Edição de Sábado: O Exército visto por dentro

Numa caixa preta, de fechos e dobraduras douradas, revestida de vermelho, jazia um coqueiro de ouro. Ao menos naquele comecinho de janeiro, achava-se que era ouro. Na dúvida, melhor mandar avaliar. Na era digital, antes de qualquer exame físico, faz-se uma troca de fotos. Por WhatsApp. No reflexo da caixa preta, está a imagem de um homem calvo, idoso, sério, concentrado. Numa missão. É o general da reserva Mauro Lourena Cid. É uma prova num inquérito da Polícia Federal. É um registro difícil de negar, sequer minimizar. O Exército estava envolvido de forma incontornável na venda privada de um bem público. Era hora, nas palavras de um interlocutor da Força, de começar a "entregar as cabeças na tentativa de fazer o Exército parar de sangrar”.

O Alto Comando do Exército havia sido avisado na véspera, na noite de 10 de agosto, uma quinta-feira, de que a Polícia Federal faria uma operação mirando militares. Mergulhado no que já é considerada a mais extensa crise desde o fim da ditadura, o generalato previa mais um constrangimento às vistas de todos. Não imaginava, porém, a gravidade do que ocorreria na manhã seguinte. Policiais federais fizeram uma busca na residência de Lourena Cid, até ali um respeitado oficial de quatro estrelas. O reflexo na caixa e os detalhes do envolvimento de Lourena Cid e seu filho, o ex-ajudante de ordens e tenente-coronel Mauro Cid, numa investigação de esquema ilegal de vendas de presentes davam a dimensão do embaraço do qual o Exército tenta se desvencilhar. As minúcias do caso são muitas: a suspeita é que, atendendo a um pedido do filho, o general levou as esculturas — havia um barco dourado também — para serem avaliadas por lojas especializadas em janeiro deste ano em Miami, nos Estados Unidos. “Não valem nada. É, é... não é nem banhado, é latão”, decretaria Mauro Cid depois. Mas não só. Segundo a investigação, o dinheiro da venda de joias que valiam algo pro grupo passou pela conta do general.

Até se tornar alvo da PF, o general Lourena Cid vinha sendo amparado pelo Exército. Era defendido nos bastidores por colegas de farda, que tentavam poupar o oficial, separando o pai das suspeitas envolvendo o filho. Naquela sexta-feira, isso acabou. A crise mudou de patamar. Para blindar a instituição, a cúpula da Força optou por uma estratégia de individualizar as responsabilidades de militares, mesmo os de alta patente, investigados por inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF) e alvos da CPMI e da CPI do Distrito Federal que apuram os ataques golpistas de 8 de Janeiro. Pelos cálculos internos, ao menos 30 militares, da ativa e da reserva, foram citados ou estão envolvidos em investigações.

A tarefa de reconstruir a imagem da Força e as pontes institucionais é do atual comandante do Exército, general Tomás Paiva, nomeado por Lula em 21 de janeiro — 13 dias após os ataques contra a sede dos Três Poderes. Tomás ascendeu ao comando substituindo o general Júlio César Arruda, demitido com a justificativa de “fratura de confiança” após os atos golpistas. Naquela época, Arruda também resistia em impedir que o tenente-coronel Cid, braço direito de Bolsonaro, assumisse o 1º Batalhão de Ações e Comandos, unidade de Operações Especiais, em Goiânia.

Ao chegar ao topo do Exército, Tomás tomou medidas para atender o Palácio do Planalto, incluindo o bloqueio a Cid no comando em Goiânia, e assumiu o compromisso de “despolitizar” a Força, que hoje tem cerca de 205 mil integrantes na ativa. Já no dia 28 de fevereiro, ao divulgar suas diretrizes, o general escreveu querer o “fortalecimento da imagem do Exército como instituição de Estado, apolítica, apartidária, coesa, integrada à sociedade e em permanente estado de prontidão.” Se essas palavras soam familiares, é porque no dia 10 de agosto, aquela quinta do alerta sobre a operação da PF, Tomás redigiu a ordem fragmentária nº1, em que usa exatamente as mesmas. A ordem foi publicada somente no dia 18. Mas foi naquele turbilhão pré-Lourena Cid que Tomás sentiu que precisava reforçar para a tropa o comando de torná-la apolítica e coesa.

