Dança das cadeiras

Para o cientista político Jairo Nicolau, corrigir a proporção de deputados de cada estado a partir do Censo é decisão técnica e necessária. E o Congresso conservador atual é sinal de que a direita encontrou sua representação

O Brasil se interiorizou nos últimos 12 anos. De acordo com os primeiros resultados do Censo 2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o crescimento da população brasileira, abaixo do previsto, foi maior no interior do que nas capitais: mais de 66% dos novos habitantes estão fora dos grandes centros urbanos. E, entre as regiões, a que teve maior aumento populacional foi o Centro-Oeste, que cresceu a 1,23% ao ano, mais do que o dobro da taxa média do país, de 0,52%. Em seguida, vieram Norte e Sul. Tudo isso pode, num primeiro momento, parecer uma numeralha sem efeitos políticos. Mas, além de guiar o que há de mais elementar na formulação de políticas públicas, o Censo apresenta um retrato demográfico do Brasil e coloca em questão a própria representatividade do povo brasileiro. Se o Centro-Oeste tem mais gente hoje, deveria ter também mais deputados na Câmara?

Um estudo feito pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar, o Diap, a pedido da Folha de S. Paulo, aponta que sim. Um redesenho do tamanho das bancadas estaduais de acordo com os números do Censo levaria sete estados a aumentar suas cadeiras — e outros sete a perder assentos. Entre os que mais ganhariam deputados, estão Santa Catarina, Pará e Amazonas. Rio, Bahia e Piauí figuram entre os que mais encolheriam. “Mas essa é uma mudança técnica, a proporção deve ser corrigida e bola pra frente”, defende o cientista político Jairo Nicolau, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV CPDOC). Autor de Representantes de quem?: Os (des)caminhos do seu voto da urna à Câmara dos Deputados e pesquisador de sistemas eleitorais e partidos, Nicolau aponta uma resistência dos políticos em discutir para valer essa correção de proporcionalidade que, feita a cada censo, seria residual.

Sobre eventuais alterações ideológicas na composição do Congresso com mais cadeiras para estados conservadores, o professor não antevê grandes surpresas. “A representação das bancadas seguiria a divisão de 20 a 25% para a esquerda. Os outros são os outros.” A direita, ele diz, depois da onda do bolsonarismo, está assentada na Câmara e, embora partidos ainda evitem se assumir conservadores nominalmente, parte da elite política perdeu o constrangimento de se colocar nessa ponta do espectro. Confira os principais trechos da entrevista.

É hora de rever a proporcionalidade das bancadas estaduais na Câmara dos Deputados?
O arranjo institucional brasileiro foi inspirado no dos Estados Unidos. Temos duas casas, o Senado e a Câmara dos Deputados. A Constituição brasileira de 1891 copiou a americana, que desde 1790 traz um artigo que especifica que a Câmara dos Deputados deve ter uma distribuição rigorosamente proporcional à população dos Estados. Thomas Jefferson se envolveu na matemática para garantir que as bancadas fossem mais proporcionalmente representadas. Para eles, isso é uma questão central. Essa regra é cumprida a ferro e fogo depois de cada censo demográfico. No Brasil, nunca tivemos uma Câmara rigorosamente proporcional à população. Desde os anos 1930, estabelecemos um teto e um piso para as representações: um mínimo de 8 e o máximo de 70 deputados por Estado. São Paulo, por exemplo, deveria ter algo em torno de 110 deputados atualmente. O Acre e o Amapá deveriam ter um ou dois deputados. Mas isso nem entra em discussão. O que se debate são as distorções ali no meio. Tivemos os censos de 2000, 2010, que já inspirariam correções. E mesmo antes disso. Foi criado o estado de Tocantins e Goiás manteve suas cadeiras. Independente de quem perde ou ganha, essas correções deveriam ser feitas após cada recenseamento demográfico.

Por que não foram feitas?
Toda vez que esse tema aparece em seminários e aulas alguém fala “ah, mas São Paulo não pode ter 110 deputados, isso vai criar uma importância desproporcional no equilíbrio federativo”. Oras, mas esse equilíbrio não é dado pelo Senado? O Senado é a casa da representação dos territórios dos Estados no Congresso. Então, eu volto à pergunta: a Câmara é a casa de representação de quem? Dos Estados ou dos partidos? A rigor, no que importa para a população, da perspectiva do desenho institucional, a Câmara é a casa da representação dos partidos e do povo. Nós fizemos uma mistura institucional no Brasil. O Senado não é só para discussão de questões federativas, é uma casa revisora em que todos os temas são discutidos. Mas nunca apareceu na política quem quisesse discutir isso. É difícil mudar a proporção, porque estados vão ganhar e perder assentos. A mudança é meramente técnica, isso devia ser corrigido e bola para frente. A mim, como cidadão e pesquisador, a Câmara dos Deputados é representação do povo brasileiro. O deputado é eleito para representar os brasileiros.

