O Níger, a Rússia, a Argentina, o Brasil

Nada é mais imperialista no mundo atual do que a expansão russa pela África e sobre a Ucrânia. E nada mais míope do que ignorar a lição de que democracia é bom em abundância, tanto lá quanto aqui

Enquanto ainda circulavam pelas redes sociais piadas com a ideia de que Yevgeny Prigozhin surgiria morto num suicídio forjado, o líder do grupo mercenário Wagner reapareceu nas mesmas redes. Não estava no exílio anunciado de Belarus, tampouco havia fugido para algum canto obscuro do mundo. Pelo contrário. Vestindo jeans, camisa polo branca enfiada na calça e cinto de couro preto, Prigozhin apareceu sorridente num hotel cinco estrelas de São Petersburgo, a segunda capital da Rússia, cumprimentando um diplomata africano. Prigozhin estava lá, com toda saúde, numa foto publicada por seu lugar-tenente para os negócios subsaarianos, Dmitri Sytyi, em sua conta pessoal do Facebook. Como se fosse um instantâneo de família, um flagrante entre amigos. Horas depois, apareceu mais uma vez, conversando com um jornalista. Também africano. No mesmo hotel. Desta vez, foi no canal de Telegram do Grupo Wagner. Vladimir Putin, o presidente russo, se reunia com outros diplomatas a poucos quilômetros dali — São Petersburgo estava recebendo chefes de Estado e agentes de governo africanos para uma reunião de cúpula. E Prigozhin, exato um mês depois de ter liderado um motim que levou tanques de guerra a poucos quilômetros de Moscou, circulava candidamente pela mesma cidade. Intocado. Fazendo política.

Não há qualquer indício forte o bastante para afirmar que a Rússia tenha participado ou mesmo insuflado o golpe de Estado que ocorreu no Níger, em 26 de julho último. Mas logo que as notícias de que o presidente Mohamed Bazoum estava preso começaram a circular pela capital, Niamey, uma multidão portando bandeiras russas e cartazes citando Putin tomou a praça central em frente ao palácio. Em quantas cidades do mundo há pilhas de bandeiras russas, amontoadas nalgum armazém ou distribuídas por muitas casas, prontas para serem hasteadas no primeiro golpe militar? Se não foram levadas pela própria Rússia, no mínimo já faziam parte de um aceno que os golpistas pretendiam fazer após a tomada do poder para quem gostariam de ter como aliado.

O Níger, uma república muçulmana na África Ocidental com o dobro da área da França, 25 milhões de habitantes e onde uma dúzia de línguas distintas são faladas, era uma das democracias mais estáveis da região — estava prestes a completar 25 anos de eleições regulares contínuas. Por sessenta anos, até a independência, em 1958, foi justamente colônia francesa. Hoje, sua economia depende das exportações de urânio — é o principal fornecedor do minério para a União Europeia. A França, que mantém estreitas relações diplomáticas com a antiga colônia, tem ainda bases militares no país, depende de energia nuclear, baseada em urânio, para se energizar. É a nação europeia que mais depende de urânio. Os outros grandes fornecedores do mundo são Cazaquistão, Canadá, Austrália, Rússia e Uzbequistão. Canadá e Austrália, embora forneçam para a União Europeia, concentram suas exportações nos Estados Unidos. Teriam dificuldade de cobrir a quantidade que vem do Níger. E, como o Níger, os outros fornecedores agora estão todos sob a esfera de influência russa.

O Grupo Wagner já exerce pesada influência política na Líbia, na República Centro-Africana, no Sudão e no Mali. Dois fazem fronteira com o Níger. Se o Chad caísse perante um golpe e se aproximasse de Moscou, a área sob influência ocuparia quase que uma faixa africana de costa a costa. Pois lá houve uma tentativa de golpe, que terminou frustrada, em 2021. Não é uma república segura.

A Rússia não tem nem recursos econômicos, nem militares, para substituir o que EUA e União Europeia oferecem a estes países. Mas não é esta a lógica habitual, do comércio exterior e do dinheiro de apoio, que dita a relação com o Wagner.

O que a companhia mercenária de Prigozhin oferece é um conjunto de serviços para governos. Militares que garantem proteção pessoal a golpistas, serviços de desinformação digital e consultoria política. Em troca, não pedem dinheiro. Pedem o direito de explorar recursos do país. Assim, empresas sob controle do Wagner retiram ouro do Sudão, RCA e Mali, diamantes da RCA e petróleo da Líbia. A parte civil do serviço, tanto o braço político quanto o de mineração, ficam a cargo de Dmitri Sytyi, o executivo de 34 anos que fotografou Prigozhin e depois postou a imagem em seu Facebook não tem quinze dias. Pelo Telegram, Prigozhin ainda em julho afirmou que está pronto para ajudar no instante em que for convocado pelos novos líderes do Níger. Pedirá em troca licença para exploração de urânio no país.