“O general Tomás, quando assumiu, fez sua diretriz para os quatro anos. A ordem fragmentária vem reforçar e detalhar aspectos dessa diretriz. O mais importante dessa ordem é a criação desse grupo de trabalho para tratar todos os assuntos, como a coesão, a família militar, moradia e salário”, disse um auxiliar próximo ao comandante do Exército. O grupo a que esse general se refere é o Grupo de Trabalho de Apoio à Gestão Institucional (GTAGI), sob coordenação do Estado Maior do Exército (EME), comandado pelo general Fernando Soares. “Não se trata de um gabinete de crise clássico. Até porque o Exército não tem o conhecimento de tudo o que está acontecendo, as investigações estão sob segredo de Justiça”, acrescenta o militar. Além disso, a cúpula entende que não tem como atuar disciplinarmente ou abrir um inquérito porque esses fatos não ocorreram dentro da instituição, embora os envolvidos sejam militares. “É um gabinete que vai adotar medidas para melhorar a informação para o público interno e externo, mostrar para a sociedade o que fazemos e que desvios são fatos de pessoas e não da instituição.”

Ex-ajudante de ordens dos presidentes Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, de quem se tornou bastante próximo, Tomás Paiva é considerado habilidoso e moderado politicamente. No governo do presidente Michel Temer, atuou como chefe de gabinete do general Eduardo Villas-Bôas, o então comandante do Exército que, às vésperas do julgamento de Lula em 2018, publicou um tuíte para mandar um recado ao Supremo. Tomás Paiva teria atuado para atenuar o tom daquela mensagem, segundo um aliado. Já no governo Bolsonaro, o general esteve à frente do Comando Militar do Sudeste e, inúmeras vezes, ciceroneou o ex-presidente no Hotel de Trânsito em São Paulo. A avaliação de Lula ao indicá-lo ao comando do Exército era de que Tomás manteve a neutralidade em todos os postos, sem se deixar contaminar pelo chefe político da ocasião.

Agora, Tomás é algodão entre cristais. Do lado esquerdo, os militares são acusados de leniência com os intentos golpistas de Bolsonaro e seus apoiadores. Do outro, à direita mais extrema, são criticados por não terem atendido aos apelos por uma intervenção militar. Uma pesquisa da Genial/Quaest apontou que o número de brasileiros que dizem confiar “muito” no Exército caiu de 43% para 33%. A comparação foi feita com resultados de um levantamento de dezembro de 2022. A sondagem mostrou que 36% dizem confiar “pouco” e 18% afirmam “não confiar”. O dado que mais chama atenção é que a queda da confiança foi mais acentuada entre eleitores do ex-presidente Bolsonaro. Neste grupo, o percentual dos que “confiam muito” despencou de 61% para 40%, e os que “não confiam” escalaram de 7% para 20%. É gente que foi insuflada, por anos, a acreditar que os militares tomariam o poder caso Bolsonaro perdesse.

Não tomaram, mas talvez muitos quisessem fazê-lo. Ao menos, essa é a percepção que ficou para a sociedade civil. Seguindo a instrução de individualizar responsabilidades, um general diz que a repercussão política dentro do Exército se restringia a Brasília, não era uma realidade nas unidades espalhadas pelo país. “A politização ocorre em certas pessoas que estavam próximas ao núcleo de poder. Isso, sim, aconteceu. Para alguns que estavam em Brasília e foram ocupar cargos no Executivo ocorreu a politização, para os demais não. A tropa não se politizou. Embora individualmente as pessoas tenham suas preferências, elas não deixaram de cumprir ordens porque uma autoridade é de direita ou esquerda.”

Ao negar a contaminação política da tropa, oficiais atribuem o desgaste à “generalização brilhante”. Esse é um conceito amplamente difundido nas Forças Armadas. Segundo o Manual de Operações Psicológicas do Exército, essa é uma técnica de propaganda para confundir a opinião pública com a "utilização de exageros e palavras com alta conotação emotiva, como paz, honra e liberdade, intimamente associadas com ideias de uso comum, sem que haja necessidade de clara definição desses conceitos na mente do público.” Não surpreendentemente essa tática passou a ser atribuída a comunistas pela direita. O general Braga Netto, chefe da Casa Civil e ministro da Defesa de Bolsonaro, chegou a usar a expressão na Câmara dos Deputados quando foi chamado a explicar a atuação do colega Eduardo Pazuello, general e ministro da Saúde. Braga Netto disse que atos em defesa de Bolsonaro, que pediam intervenção militar, eram demonstração de patriotismo. Quem dizia o contrário estaria usando a tática “socialista” da “generalização brilhante”, afirmou Braga Netto. “O senhor pega, no meio de uma multidão toda com bandeira amarela, uma ou duas pessoas que realmente fazem algo antidemocrático e generaliza."

