A resiliência do sistema

As relações entre o Executivo e o Legislativo voltaram a seu estado natural pré-bolsonarismo, na avaliação da cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida. E o Judiciário deve ser o próximo a se normalizar

Maria Hermínia Tavares de Almeida acredita no sistema. Na sua capacidade de resistir a extremos, de se reacomodar. Se nosso Congresso não é um ideal nórdico de parcimônia e espírito público, bem, é o que temos e o que foi eleito democraticamente. Não há de se ficar imaginando um outro arranjo que não o da negociação política com ele. A cientista política, professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap, é pragmática ao analisar o Centrão e seus principais atores: não vê em Arthur Lira, presidente da Câmara e líder do segmento, nada de mais ideológico do que nos que o antecederam.

Nisso, está em sintonia com o próprio presidente Lula, que declarou em sua live semanal considerar “normal” a ideia de acolher o Centrão em seu governo. “Estamos de volta à dinâmica anterior ao bolsonarismo. Este governo terá de ter muito cuidado com negociações que envolvam atos ilícitos, rastros de corrupção. Se fizer isso, a oposição vem em cima. De resto, no sistema que se chama presidencialismo nada mudou”, diz Maria Hermínia, colunista da Folha de S. Paulo e autora de Anos de Ouro — Ensaios sobre a Democracia no Brasil. Ela analisa ainda a crise do campo da direita que resultou no bolsonarismo e o protagonismo de ministros do Supremo Tribunal Federal. Confira os principais trechos da entrevista.

Ainda que se tenha assentado que a negociação com o lado mais fisiológico da política é do jogo, assistir aos termos em que ela se dá gera grande frustração. Esse é mesmo o único caminho da governabilidade?
Sim, faz parte. O eleitorado elegeu esse Congresso, o governo não tem maioria e tem de formar uma base nele. É do jogo, não dá para inventar nenhuma fórmula. O presidencialismo funciona assim no Brasil. Isso quando é um presidente que tem projetos e sabe fazer negociação no Congresso. Preferíamos o Congresso, não sei, da Noruega? Sim, talvez. Mas não é. E isso é algo muito objetivo: o Congresso foi eleito da mesma forma que o presidente foi eleito, da mesma forma que sua base, minoritária, foi eleita. O que presidentes razoáveis em geral fazem, e é o que Lula vem fazendo, é reservar certas áreas importantes para a condução de sua política. A Fazenda, as áreas sociais. O resto tem de negociar com as forças parlamentares que estiverem dispostas a participar do governo.

Há uma sensação de que, mesmo contemplados, esses partidos não estão dando a contrapartida de apoio em votações relevantes?
Como não? Esse governo acabou de aprovar arcabouço fiscal e iniciar a reforma a a reforma tributária. Quem não está entregando o quê? Tudo em que o governo apostou ele levou. Teve aquele desarranjo dois meses atrás, em que o Congresso colocou uma agenda que não é do Executivo, como o Marco Temporal, mas de maneira geral o que o governo elegeu como realmente prioritário ele aprovou.

O governo Lula só perdeu no Congresso em pautas em que não há indícios de que fez real força para ganhar — provavelmente porque sabe que não pode apostar em tudo.

Parte do Centrão passou a mirar as pastas sociais. Isso pode ser sinal de que a conta do presidencialismo de coalizão está mais alta?
É muito cedo para dizer. Eles quiseram a saúde e Lula disse que ali, não. Agora, esse governo foi eleito com uma margem muito estreita de votos e sua base congressual não é grande. No passado também não era, agora é um pouquinho menor. Então, custa mais caro, sim. Mas por enquanto é tudo especulação. É um jogo em que as pessoas dizem “quero isso”, o outro responde “dou aquilo”, até as propostas fecharem.

Depois de quatro anos de bolsonarismo, houve, então, um retorno a um estado natural de coisas na política, sem maiores consequências?
Sim, está voltando para a dinâmica anterior. Mas, a menos que esse seja um governo suicida, ele terá de ter muito cuidado com negociações que envolvam atos ilícitos, rastros de corrupção. Se fizer isso, a oposição vem em cima. De resto, no sistema que se chama presidencialismo nada mudou. Bolsonaro não fez esse jogo, porque não era do seu interesse governar. Ele fez um acordo com o Congresso para não sofrer um impeachment. E o Congresso ganhou mais poderes. Mas esse Congresso empoderado vem de antes, da aprovação das emendas impositivas, em que elas deixaram de ser moeda de negociação.

