A política e a máquina

Para a cientista política Gabriela Lotta, há resiliência em servidores e políticas públicas bem estruturadas diante de governos autodestrutivos, mas a ingerência danosa do Congresso por meio de emendas pode ser mais permanente

A real politik parece ter atropelado, sem qualquer constrição, a noção de política pública. Discute-se, já há algum tempo, troca em ministérios e distribuição de cargos com pouca ou nenhuma consideração pelos feitos de determinado ministro ou currículo do contemplado com a direção de um órgão. E, por mais que tenha se naturalizado que a partilha de poder é parte do funcionamento de um governo de coalizão, o incômodo é inevitável. Porque mais frequentemente do que o desejável ela se sobrepõe a qualquer outra discussão — passando pela gestão da máquina e pela estratégia nas decisões.

A cientista política Gabriela Lotta, professora e pesquisadora de Administração Pública e Governo da Fundação Getulio Vargas (FGV), acredita na resiliência do sistema, especialmente em áreas em que as políticas públicas estão mais consolidadas. É o caso do Sistema Único de Saúde, o SUS, que resistiu heroicamente e com um alto nível de eficácia a um governo negacionista. Só que nem todos os setores têm estruturas tão sólidas. E mesmo os que têm estão lidando com um novo grau de esvaziamento, produto do empoderamento do Congresso com as emendas impositivas e o orçamento secreto. Hoje, as decisões estão concentradas nas mãos de parlamentares, e ministros amarrados em acordos com esses parlamentares, com virtualmente zero preocupação estratégica. “Isso continua acontecendo, ainda que o governo Lula esteja tentando mudar essa relação”, diz Gabrela.

Esse não é o único desafio do governo Lula nessa frente. Parte importante do funcionalismo está desmotivada, seja pelos ataques sofridos no governo anterior ou pela defasagem salarial. Ocupar cargos comissionados com gente qualificada está praticamente impossível. Confira os principais trechos da entrevista.

De que maneira a disputa política por ministérios e cargos afeta o serviço público propriamente dito, lá na ponta?
É importante fazer uma contextualização de como funciona essa lógica de ocupação de cargos comissionados. Mais ou menos 60% dos cargos disponíveis precisam ser ocupados, obrigatoriamente, por servidores públicos. Isso é proporcional: quanto maior o cargo, menor é a quantidade obrigatória de que sejam servidores de carreira. Às vezes, parece que se dá um ministério para um partido e isso significa que naquele ministério vai mudar tudo. Não é verdade, porque o número de cargos disponíveis para o partido pode ser aparentemente grande, mas uma parcela importante deles vai ter de ser ocupada por servidores públicos — e mesmo funções muito técnicas que não tenham essa obrigatoriedade o partido prefere preencher com servidor que saiba fazer o trabalho. Então, nessa coisa de “porteira fechada” os cargos mais altos vão ser ocupados, mas ali para baixo pode até haver uma certa rotatividade entre os próprios servidores, mas não vão entrar pessoas de fora, que nunca tiveram nenhuma relação com aquele ministério. Também é importante lembrar que, de forma simplificada, nós trabalhamos com dois níveis de política pública.

Quais são eles?
Um é aquele nível de política pública que está na agenda, que vai ser debatido, que um partido concorda e outros discordam. São as grandes pautas, que inclusive aparecem durante as eleições. Mas isso, no dia a dia da gestão, deve corresponder a uns 20% do que acontece na máquina pública. O segundo nível é uma camada de atividades rotineiras, muito pouco alteradas num novo governo. Claro que quando você tem uma mudança de presidente, que traz uma agenda muito nova, a tendência de essas coisas menores mudarem é maior. Mas uma grande parte da máquina vai continuar operando, seja porque as pessoas são as mesmas, ou porque são políticas institucionalizadas, com compromisso legal, e o orçamento já está acordado. O que um novo político consegue fazer é uma camada que está lá em cima, mais visível, mas tem um mundo da gestão pública dominado pelas pessoas que estão lá e que dificilmente vai ser alterado. Um exemplo é o Bolsa Família, que teve origem de formato no governo Fernando Henrique, embora com outro nome, foi sofrendo alterações até ganhar essa forma e nome durante o governo Lula, permanece no governo Dilma, Temer e durante quase todo governo Bolsonaro. Não era uma escolha política do novo candidato manter ou não.

