandre Padilha. Todos a favor da Petrobras.

Uma quarta de trevas

Naquela quarta, Marina — e o meio ambiente — amargaram derrotas lancinantes no Congresso. O governo concordou com esvaziamento de sua pasta para atender exigências do centrão e suas intersecções com a bancada ruralista. O relatório do emedebista Isnaldo Bulhões (AL) sobre a medida provisória que reestrutura a Esplanada de Lula foi aprovado na comissão especial para tirar do Ministério do Meio Ambiente o Cadastro Ambiental Rural e passar para o Ministério da Gestão. Um dia antes, Padilha havia elogiado o relatório após uma reunião com Lula. Esse cadastro obriga os fazendeiros a cumprirem o Código Florestal.

O relator ainda voltou com a Agência Nacional das Águas (ANA) para o Integração e Desenvolvimento Regional, hoje comandado pelo ministro Waldez Góes (PDT-AP), ex-governador do Amapá e indicado pelo senador David Alcolumbre (UB-AP). Ou seja, uma entrega poderosa para o centrão. Vale lembrar que tanto Góes quanto Alcolumbre querem a perfuração do poço nas proximidades do Amapá. E, claro, os royalties que venham a jorrar dele.

Some-se a todas essas mudanças o esvaziamento do Ministério dos Povos Indígenas, gerido pela ministra Sônia Guajajara. O projeto aprovado na comissão determinou a competência pela homologação dos territórios indígenas para o Ministério da Justiça. Na Câmara, Marina reagiu: “É um ataque também aos ministérios das mulheres, mulheres de origem humilde, mulheres de origem indígena, mulheres pretas. Tem um viés também de gênero nesse ataque que está sendo feito à legislação ambiental brasileira.” Todas as dimensões possíveis da ignorância estavam sendo contempladas naquela quarta.

Ainda naquela noite, a Câmara passou a boiada sobre a Mata Atlântica aprovando um projeto que enfraquece as regras de proteção da floresta e facilita o desmatamento do bioma; e a urgência do projeto do Marco Temporal, que restringe a demarcação das terras indígenas, considerando somente as áreas já tradicionalmente ocupadas por esses povos em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição federal. O projeto, na prática, desconsidera os processos de expulsão dos indígenas de seus territórios que ocorreram antes de 1988.

No dia anterior, Marina havia conseguido uma vitória. Na terça, ela e o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, haviam sido chamados ao Planalto pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa. Era uma tentativa de se resolver a pendenga com a Petrobras e com o Ministério de Minas e Energia sobre a negativa do órgão referente à prospecção de petróleo na Margem Equatorial. Na reunião, a Petrobras chegou a apresentar novas ações para tentar sanar o problema. Disse que faria uma base de fauna em Oiapoque, no Amapá, para atender animais em caso de acidente, aumentaria a frota de lanchas, entre outros pontos de infraestrutura para atendimento em caso de vazamentos. O presidente do Ibama, sempre ao lado de Marina, até questionou: "Por que vocês não apresentaram isso antes?”. Durante a reunião na comissão da Câmara, Marina resumiu o papo no Planalto: “Foi a discussão de um governo republicano, que respeita a lei. É o Ibama que vai julgar.” Mas a confiança da Petrobras na reversão do parecer é tanta que Prates mantém o equipamento de perfuração a postos, ao custo de R$ 3 milhões por dia.

A noite de insônia

O temor de que Marina deixasse o governo caso fosse contrariada pairava sobre o Planalto no início da semana. Ao mesmo tempo, o governo precisava atender o Centrão para ter suas medidas votadas na Câmara e devia respostas à Petrobras e ao ministro Silveira. Mesmo assim, Marina saiu da reunião de terça cantando vitória: a de que todo projeto de prospecção terá que contar com “avaliação ambiental estratégica” feita pelo Ibama.

Mesmo sendo alvo de críticas dos colegas de Esplanada, foi a partir dessa reunião com Costa que Marina sentiu que poderia sair em defesa do governo e denunciar a pressão do Congresso — notadamente da turma de Arthur Lira, o presidente da Câmara e aspirante a primeiro-ministro. Se até aqui ele vinha apresentando a fatura monetária de seu apoio, na semana que passou, exibiu a política. O Centrão que o sustenta e é liderado por ele tem um pé no reacionarismo, outro no fisiologismo e os dois olhos no retrocesso. Na manutenção de um status quo que privilegia o agronegócio antiquado e predatório.