Essa correção na proporcionalidade a partir do Censo 2022 pode deixar estados do agronegócio, por exemplo, mais poderosos no Congresso?
Na primeira república, Minas Gerais era o maior estado e era subrepresentado, não São Paulo. Há poucas Câmaras no mundo onde os deputados são nacionais. Em geral, eles são eleitos nos territórios, por regiões, e é garantido que cada uma delas tenha a proporção de cadeiras segundo sua população. Acompanho o debate público brasileiro em questões de reforma política desde o começo dos anos 1990. Na Constituinte, São Paulo passou de 60 para 70 cadeiras e o debate foi pesadíssimo. Mário Covas, Fernando Henrique, Delfim Netto, as grandes figuras de São Paulo defendendo arduamente esse aumento. Só que se criou o Estado de Tocantins e os territórios, que tinham quatro cadeiras, foram para oito. O que São Paulo ganhou foi logo compensado. Sempre vai haver mudança demográfica. Hoje, uma área de expansão territorial é o Centro-Oeste. Mas é difícil imaginar que num crescimento demográfico de uma ou duas décadas o Mato Grosso saia de 8 para 30 cadeiras. Pode aumentar para 10 ou 12. Esse aumento de proporcionalidade acontece muito devagar. Existe um processo desigual, migração pra áreas de fronteira, polos econômicos de atração que vão mudando. Agora, não se corrige nenhuma cadeira há 30 anos. Se nos dois censos anteriores já estivesse corrigindo, a eventual redução de cadeiras de um estado seria mais sutil, marginal.

É de se supor que um Centro-Oeste com mais cadeiras, por exemplo, resulte numa Câmara mais conservadora?
Se olharmos as bancadas da região Centro-Oeste e Norte, a esquerda penou na eleição de 2022. No Amazonas, o campo progressista não elegeu ninguém. Maranhão e Pará também tiveram dificuldade. Realmente, essas têm sido áreas muito conservadoras, têm dado vitórias permanentes à direita. E não só na eleição presidencial. Para eleger deputados, a esquerda dependia de fazer coligação. Agora, tem que criar federação ou fusões. São estados dinâmicos economicamente, que estão tendo um crescimento, mas que não chega a ponto de virar o jogo das bancadas. O que se observa na Câmara hoje é que o conservadorismo é geral. São Paulo elegeu Guilherme Boulos, mas também Eduardo Bolsonaro. Rio, São Paulo, Minas, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco são estados em que a expressão da competição política nacional entre esquerda, direita e centro fica mais explicitada.

As bancadas da região Norte e Centro-Oeste têm sido dominadas por conservadores, mas isso não quer dizer que vai ser sempre assim. O Mato Grosso do Sul já foi governado pelo PT, que também já teve boa representação em Goiás, no Pará. Isso é cíclico.

Fala-se há tempos de uma crise de representatividade.
Vamos pensar o seguinte: há partidos de menos? Há forças políticas com alguma relevância que não tenham lugar no sistema representativo? Não. O sistema partidário tem sido muito acolhedor a forças políticas. Hoje, é mais difícil criar um partido, mas seria injusto dizer que tem uma força política relevante no país que não encontra abrigo. Se a Câmara é representativa do perfil da sociedade brasileira é uma discussão mais difícil, porque fica entre o idealismo e a ingenuidade acreditar que possamos ter um Congresso que seja um espelho demográfico do país.Não existe lugar nenhum do mundo onde esse espelho aconteça. Hoje, vem se corrigindo, seja por políticas afirmativas ou pela natureza da política mesmo, a distorção de representação de homens e mulheres. Tem aumentado a representação de grupos minoritários. É claro que temos um déficit da representação feminina, que é um absurdo inexplicável. E o da população negra que está sendo corrigido bem aos poucos. Mas esses são temas a serem enfrentados como sub-representação. Um parlamento perfeitamente fiel à demografia é até um exercício exaustivo, porque você tem que começar a criar proporção de negros que são do Sudeste, de população indígena do Norte sobre a população geral.

Se a Câmara ficar mais à direita com a mudança das bancadas, isso é representatividade democrática?
É isso. Eu não tenho dúvida, cansei de fazer esse tipo de estudo nos anos 1990: como ficaria a representação na Câmara caso você corrigisse as distorções? Pensando no caso de São Paulo, o PT perderia e, hoje, o PL também perderia. Dando 40 cadeiras a mais para o estado, no máximo 20 vão para a esquerda. O restante vai para PL e assemelhados. Porque São Paulo é grande e expressa muito bem essa polarização nacional. A Câmara não muda de perfil com essas correções. A distribuição de votos entre esquerda e direita é aquela, a esquerda não passa de 20, 25%. Os outros são os outros. Tem uns pragmáticos, centro direita, liberais, os que não se assumem de direita. Mas você não muda a natureza da representação que hoje é expressa ali.

O Brasil não é um país de esquerda, ainda que hoje tenhamos um presidente de esquerda. O Congresso é representativo na perspectiva ideológica.