Isso quer dizer que, no final, a disputa política influi pouco na gestão pública?
O que mostrei até aqui é que existe uma grande estabilidade mesmo quando há esse tipo de troca. Mas, ainda assim, mudanças afetam bastante os serviços e servidores públicos. Se muda um governo, um partido ou um ministro, em primeiro lugar, cria-se uma instabilidade de qual vai ser essa agenda mais visível no futuro. Para quem trabalha ali, fica uma falta de clareza de rumo. Isso gera uma suspensão do próprio funcionamento da equipe, que espera para saber quem vai ser o próximo chefe, ainda que seja também um servidor, com qual tipo de orçamento, etc. Cada mudança de ministro, ainda que do mesmo partido, gera pequenos terremotos. São momentos de bastante desconforto e isso afeta o funcionamento do dia a dia da administração pública mesmo que vá haver bastante continuidade na política de médio e longo prazo. Agora, quando o orçamento era mais controlado pelo Poder Executivo esse tipo de desconforto era menos visível.

Como assim?
O processo do aumento das emendas parlamentares e de o Congresso dominar a pauta cria ainda mais problemas.O orçamento de uma política pública não é mais algo dado, porque talvez o novo ministro tenha um acordo com determinados grupos do Congresso e realoque as emendas.

Servidores públicos perderam parte do poder que tinham de garantir a continuidade de suas políticas e da gestão daquilo que já estava em andamento.

O SUS me parece um bom exemplo do que tratamos até aqui.
Sem dúvida. Durante o governo Bolsonaro, tivemos ministros da Saúde que eram claramente negacionistas e não investiam, ou investiam o mínimo possível em políticas relacionadas à pandemia. E, com toda a tragédia que vivemos, ainda assim tivemos um programa de vacinação que, quando as vacinas foram finalmente compradas, foi muito rápido e efetivo. O que explica isso, se nós não tínhamos o ministério a favor dessa política, é que havia um sistema estruturado, com equipes trabalhando na ponta, fazendo campanha de vacinação mesmo sem a pasta fazer isso institucionalmente. Claro que há uma perda quando o ministério deixa de fazer campanha, mas a unidade básica de saúde sabe fazer. Esse é um ótimo exemplo de como a máquina opera mesmo quando há mudanças políticas radicais. Há uma resiliência. Agora, no segundo elemento que falamos, o Congresso foi dominando cada vez mais o orçamento. E o próprio SUS foi afetado. Vamos supor que um município fosse contratar mais equipes de saúde da família ou construir um hospital. Do jeito que o sistema está desenhado, essas decisões, até recentemente, eram organizadas dentro do sistema. Não era um deputado que batia na porta do ministro, conseguia a emenda parlamentar e fazia um hospital onde lhe interessa politicamente. Tem demanda, análise epidemiológica, uma lógica de regionalização, um sistema de referência. Agora, essa lógica de o Congresso cada vez mais dominando o orçamento, com as emendas impositivas e o orçamento secreto, as decisões vêm de fora do sistema. Isso continua acontecendo, mesmo que o governo Lula esteja tentando mudar essa relação.

Ou seja, sacrifica-se a estratégia de política pública para se fazer só política.
Sim, é uma perda do poder da própria burocracia de conseguir tomar as decisões, organizar as estratégias dentro da lógica da política pública. É quase como se fosse o Congresso tomando decisão de política pública sem precisar do Executivo para validar que aquela é a melhor decisão. E aí, cumpra-se. Isso, a médio e longo prazo, é um problema muito grande em termos de gestão. Num país heterogêneo e desigual como o nosso, a única saída para se ter políticas públicas efetivas é que elas sejam construídas com inteligência estratégica, não como uma decisão apenas política. Isso não significa não ter o elemento político, porque claro que a política sempre está presente. Mas não pode ser a política sozinha. É A democracia equilibrista de que trato no meu livro com o advogado Pedro Abramovay.