Fato é que a articulação do governo concordou com todas as modificações na medida provisória inseridas pelo relator Isnaldo Bulhões — mesmo havendo algum consenso de que elas são, no plano maior, inconstitucionais. Durante as negociações do substitutivo, o Planalto considerava o texto um “mal menor”, visto que o “esvaziamento” poderia ser sanado, mais adiante, com regulamentações que condicionassem qualquer decisão a um aval do Ministério do Meio Ambiente. Isso foi pensado no contexto da transferência do Cadastro Ambiental Rural, por exemplo. O governo avaliava que ele poderia ser transferido para o Ministério de Gestão, mas que conseguiria estabelecer como regra que qualquer decisão final dependesse de um aval técnico do MMA.

Era melhor esse texto, na opinião dos palacianos, que ficar amarrado ao Ministério da Agricultura, exclusivamente, ideia que chegou a ser discutida. Além disso, o governo trabalhava com a informação de que a bancada do agronegócio tem cerca de 370 deputados, o suficiente para aprovar até emendas constitucionais. Rumores de que havia deputados confabulando para deixar a medida perder a validade em 1º de julho também chegaram ao Planalto.

Antes, Marina procurava não falar abertamente da resistência que enfrentaria no que possivelmente é o Congresso mais conservador da Nova República. Na terça mesmo, Marina se dispôs a conversar com a imprensa e, ao longo da semana, mesmo com as derrotas, passou a falar do governo como refém das forças mais conservadoras da Câmara. Na quinta, ao dar posse ao presidente do Instituto Chico Mendes (ICMBio), Mauro Oliveira Pires, ainda sob o forte impacto da surra da véspera, Marina prometeu persistir. “Eu sempre digo, quando me perguntam se sou otimista ou pessimista, que nem uma coisa nem outra. Mas tão somente persistente. E agora, nós vamos persistir”. Ela justificou sua postura lembrando a lenda sobre o violinista italiano Niccolò Paganini. “Paganini entra para fazer um concerto. Começa a tocar seu violino. A música é maravilhosa. A plateia vai ao delírio. Eis que, de repente, uma corda se quebra. Há aquele incômodo todo e a orquestra para. Mas ele não interrompe. E continua tocando, tirando um som maravilhoso e encantando a plateia”, contou. “E a plateia agradece esse maravilhoso show de quem conseguiu tocar, mesmo com uma corda só.”

Ao contrário do que ocorreu no segundo mandato de Lula, quando ela deixou o cargo devido a divergências sobre a estratégia do governo para contenção do desmatamento, Marina nutriu nos últimos meses, após a reconciliação com o presidente durante a campanha, a ideia de que algo havia mudado na cabeça dele. Ela acredita que o Lula de 2023 enxerga a questão da sustentabilidade no mesmo patamar do combate à fome. E se manteve crédula ao longo da semana de teste. “Existem contradições? Existem. Mas estamos aqui para manejar as contradições”, minimizou.

Durante a reunião da manhã de sexta, Marina disse que a semana foi dura, mas que estava disposta a defender o governo e não temia o embate político. Em marinês puro, disse que “o que aconteceu não foi uma picada de carapanã, mas uma ferroada de arraia”. Carapanã é como o povo amazonense se refere a mosquitos. Ou seja, Marina deixou clara a profundidade da ferida antes de reafirmar que estava decidida a resistir.

Lula prometeu vetar o projeto que enfraquece as regras contra o desmatamento na Mata Atlântica. Na sexta-feira, o presidente chamou todos os envolvidos na crise para uma conversa. Foram mais de quatro horas de reunião. Marina, desta vez, não desceu para falar com jornalistas. Sônia Guajajara também não, só fez um tuíte. “Elas tinham outras agendas”, justificou Padilha.

Coube aos homens da articulação do governo a tarefa de passar os informes da reunião. Rui Costa iniciou sua fala repetindo o mantra que Marina colocou ao longo da semana de que o Congresso tentava impor ao governo de Lula a gestão ambiental do governo de Jair Bolsonaro, que perdeu as eleições. “A gente precisa reafirmar a prerrogativa de quem ganhou a eleição”, enfatizou Costa. Padilha, por sua vez, disse que a sustentabilidade estava “no coração do presidente Lula” e se preocupou em passar a ideia de unidade entre os ministros. “Todos os ministros e ministras saíram com a convicção de que, mesmo com mudanças que foram feitas dentro da comissão mista, que são pontos importantes, relevantes, que nós vamos continuar conversando com o Congresso Nacional”. Rui Costa também falou em recuperar pontos do texto original da MP nos passos seguintes da tramitação.