Despolitizar indivíduos ou instituições não é algo trivial nem que se faça por decreto. Mesmo que se tente. Ainda durante o governo Bolsonaro, a participação de militares — incluindo da ativa — no Executivo levantou o debate de como criar travas para evitar a contaminação política das Forças. A jornalista Lydia Medeiros noticiou que o ministro das Relações Governamentais, Alexandre Padilha, tem em sua mesa uma proposta de emenda constitucional que proíbe que militares voltem aos postos após ocupar cargos políticos. O texto, segundo a colunista, teria partido do Ministério da Defesa. Ao Meio, militares afirmam que desconhecem discussão neste sentido e citam que a legislação atual já prevê que integrantes das Forças Armadas ao serem eleitos passam automaticamente para reserva, assim como comandante do Exército ao ser indicado pelo presidente da República.

Se não há forma clara de despolitizar as tropas, na prática, o grupo de generais e coronéis do gabinete da não-crise terá duas missões principais. A primeira delas é dedicar-se a discutir propostas de aumento de salário, proteção social e outras medidas que melhorem a vida de militares, em especial de baixa patente, descontentes com a diferença salarial com o alto escalão. A segunda é criar estratégias de se reconectar com a população, reforçando o caráter “mão amiga” presente do grito de Guerra do Exército. Ou seja, destacando ações do Exército nas diferentes regiões do país. “Não há duvida de que estamos sofrendo uma fricção à imagem, o Exército está sob holofotes ruins. Vamos reconstruir fazendo o que sempre fizemos, apoiando a população, cumprindo as tarefas de defesa da pátria e nas fronteiras, e mostrando o profissionalismo e lisura. Não adianta a gente querer que isso seja a curto prazo, pois não será” avalia um oficial. As primeiras reuniões do grupo estão marcadas para os dias 5 e 19 de setembro.

Enquanto isso, o comandante do Exército tem rodado o país visitando unidades militares. Desde que assumiu o comando, viaja pelo menos uma vez por semana na tentativa unir a Força, debelar focos de insatisfação e, consequentemente, insubordinação nas tropas. Foi desse exercício de escuta que decorreu o esforço para melhorar as condições de vida das baixas patentes.

Em outra frente, auxiliado pelo ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, o general Tomás busca interlocução com outros atores da República. Nesta semana, o presidente da CPMI dos atos golpistas, o deputado Arthur Maia (MDB-BA), esteve no Quartel-General em uma reunião com o Tomás e Múcio. O encontro teria sido solicitado pelo parlamentar. Ao deixar o QG, Maia defendeu a instituição e repetiu o discurso do Exército de que os desvios são individuais. “A condição individual de alguns membros não diminui o papel das Forças Armadas. Houve sim, dentro do Exército, pessoas que queriam manifestar sentimento contra a democracia. Não Exército como instituição, mas pessoas físicas.”

Nesta sexta-feira, dia 25, a cerimônia do Dia do Exército foi acompanhada pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes, responsável pelos inquéritos que miram o ex-presidente Bolsonaro e militares próximos, e pelo diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues. O convite aos dois foi feito por intermédio do ministro da Defesa. Em seu discurso, o comandante prometeu ser severo com “desvios de conduta”, reforçando o recado de que não haverá blindagem a militares. “Esse comportamento coletivo não se coaduna com eventuais desvios de conduta, que são repudiados e corrigidos, a exemplo do que fez Caxias, o forjador do caráter militar brasileiro”, disse Tomás Paiva. A ordem é clara. A missão, difícil.