Então, não há crise?
O ponto de que a população se queixa é no sentido de uma desconfiança da elite política em geral, uma percepção da atividade partidária e política como degenerada, onde estão pessoas que só querem se dar bem, simplificando bastante. É o que aparece nas pesquisas qualitativas. A pesquisa Ipec mesmo mostrou que o Congresso e os partidos até teriam melhorado um pouco, mas estão sempre lá na rabeira. As pessoas sempre avaliaram mal. A ideia é que o Congresso não representa e isso tem mais a ver com esse distanciamento entre representado e representante, um certo fechamento dos deputados em seus interesses, as emendas parlamentares, os fundos eleitoral e partidário gigantescos. É um sistema de proteção dos privilégios. Além disso, há o distanciamento em relação a esse mundo político que não diz respeito à vida direta das pessoas. O que faz um deputado? A população não está muito aí para isso e, nas pesquisas, 60% é a favor de acabar com o voto obrigatório.

Nem nos últimos anos, de intensa crise política, esse interesse aumentou?
Quando se entra na política como ativista, isso leva a uma certa dimensão de paixão, de engajamento. Nesses últimos quatro anos, a maioria das pessoas que eu conheço, e isso as pesquisas indicam também, não entraram na política com um espírito de "ah, que interessante, vou estudar mais, vou ver mais GloboNews para tomar decisões melhores". Elas entraram não como quem acompanha o futebol em casa, mas como quem vai para o estádio em torcida organizada. Um contingente muito grande de quem passou a participar da política veio com uma paixão, com um ativismo até desmesurado. Não estava normal. Tem alguma coisa fora do lugar quando essas pessoas estão discutindo voto distrital, um sistema eleitoral que nunca interessou a ninguém. Ou assistindo a um debate do Supremo no meio da tarde. Ou a uma sessão de CPI. Isso é uma excepcionalidade. O país não pode viver daquela maneira. Estávamos numa febre. E agora as pessoas vão cansando, deixando de conversar de política com aquele caráter de dramaticidade de novela, que no capítulo seguinte tem uma prisão, uma soltura, um dinheiro no cofre, na cueca. Isso acabou e estamos voltando à política ordinária, cotidiana.

E isso é positivo?
Olha, a política do dia a dia é entediante. Você lê como mais uma parte do jornal, não com sobressalto. Um dia ou outro vai ter uma decisão, uma denúncia, algo divertido, mas o cotidiano da política não tem aquela efervescência, aquela paixão produzida sobretudo entre 2013 e as duas últimas eleições. Bolsonaro aumentou muito a temperatura. A chegada de Lula baixou e de repente a gente se vê de volta a 1998, a 2004. É como uma volta no tempo. A política não sai de cena, mas não tem mais esse caráter de excepcionalidade. Nos anos 2000, 2010, discutíamos crise de representação da política tradicional, esse distanciamento entre os partidos e a militância, as pessoas não tinham mais interesse em se engajar, houve declínio da filiação partidária no mundo inteiro, do comparecimento eleitoral. Quando veio a onda de ultra-direita, no caso do Brasil, essa crise antiga foi ultrapassada por uma de outra natureza. Aí era a crise da democracia, a quebra do regime. A excepcionalidade da última década, movida por um sentimento antipolítica, não começou na direita, mas no movimento juvenil. Depois, ganhou contornos de direita, na onda da Lava Jato, e, por fim, bolsonarísticos. Quando se elimina essa excepcionalidade e se volta à velha política, isso tudo arrefece.

A eleição de um dos Congressos mais conservadores da história pode ser, então, um sinal de que a direita encontrou sua representatividade?
Sim. Tínhamos um país curioso do ponto de vista da representação. Uma força, a esquerda, se assume como tal e sempre se assumiu, desde a redemocratização. Isso não só no campo do sistema partidário como também dos militantes. Do outro lado, o maior movimento de reação à esquerda nos anos 1980 não se chamou “direitão”, mas Centrão. E o Centrão da Constituinte era ideológico, com Roberto Campos, Delfim Netto, Jarbas Passarinho e outras figuras que estavam fazendo uma reação ao desenho constitucional. Mas naquele momento os partidos conservadores não se assumiram. O Brasil nunca teve um partido conservador ou de direita de nome. O partido da frente liberal, quando fez a reforma, se chamou DEM. O partido da direita atual é o Partido Liberal. Ficaria mais preciso se fosse Partido Conservador. O bolsonarismo é uma expressão de um movimento de opinião pública. Eu sempre gosto de lembrar que na década de 2010 os top 10 mais vendidos da Amazon em livros de não-ficção eram todos de direita. De Lobão a Guilherme Fiuza, passando por Olavo de Carvalho, era uma pilha de livros de direita. E isso se ampliou para o jornalismo, para outros campos. Agora temos não só um Congresso conservador como uma elite política que se assume de direita. E mais ideológica, no sentido de ter alguns políticos com proximidade com o mundo religioso, conservadores no comportamento.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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