Berlusconi e a calibragem do combate à corrupção

A Operação Mãos Limpas e a Lava Jato minaram a confiança na política e ajudaram a eleger arquétipos antidemocráticos. Mas corrupção demais pode fazer o mesmo

Em maio de 2001, a coalizão Casa delle Libertà recebeu pouco mais de 45% dos votos italianos. Seu líder, o já primeiro-ministro Silvio Berlusconi, foi realçado à Câmara dos Deputados por mais de metade dos eleitores do distrito de Milão. Era uma vitória formidável para o premiê. Os dois partidos que haviam dominado a política do pós-guerra estavam dilacerados em definitivo. A Democrazia Cristiana de Aldo Moro mudara de nome em 1994 para tentar sobreviver, depois se separou em siglas distintas, e aparecia lá diluída e já sem personalidade no grupo de apoio do novo premiê. Seu principal rival em quase toda a segunda metade do século 20, o Partido Comunista fundado por Antonio Gramsci, que havia se tornado Partido Democratico della Sinistra após a queda do Muro de Berlim, terminara igualmente diluído no grupo de oposição, espalhado também por muitas siglas sem personalidade definida. Mas não foi Berlusconi quem espatifou por completo o sistema partidário italiano. Foi a Operação Mãos Limpas, contra uma corrupção endêmica, extensa e entranhada na política do país.

O resultado da Mãos Limpas foi trágico. A limpeza mexeu de tal forma com a confiança do eleitor no sistema político que deixou no lugar um governante bufão, corrupto, verborrágico, desastroso, além de um rastro de destruição do arcabouço democrático do qual a Itália ainda não se recuperou. Na última eleição, escolheram para premiê uma política de extrema-direita. A primeira desde Benito Mussolini.

Aqui no Brasil, nos dias de hoje, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva argumenta frequentemente que os clamores contra a corrupção são uma forma de antipolítica. Terminam por ser ataques à democracia. O argumento soa como desculpa num período em que o Centrão busca ampliar seu controle do Estado usando as velhas ferramentas do fisiologismo, patrimonialismo e, claro, da inevitável corrupção que sempre os acompanham. O argumento é uma desculpa. Mas é inevitável reconhecer que Lula tem também razão. Na Itália, como no Brasil, o resultado das ofensivas do Poder Judiciário contra corrupção levaram ao dilaceramento do sistema partidário. O PSDB se tornou uma sombra do que foi, o MDB está de pé mas pela metade, o PFL/DEM se dissolveu dentro do União Brasil, capitaneado por quem por mais de década liderou um partido nanico. As duas siglas dominantes à direita, PL e PP, eram subsidiárias não faz muito.

Talvez mesmo aqueles democratas que não são de esquerda deveriam reconhecer que a sorte brasileira, que a Itália não teve, é o fato de que o PT sobreviveu ao apocalipse partidário.

Berlusconi não era, como Jair Bolsonaro, um político de extrema-direita. Começou sua carreira como crooner, nos anos 1960, cantando como um galã de filme B as músicas de Frank Sinatra. Em princípios da década seguinte, a partir dos contatos que fez, conseguiu financiamento para apostar num conjunto habitacional em Milão que remetia aos condomínios da classe média americana que os italianos não conheciam. Foi um sucesso, mas ele não parou na especulação imobiliária. Antes que a década terminasse estava já no ramo da publicidade e para a compra do primeiro canal privado da televisão de seu país foi um salto. Nos anos 1980, Berlusconi mudou radicalmente como se fazia TV na Itália. Entraram os programas de auditório, as mulheres com seios voluptuosos e pouca roupa, paetês. Bate-bocas públicos. A legislação proibia que se erguessem redes nacionais de TV — Berlusconi, para driblar a regra e se aproveitando de detalhes não escritos com clareza, saiu comprando canais locais por todo o país e mandava para eles, gravado em fita, os programas que produzia em Milão. Não era, tecnicamente, uma rede. Afinal, não estavam todos conectados por antenas retransmitindo simultaneamente. No fim, era dono do Milan, um dos maiores clubes de futebol do mundo.

Os contatos de Berlusconi, que o ajudaram a erguer seu império, eram da máfia. E sua operação, constantemente no limite da lei, com frequência escapava de maior escrutínio pela relação bem pouco republicana com políticos da esquerda e da direita.

Berlusconi não era, pois, como Jair Bolsonaro. Mas foi por toda a vida um parasita dos piores vícios italianos. Da máfia, da podridão política, um homem que constantemente estimulava o que há de mais rude e preconceituoso numa cultura que também produz momentos de rara sensibilidade, erudição, beleza. E, nisto, o mesmo pode ser dito de Bolsonaro: um parasita dos piores vícios brasileiros. Das milícias, da podridão política, um homem que constantemente estimula o que há de mais rude e preconceituoso numa cultura que também produz momentos de rara sensibilidade, erudição, beleza.

A Operação Mãos Limpas foi conduzida com muito mais cuidado e atenção às normas legais do que sua equivalente brasileira, a Lava Jato. Ainda assim, aqui como lá, imagens de força inacreditável foram captadas. Lá, um político jogando uma fortuna em notas no vaso sanitário, em desespero, enquanto era flagrado pela polícia. Aqui, as pilhas de milhões em notas num apartamento de Geddel Vieira Lima, ou um desajeitado Rodrigo da Rocha Loures, correndo com uma mala de dinheiro pelos Jardins, em São Paulo.

Não é à toa que o sistema partidário italiano se espatifou. Não é à toa que o mesmo ocorreu no Brasil. Quando o volume da corrupção em sua forma mais escancarada e vulgar é exposto com tanta clareza, por que algum eleitor voltaria a depositar sua confiança nesta máquina? É natural que deseje outra. E a força da democracia, sugere a teoria que temos, depende de transparência. Quando aqueles que deveriam zelar pelo interesse público contaminam suas ações com seus interesses privados, devem ser expostos.

No rastro da Mãos Limpas, porém, o italiano escolheu eleger o arquétipo de todos seus preconceitos. O brasileiro fez rigorosamente o mesmo. Pode-se argumentar que ambos, Berlusconi como Bolsonaro, vinham com um discurso populista que apontava para retidão moral. Mas quantos realmente se enganavam por figuras que em verdade não escondiam aquilo que representavam? É como se coletivamente, ao ter de encarar um sistema tão desestruturado, o eleitor chegasse à conclusão de que o melhor é escancarar.

Ou, talvez, uma resposta mais simples: autoridade resolve. Escolhe-se alguém de discurso autoritário na esperança de que o que falte à democracia, ora, seja menos democracia. As duas hipóteses podem estar corretas simultaneamente.

Lula tem razão quando afirma que uma denúncia continuada dos casos de corrupção minam com o tempo a democracia. Mas é igualmente verdade que convívio com corrupção demais mina a confiança da sociedade no processo democrático.

A sociedade é diretamente responsável pela eleição de Jair Bolsonaro e, portanto, pelo fortalecimento do Centrão em sua versão piorada, com Arthur Lira. E Lira, no seu jogo duro para manter seu grupo com capacidade de continuada reeleição, mina as chances de a democracia vencer. Mas Lira não joga sozinho. Ao fazer questão de frequentemente elogiar ditadores e jogar duro com democratas pelo mundo, também Lula passa uma mensagem de que o regime que ele representa não merece defesa.

E o papel da imprensa, o papel do debate público, que tem por obrigação dar transparência ao Estado? Talvez a solução seja uma de calibragem. Desenvolver a capacidade de mostrar o que não funciona mas ressaltar, também, o que está funcionando.

Nada é simples.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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