Durante o governo Bolsonaro, você escreveu muitos artigos sobre as áreas de Saúde e Educação. Foi ali o pior desmonte de política pública?
Eu não colocaria Educação nas piores, porque, para o bem e para o mal, a educação no Brasil não tem uma lógica de coordenação federativa. A ausência do governo federal na educação causa muitos problemas, mas ainda assim a competência primordial de oferta do serviço é estadual e municipal. No SUS, acontece mais ou menos a mesma coisa. Mas se pegarmos, por exemplo, o serviço ambiental, a consequência do desmonte foi terrível, porque ele depende primordialmente da atuação do governo federal. Se ele não faz, não tem quem faça. O mesmo na área de direitos humanos, porque são todas as prefeituras e governos estaduais que têm políticas estruturadas nesse setor. Quando o governo federal abdicou de fazer combate ao trabalho escravo, à violência doméstica, ninguém fez, porque não tem substituto na lógica federativa.

Como é o processo de reconstruir essas políticas públicas e esses quadros?
Em primeiro lugar, ele passa por literalmente fazer concursos para recomposição da força de trabalho. Muitos servidores haviam sido contratados no pós-Constituição em órgãos como Ibama, IBGE e INSS, em concursos lá dos anos 1990, e essas pessoas chegaram na idade de aposentadoria. Ao longo dos anos, não houve recomposição. Na verdade, desde o segundo governo Dilma houve um número baixíssimo de concursos. Isso tem sido uma das prioridades do Ministério da Gestão. Alguns editais de concurso já estão saindo e outros vão abrir. Em segundo, passa pela ocupação dos cargos comissionados, algo entre 15 mil e 20 mil, sendo que há aqueles 60% que têm que ser servidores públicos. Esse governo tem tido muita dificuldade de ocupar esses cargos, tanto os que são de livre provimento como os de servidores. Para quem vem de fora, os salários atuais de cargos comissionados são baixíssimos. A chefia de uma organização, logo abaixo de um secretário, algo correspondente a um diretor de empresa, paga em torno de R$ 12 mil. A pessoa vai ter centenas de funcionários abaixo, são cargos de responsabilidade altíssima, em que ela coloca o CPF em risco, se tomar decisões erradas, pode ir preso ou tomar multa. Ainda terá de se mudar para Brasília, uma cidade caríssima. Mesmo para servidores públicos o mercado é muito competitivo entre os cargos que eles podem ocupar. Um servidor não quer trocar de posição para uma com mais responsabilidades por R$ 400 a mais.

Essa defasagem salarial piorou recentemente?
Os salários não foram atualizados nos últimos seis ou oito anos. O poder de compra desses salários caiu muito. Eles já foram bem mais competitivos. Além disso, no Brasil, havia uma prática de complementar esses salários dando assentos em conselhos de empresas estatais, que pagavam o jeton. Isso foi proibido pela nova Lei das Estatais. Há uma série de restrições. E tem um terceiro ponto. Principalmente depois dos ataques que o governo passado fez aos servidores, mas também por conta da pandemia, a moral está muito baixa. O nível de engajamento, de motivação. Fizemos algumas pesquisas no Inep, Ibama e IBGE, e o grau de burnout das equipes está muito alto.

As pessoas estão emocionalmente destruídas. Pode ser que tenham áreas em que os servidores estão felizes. Não dá para generalizar para a Esplanada inteira. Mas nessas áreas super sensíveis há níveis baixíssimos de motivação.