O recado veio em linha com a manifestação do presidente Lula sobre o assunto. Minimizando a enormidade da crise, num evento em celebração ao Dia da Indústria na Fiesp, Lula disse que “agora começou o jogo. Nós vamos jogar, vamos conversar com o Congresso, vamos fazer a governança daquilo que a gente precisa fazer”. O tom da entrevista de Costa e Padilha ontem em nada lembrou a fritura que borbulhou durante a semana. Foi um discurso quase conformado, envergonhado, sem nuances de indignação, que buscava diminuir as derrotas sofridas na Câmara. Randolfe Rodrigues e o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), só assistiram à entrevista, ladeando o ministro com o olhar de tensão. Todos os envolvidos entendem o tamanho da sanha dos leões.

Uma longa despedida

Uma manhã fria e cinza. Mais uma de tantas no meio desse inverno deprimente. Cruzar com o Eric na majestosa Ponte Erasmus é um dos raros eventos que trazem um pouco de calor para as minhas caminhadas. De longe, já conseguia avistá-lo em seu triciclo elétrico. O colete verde fluorescente e o capacete facilitam a identificação do cidadão honorário de Rotterdam. Acenei com um sorriso, fazia tempo que não nos falávamos. Ele estacionou o triciclo na minha frente e antes de mandar aquele universal “tá sumido”, já foi direto ao ponto como um bom holandês: “Muito bom te ver hoje porque em algumas semanas já não estarei mais aqui”.

Enquanto tentava não congelar com o climão, Eric começou a compartilhar comigo uma notícia devastadora. Ele revelou que havia tomado a decisão de pedir a eutanásia a seu médico. Fiquei surpreso e ao mesmo tempo emocionalmente impactado por uma revelação tão pessoal.

O síndico de Rotterdam

Conheci Eric Alblas há pouco mais de 2 anos. Nos tempos de pandemia, frequentamos o único local no qual era possível comprar um café ao ar livre e conversar mantendo o devido afastamento sanitário. Falávamos sobre muitas coisas, mas Eric nunca havia expressado os detalhes de sua jornada de lutas e sofrimentos diários devido a uma doença debilitante e incurável. Quando nasceu, os médicos estimaram que aguentaria no máximo 10 anos. Mas, naquela fatídica manhã, ele compartilhou suas experiências de 63 anos lidando com a dor física e emocional, descrevendo como inúmeros desafios recentes haviam afetado sua qualidade de vida e sua capacidade de encontrar alegria nas coisas simples.

Tinha severos problemas de mobilidade, mas quase todos os dias saía de casa para a sua ronda diária. Instrutor de auto-escola aposentado, sem família próxima, mas com muitos amigos pelas ruas da cidade. Havia sempre um saco de lixo amarrado no seu triciclo, servia para recolher tudo que encontrasse emporcalhando as ruas. O trajeto do dia era publicado em suas redes sociais, com muitas fotos e relatos de achados curiosos. Volta e meia aparecia no jornal ou na TV. Recebeu uma medalha por serviços prestados à comunidade.

Enquanto eu o ouvia atentamente, percebi a coragem e a sinceridade em suas palavras. Ele não estava buscando piedade, mas sim um alívio para seu sofrimento. Compartilhar esse momento tão íntimo com ele despertou em mim um misto de compaixão e respeito pela sua escolha, mesmo que fosse uma decisão difícil de aceitar.

Aquela manhã na Ponte Erasmus ficará marcada em minha memória como um encontro sincero e profundo com Eric. Nós compartilhamos nossas histórias, nossas angústias e nossas reflexões sobre a vida e a morte. Enquanto nos despedimos, eu me sentia grato por ter conhecido Eric e por ele ter compartilhado um pedaço tão significativo de sua jornada comigo.

Tour final

O luto foi imediato. Os dias que seguiram foram péssimos e precisei buscar amparo com nosso barista (e amigo) em comum. Aquilo era realmente necessário? Precisava um pouco mais de contexto da cultura e leis locais para conseguir lidar com a notícia. Eric não parecia um caso terminal. Para mim, a imagem da eutanásia era relacionada a pacientes presos em uma cama de hospital, sob dor constante e sem qualquer perspectiva de sobrevivência.

A Holanda é conhecida por ser um dos primeiros países a adotar uma legislação abrangente sobre a eutanásia. A lei, que entrou em vigor em 2002, permite que os pacientes terminais ou que sofrem de doenças incuráveis e insuportáveis solicitem a morte assistida por um médico. No entanto, existem critérios rigorosos a serem cumpridos, incluindo a avaliação médica e a solicitação voluntária, informada e repetida do paciente. A legislação holandesa busca equilibrar o direito à autonomia individual com a proteção dos mais vulneráveis, exigindo um processo cuidadoso e supervisionado para garantir que a eutanásia seja realizada de forma ética e legal. A Holanda continua a ser um dos poucos países que permitem a eutanásia sob certas condições específicas, sendo um assunto que suscita debates e reflexões em todo o mundo.