O Centrão se sente mais confortável para assumir posições ideológicas à direita?
A porção ideológica que existe e se fortaleceu com Bolsonaro é pequena. O chamado Centrão é pragmático, existiu em todos os governos desde a redemocratização e quer continuar existindo. Qual é a diferença entre o (Arthur) Lira e quem esteve na sua posição em outros momentos? Ele não é mais ou menos ideológico que presidentes da Câmara anteriores. Não há qualquer indicação de que ele esteja fazendo isso por ideologia, porque o governo é de esquerda. Estão negociando como sempre negociaram. A ala mais ideológica, bolsonarista, existe, mas não se sabe a força dela. Há uma faixa considerável de eleitores que não são necessariamente bolsonaristas e que não gostam de votar no PT, votaram com Bolsonaro duas vezes por conta disso. E tem um grupo que se identificou fortemente com ele. Mas a organização desse movimento é precária. Tem uma estrutura nas redes, mas não muito mais. Isso precisa decantar. Há uma extrema direita no país consistente na casa dos 20% e neste momento ela é Bolsonaro. Mas o bolsonarismo não é como o peronismo... É outro fenômeno.

E a direita?
A direita é organizada. Ela tem canais de comunicação, que não são só as redes sociais. Tem canais de comunicação, jornais, revistas, organizações, lideranças. Tudo isso foi surgindo na década de 2010 e desembocou na eleição do Bolsonaro. E é muito cedo para saber como isso vai evoluir. Vamos conviver com uma extrema direita de tamanho razoável, entre um quinto e um quarto do eleitorado, e com uma parcela do eleitorado que gosta de uma direita que não precisa ser o Bolsonaro. Desde 2014, há uma parcela da população que sempre votará na alternativa que existir ao PT. O PT jamais ganhou no primeiro turno. Este é um país que, como qualquer outro, no plano nacional tem uma divisão profunda. Quem não gostava do PT se expressou durante muito tempo nos candidatos do PSDB, depois foi capitaneada pela extrema direita. Bolsonaro é bom de voto, tem capacidade de comunicação, é popular. Mas ele é muito ruim de organização. É uma liderança destrutiva. Quando se está na presidência é quase banal se fazer um partido e ele não fez. Aliás, ele não fez nenhum movimento no sentido de sedimentar essa base e garantir sua liderança.

De que maneira Lula pode se aproveitar disso?
Em qualquer país democrático, o governo que ganha a eleição não ganha o apoio de todo mundo. Não sei como vai ser. Mas quando se observa os anos 2010 para cá, houve um impeachment, a prisão do Lula, a derrota em 2018... A crise é da direita, porque a esquerda está igualzinha. Ela tem mais ou menos o mesmo tamanho, o mesmo partido organiza os outros. Foi a direita que se desorganizou, com o colapso da liderança do PSDB. Para mim, não está nada claro o que vai acontecer nesse campo e qual vai ser o papel de Bolsonaro.

Mas o governo está conseguindo atingir os setores mais identificados com Bolsonaro?
Esse governo estabeleceu uma relação civilizada com setores avessos a ele, vai funcionar agora como funcionou nos outros governos de Lula. Se sai a reforma tributária, o arcabouço fiscal e mais alguma outra coisa, as coisas se pacificam. O agronegócio só cresceu nos governos do PT. Isso não quer dizer que vai haver adesão, de forma alguma. Mas vai ter muito espaço para o governo se cacifar, se quiser avançar numa frente mais contemporânea, mais avançada na área ambiental econômica.

E o Desenrola vai ser um sucesso absoluto. É uma política muito bem bolada, as pessoas estão penduradas. Isso tem um impacto eleitoral importante, maior do que qualquer frase equivocada sobre a Venezuela, por exemplo, que só retroalimenta a direita.

Nós tratamos da relação do Executivo com o Legislativo. Como a senhora avalia o Judiciário no pós-bolsonarismo?
O sistema como um todo resistiu bem ao Bolsonaro. E o Supremo tem um papel central nessa resistência junto com o Tribunal Superior Eleitoral. Foi importante. Agora, está na hora de recuar. São pessoas com muito protagonismo individual. Nisso é bem diferente do Congresso. Tirando os presidentes da Câmara e do Senado, não se vê cada deputado com um protagonismo grande. No caso do Supremo, os 11 têm muito impacto, alguns mais do que outros. Alexandre de Moraes foi perfeito na resistência. Ele tem esse estilo mais agressivo, de que muitas pessoas não gostavam antes, especialmente as mais progressistas de São Paulo. Mas naquele momento funcionou. E agora é preciso ter mais cuidado. Seria melhor ser mais colegiado e que os juízes não pudessem tanto individualmente. Há uma discussão entre o juristas sobre os limites da defesa da democracia. É como se existissem dois modelos da ação do Judiciário: um americano, em que a ênfase é para a liberdade e os direitos individuais; e um alemão, não por acaso mais preocupado com a defesa das instituições democráticas. É um tema muito mais estrutural, vai além da conduta dos ministros do Supremo. Diz respeito a até onde o STF pode ir para defender a democracia. Mas nisso o Legislativo funciona muito bem, em não deixar passar a versão mais radical das propostas. O sistema funciona.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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