Então, a recomposição vai além dos concursos.
Mesmo nesse ponto, embora seja urgente contratar, não adianta fazer isso de qualquer jeito. Essas pessoas vão entrar para ficar na administração pública talvez por 30 anos. Em várias carreiras, os concursos não prestaram atenção em coisas muito importantes como a vocação de servir, o ethos de trabalho. Aí, você acaba alimentando o mercado de concurseiro que entra no serviço público sem qualquer empenho. Está agora em discussão um projeto de lei propondo outros elementos de avaliação, que podem melhorar a qualidade dos nossos concursos. Estive em Brasília e já tratei disso com a ministra Esther Dueck, que é muito sensível a esses pontos.

Você enxerga saída para a equação de aumentar a máquina pública, e os gastos, em tempos de arcabouço fiscal e um nível de austeridade?
Existe uma discussão fiscal e claro que o governo está atolado. Mas eles já previram alguma “gordurinha” para essa recomposição. O INSS, por exemplo, esteve próximo da paralisia por falta de pessoal. Existe uma negociação colocada de que parte dessa remontagem vai acontecer durante esse governo e isso já está na conta. Em outras partes, vai haver debates mais profundos. É preciso desmistificar e abrir essa caixa preta dos gastos com servidores. No imaginário da sociedade, servidor público ganha salários absurdos, na lógica do marajá. Daí, aparecem notícias como daquela procuradora que reclama do salário de R$ 35 mil. Só que o serviço público brasileiro é extremamente desigual, assim como a nossa sociedade. A grande maioria dos servidores do governo federal eles estão no chamado “carreirão”, que é uma carreira de ensino médio cuja média salarial é de cerca de R$ 3 mil. Nas carreiras de elite, o salário de entrada vai para R$ 15 mil. E essas pessoas trabalham nas mesmas equipes, às vezes fazendo as mesmas coisas. A primeira coisa que teria de ser feita para enxugar é acabar com os elementos dessa desigualdade que não têm a ver com os direitos da carreira original. As gratificações, por exemplo, ou gente que ganha acima do teto constitucional. Isso é uma coisa que tinha de ser implementada para amanhã. Ninguém tem que ganhar acima do teto, acabou, não tem discussão jurídica possível. Só aí você vai ter uma economia enorme.

Há outras medidas concretas no horizonte? A reforma administrativa é uma delas?
Tem a regulamentação do trabalho remoto e já há pesquisas mostrando que o trabalho híbrido deu uma economia importante em vários ministérios. É uma economia sem diminuir o número de servidores. Agora, sobre a reforma especificamente, eu sou contra. Ela está mal feita, não vai resolver os problemas e ainda vai criar problemas adicionais. Mas eu sou a favor de medidas de reforma que não precisam nem ser legislativas. Desvia-se muita energia achando que o problema do serviço público se trata com uma PEC. Mas é ineficiente, porque ela vai precisar de regulamentação, de implementação. Se não tiver gestão, a lei não resolve. Há programa super grande de digitalização, por exemplo, que é importante. Ou a gestão de desempenho que agora está avançando, a unificação de carreiras está em debate. Há coisas na mesa que podem ser implementadas e já gerar redução de custos, sem precisar de uma mobilização nacional em torno de uma PEC.

Muitas dessas medidas mexem com a elite do funcionalismo e têm alto custo político. Existe espaço para isso?
Espaço político sempre se constrói, ele nunca existe de saída. Política é originalmente o dissenso. Faz-se política para conseguir construir algum tipo de concordância em torno de temas como esse. Um presidente não vai comprar briga com o Judiciário para barrar o pagamento acima do teto constitucional sozinho. Ele não vai ter força política para isso. Agora, se a sociedade pressionando, a opinião pública, isso vira força política. Mesmo dentro do serviço público pode-se mobilizar 95% dos servidores por muitas dessas pautas. Os servidores têm interesse numa avaliação de desempenho mais técnica, por exemplo. Ou em reduzir os privilégios de uma minoria. Claro que o funcionalismo é muito diverso. Tem a enfermeira, o agente comunitário, o juiz. Cada grupo tem interesses e realidades muito diferentes, o que dá para ser explorado politicamente também. É preciso mobilizar atores da sociedade e do próprio funcionalismo para acabar com as discrepâncias.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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