Antes mesmo que eu pudesse pedir o meu segundo duplo expresso para outra rodada de explicações, lá chega ele. Não morre tão cedo. Eric era bem mais próximo do barista, estava sempre por lá. Sua decisão já havia sido compartilhada com ele havia mais de 6 meses. Agora, com todos na mesma página, conversamos sobre como estavam os procedimentos de entrevistas médicas, visitas inesperadas de psicólogos em sua casa, preparativos com o seguro funerário, testamento em cartório… Toda a burocracia e requisitos médicos foram enfrentados de maneira lúcida, sem esconder a decisão de ninguém.

Na semana seguinte, Eric fez o comunicado oficial em suas redes sociais. Seguiram as entrevistas na mídia, falando abertamente sobre o caso. Inúmeras reações de tristeza e respeito. Muitas fotos e relatos de últimos encontros com os amigos que havia feito pela cidade. Algumas bíblias colocadas em sua caixa de correio. Até com isso lidava na esportiva.

A ronda da última terça foi mais longa do que o comum, avisava o seu tuíte. Jantou almôndegas com alho em seu restaurante favorito. Voltou para casa, fez seus últimos preparativos e aguardou a visita de uma equipe médica na manhã seguinte. Quarta-feira, 24 de maio de 2023. Com a assistência dos profissionais de saúde, descansou em paz.

O lema de Rotterdam é “as batalhas nos fortalecem” e Eric foi uma de suas melhores encarnações. Ficam comigo as lembranças de belos momentos aos pés da Ponte Erasmus.

*Caso esteja precisando de ajuda, procure o Centro de Valorização da Vida (CVV) pelo telefone 188 (24 horas e sem custo de ligação), ou pelo site www.cvv.org.br para atendimento por chat e e-mail.

A virada gospel

Jonas Villar, Clóvis Pinho, Kira Garcez, Aline Barros, Kemilly Santos, Leidy Murilho, Colo de Deus, Renascer Praise, Kemuel, Eli Soares, Banda Dominus, Paulo César Baruk, Ao Cubo e André e Felipe. Do axé ao hip-hop Gospel, neste final de semana, ídolos da música cristã tomarão os palcos da 18ª edição da Virada Cultural de São Paulo. No evento que tem como objetivo promover a cultura na capital paulista, seus shows marcam presença em todas as regiões da cidade. Em entrevista ao Meio, o antropólogo Juliano Spyer, criador do Observatório Evangélico e autor do livro Povo de Deus — Quem são os evangélicos e por que eles importam, analisou o peso dessas apresentações em uma das celebrações culturais de maior importância do país. E recomendou fortemente o trabalho das pesquisadoras Raquel Sant'Ana e Olívia Bandeira para quem quiser mergulhar mais a fundo nesse universo. Confira os principais trechos da conversa.

Qual a função da música gospel dentro da prática religiosa?
Tenho a impressão que o gospel é aquilo que junta a imensa colcha de retalhos que é o mundo evangélico. Há muita variedade dentro desse nicho. Podemos começar a olhar a partir da Igreja Batista, que se dirige mais à classe média; depois passamos pela Adventista, até entrarmos no baião de diversidade que é o mundo Pentecostal, incluindo as milhares de Assembléias de Deus espalhadas pelo país. Sem falar na explosão neopentecostal que abarca a Universal e instituições como Deus é Amor. Cada uma dessas vertentes adapta a religião para sua visão, segmento de público, interesses e propósitos. Algumas se ligam a grupos mais escolarizados, outras se dirigem aos mais pobres. Então, nessa colcha de retalhos, o gospel é o espaço em que todas essas pessoas se encontram. Inclusive, fisicamente falando. Muitas vezes os fiéis que leem bíblias diferentes e enxergam o mundo a partir de perspectivas distintas, saem de suas igrejas, bairros e se encontram em eventos gospel, acampamentos, marchas e shows. Essa é a importância do estilo, condensa as visões e os ensinamentos.