O espírito anticolonial é forte na sociedade desta faixa entre o sul do Saara e antes do território africano afunilar. Isto faz da Rússia simpática para muitos e dificulta imensamente as relações diplomáticas de países como França, Reino Unido, Bélgica. A rejeição não vem à toa — entre os séculos 19 e 20, os europeus deixaram um rastro de morte e confisco de recursos jamais compensados. Ainda assim, a atuação do Wagner não é em nada distinta. Por onde passa vêm denúncias de violência sexual, mortes, miséria — e confisco de recursos, tudo garantido pela relação promíscua com uma elite golpista que usurpa o poder político dos países. Quando o golpe de Estado ocorreu no Níger, as redes sociais do Chad se encheram de memes celebrando Putin e fazendo troça dos franceses, enquanto bandeiras russas tremularam também pelas ruas do país. Contrainformação e desinformação eram a especialidade de Vladimir Putin quando agente da KGB e, em sua versão digital, estão entre as especialidades do Wagner. Prigozhin é uma celebridade com imenso número de seguidores no Telegram e no VK, o Facebook russo.

É esta relação circular de mútua dependência que possivelmente explica por que Yevgeny Prigozhin estava em São Petersburgo, circulando livremente por um hotel cinco estrelas com sua camisa polo para dentro da calça jeans, a poucos quilômetros de Vladimir Putin, um mês após ter liderado um motim contra o Kremlin. Ele comanda algo parecido com o que foi a Companhia das Índias Ocidentais em tempos idos. É quem controla os negócios coloniais russos na África. Neste momento em que há pressão econômica e militar por conta da invasão da Ucrânia, a Rússia depende mais do que nunca desta fonte de recursos e de poder geopolítico. O Níger, seu urânio do qual a França depende, chega em boa hora.

Enquanto isso, em Brasília, o Itamaraty sob forte influência do ex-chanceler Celso Amorim compreende o mundo a partir de uma rivalidade entre as nações do BRICs de um lado, e do outro EUA, Europa, com talvez os aliados Canadá e Austrália. Neste jogo visto pelas lentes da política externa do governo Lula, a soma final é sempre zero. Quando um ganha, o outro necessariamente perde. A leitura pode parecer pragmática, mas carrega um forte viés ideológico. Carrega consigo, também, o ressentimento herdado da política colonial do século 19 e princípio do 20, seguido pelos desmandos do tempo da Guerra Fria. O ressentimento dificulta ganhar distância para enxergar o mundo pelo que é, hoje. Um mundo muito diferente onde, por exemplo, a Rússia já tem quatro colônias na África e está para anexar a quinta. Em que nada há de mais imperialista no mundo, hoje, do que sua tentativa de anexação da Ucrânia. Em que nenhum país estimula golpes de Estado e instabilidade democrática como aquele governado por Vladimir Putin.

A Rússia é um fator de instabilidade do mundo. Uma política externa que passa por observar EUA e União Europeia com desconfiança e busca proximidade com Moscou a qualquer custo é míope.

Fala muito sobre preconceitos passados e pouco a respeito dos desafios que o Brasil de fato tem. Precisa se desenvolver, precisa educar, precisa erguer uma economia verde e precisa, fundamentalmente, consolidar sua democracia. Nada disto está na lista das prioridades russas.

Não bastasse, o Brasil tem a legítima aspiração de liderar um bloco regional. Novamente os preconceitos ideológicos do Planalto se impuseram a este objetivo. Assim, mesmo perante o incômodo de quase todos os vizinhos, foi feita uma campanha ativa para fortalecer Venezuela e Nicarágua, duas ditaduras violentas que são governadas por amigos de quem está no poder. Agora, o vizinho mais importante diplomaticamente para o Brasil está para eleger um presidente que não ganhou à toa o apelido de el Loco. Javier Milei é um libertário econômico plenamente disposto a sacrificar suas convicções já extremistas para seduzir o eleitorado que flerta com o populismo reacionário. Por isso, insinua aqui um ataque ao aborto, ali repudia liberação de drogas. Promete tirar o governo da vida das pessoas, quer diminuir as ações de bem-estar social, numa nação em crise profunda, com pobreza farta, na qual muita gente já não tem faz muito acesso a qualquer apoio vindo do Estado. A raiva da sociedade é combustível para sua candidatura.

Muitos analistas argentinos consideram difícil Milei se eleger. Seus opositores lutam para estar no segundo turno pois acreditam que Milei é fácil de derrotar. Nos EUA, no Brasil, gente demais já acreditou em coisa parecida. Em essência, a promessa de Milei é a promessa de Bolsonaro, de Trump, conservadorismo social, Estado ausente e o fim da esquerda. Enquanto isso, o governo brasileiro trabalhou duro para promover a integração com o continente por um viés ideológico, identificando-se com o pior da esquerda na região.

A relação do Brasil com a Argentina é mais importante, do ponto de vista econômico, para eles do que para nós. Mas é má notícia, para a estabilidade da democracia brasileira, que um perfil que se assemelha a Bolsonaro esteja na presidência lá. Essas coisas contagiam. Para qualquer democracia, esta é a lição de inúmeros autores que vão de John Rawls a Francis Fukuyama, o melhor é haver mais democracias no mundo. Política, pois, acontece mesmo por contágio. Quanto maior o número de democracias, mais democracias. Quanto melhores as democracias, mais melhores democracias. Se o jogo do mundo fosse um de soma zero, o aumento da população levaria a fome e pobreza. A maior democratização dos últimos quarenta anos levou à prosperidade.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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