Como o gospel se faz presente na vida dos crentes?
Nesses tempos de Spotify, consumimos a música toda quebradinha. De um jeito extremamente individualizado. Escutamos faixas que gostamos, não discos completos. Enquanto isso, os louvores, mais que entretenimento, são um elemento da liturgia coletiva. As pessoas não escutam gospel apenas para ficar alegres, como consumimos outros estilos musicais, mas faz parte do ritual. Dentro da tradição protestante, vinculada ao mundo evangélico, a música sempre foi aquilo que costura as várias partes do culto. É algo que está ligado à experiência da relação com o místico. Além disso, frequentemente, igrejas oferecem aos jovens de seu entorno recursos como a dança, as artes marciais e, especialmente, a música. Assim, ela acaba servindo como porta de entrada para a religião. E não é incomum que a música sirva também como o ganha pão dessa criança no futuro. Com frequência, aqueles que recebem o treinamento musical se tornam músicos da Orquestra Sinfônica ou corais que não têm a ver com a religião. Portanto, a música dentro da igreja é também uma importante chave de acesso. No mundo evangélico brasileiro, dos anos 1990 para cá, o gospel se tornou um mercado impressionante. Aliás, nós, classe média escolarizada, pensamos que esse estilo é feito por evangélicos para evangélicos. No lugar onde fiz pesquisa de campo, no entanto, o gospel é trilha sonora de todo mundo. Nas playlists, há desde o pagofunk a hits grandes do mundo gospel. Nos bairros pobres do nosso país, ninguém diz que é ateu. As pessoas acreditam, muitas vezes, em várias coisas juntas. Neste contexto, a música gospel deixa de ser a música dos crentes e se torna a música de todos.

Neste sentido, o gospel tem furado a bolha evangélica e servido de atrativo de novos fiéis?
O mundo evangélico brasileiro já não é uma bolha. Mas, usando essa analogia, podemos dizer que essa bolha está explodindo em todos os sentidos. Outro caso interessante é da indústria da roupa. Os evangélicos têm a ambição de casar a moda com as regras de vestimenta, o que produz uma indústria. As pessoas precisam usar a saia até certa altura, blusas sem tanto decote… num universo brasileiro de mais de 70 milhões de crentes, isso se torna uma coisa enorme. Então, as lojas que originalmente produziam produtos voltados para os evangélicos passam a atingir outros públicos, como executivas, que buscam roupas neste perfil, com determinado decoro. Ocorre exatamente a mesma coisa com o gospel. Não há mais como traçar uma fronteira específica sobre o que é o público evangélico que escuta gospel e o não crente.

O que significa essa considerável presença do gospel em um evento de grandes proporções, como a Virada Cultural?
Tenho sentido que, finalmente, esse tema está sendo tratado com o devido respeito. É quase enlouquecedor perceber que, geralmente, é ignorado algo tão importante para, pelo menos, um em cada três brasileiros, para a tradição religiosa que está em curso de se tornar a predominante no Brasil, desbancando inclusive o catolicismo, que veio para cá junto com os colonizadores. Portanto, um fenômeno dessa dimensão integrar um grande evento cultural não é bacana, é o óbvio. Você está cego se não dá espaço, voz e atenção para isso. Não estamos falando de um pequeno nicho, é algo que está presente na vida da maioria dos brasileiros. Só não está presente nas dos intelectuais da minha ou da sua universidade.

E por quê?
Quando analisamos essas questões, o principal fenômeno não é que o cristianismo evangélico tem o tamanho que tem… é que as pessoas que estão em posição de liderança no Brasil em todos os âmbitos — indústria, comércio e entretenimento — não têm ideia disso. Essa segregação cultural é enlouquecedora. Você não precisa estar de acordo ou ouvir gospel, mas precisa reconhecer sua importância. Exatamente por isso a Virada Cultural não está de parabéns, é um ‘até que enfim’. A Virada também não está validando o gospel como manifestação cultural, mas está se validando porque, se não concedesse esse espaço, seria incompleta. Não dar esse tipo de atenção, num extremo, olhando de forma positiva, é no mínimo ignorância. Já do ponto de vista mais crítico, beira à segregação cultural. Você estaria alienando um determinado público, o impedindo de frequentar um evento teoricamente criado para fomentar as mais diversas formas de manifestação cultural.

Por falar em passado vergonhoso e sua reprodução no presente, o crime de racismo cometido contra Vini Jr. esteve entre os mais clicados da semana. Confira:

1. YouTube: O trailer de Killers of the Flower Moon, de Martin Scorsese.

2. CNN: Novas imagens da superfície solar com detalhes jamais vistos.

3. Estado de Minas: O fóssil de ovos de dinossauro com 80 milhões de anos achado em Minas.

4. YouTube: Ponto de Partida — O Congresso ataca o Planalto.

5. Twitter: Vini Jr. faz um compilado dos ataques racistas de que é vítima.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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