*Jussara Soares é repórter de política em Brasília. Passou pelo Globo, Estadão e Época, entre outros. Nos últimos anos, dedicou-se à cobertura do governo Bolsonaro, da direita e das Forças Armadas

A serviço da dignidade

O ano era 2003. Terrorismo era palavra frequente no noticiário internacional, que registrava atentados quase diariamente. Os americanos lideravam a ocupação do Afeganistão, iniciada em outubro de 2001, como resposta aos ataques de 11 de Setembro contra o World Trade Center e o Pentágono. E a resistência, personificada na Al Qaeda, respondia recorrendo ao terror. No Iraque, Saddam Hussein havia sido derrubado devido às ameaças de seu arsenal de armas de destruição de massa — desmentida anos depois — em ação capitaneada por Estados Unidos e Reino Unido a partir de 20 de março de 2003. Em 19 de agosto daquele ano, um ataque suicida chocou o mundo: um caminhão-bomba explodiu na representação da ONU em Bagdá, abreviando a vida do brasileiro Sergio Vieira de Mello, que dedicou 34 de seus 55 anos às Nações Unidas.

O ataque ao Hotel do Canal, às 16h27 (hora local), foi o maior já realizado contra funcionários da ONU. Além do brasileiro, 21 pessoas morreram e 150 ficaram feridas, incluindo sua noiva, a economista argentina Carolina Larriera. Sergio — era assim, pelo primeiro nome, que ele era chamado pelo então secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan — não morreu de imediato. Sem equipamentos adequados para o resgate das vítimas, ele agonizou por quase três horas sob uma montanha de escombros. Não resistiu aos ferimentos. Em um mundo ainda sem redes sociais, o drama foi acompanhado por rádios, jornais online e TVs. A CNN confirmou sua morte às 21h24 do Iraque, 13h24 em Brasília.

Vinte anos depois desse fatídico episódio — cuja data foi transformada pela ONU no Dia Mundial Humanitário —, o brasileiro segue sendo lembrado por sua dedicação à diplomacia e, principalmente, aos direitos humanos. Sergio fez toda sua carreira na ONU. Era um servidor internacional e, sobretudo, um trabalhador humanitário. Sua história na entidade começou aos 21 anos, logo que saiu do curso de Filosofia na Sorbonne. Como participou das manifestações estudantis de 1968 em Paris, voltar ao Brasil em plena ditadura não era uma opção. Seguiu para Genebra. Foi recebido por um amigo do amigo de seu pai, o diplomata Arnaldo Vieira de Mello, cassado pelos militares em 1964. Pediu um emprego, mas não conseguiu. “Sinto muito, Sergio. A ONU se beneficia de todas as profissões que existem sob o sol, exceto a de filósofo”, relata a jornalista e diplomata Samantha Power, na biografia O Homem que Queria Salvar o Mundo. Dias depois, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) abriu uma vaga. E ele não desperdiçou.

Por três décadas, entre 1969 e 2003, atuou nos mais complicados ambientes, combinando habilidades diplomáticas com técnicas de negociação. Era um homem de ação. Queria fazer a diferença. Além do Iraque, passou por países como Paquistão Oriental, Chipre, Peru, Argentina, Líbano, Camboja, Bósnia, Kosovo e Timor-Leste. Em um vídeo de 2002, de boas-vindas a novos funcionários da ONU, ressaltou a importância do trabalho fora dos gabinetes: “Nunca se esqueçam de que os verdadeiros desafios e as verdadeiras recompensas de servir à ONU estão no campo, onde as pessoas estão sofrendo, onde as pessoas precisam de vocês”.

Hoje, com cerca de 100 milhões de refugiados e deslocados, vivemos a maior crise humanitária desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Síria, Iêmen, Ucrânia, Venezuela são alguns dos países envolvidos nesse cenário de grande movimentação populacional. Além disso, enfrentaremos cada vez mais questões nesse sentido em função das mudanças climáticas. Para Monique Sochaczewski, professora do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), uma figura como Sergio seria essencial para enfrentar tais desafios.

“Era uma pessoa do campo e falava muito sobre isso. E defendia práticas como sempre aparecer bem vestido, mesmo em uma situação caótica, porque achava que era necessário mostrar respeito à dignidade humana”, explica a acadêmica. “Também faz muita falta porque a gente vê uma deterioração da governança internacional. Sergio poderia ter chegado a ser um secretário-geral? Ele era muito político. A inspiração dele como trabalhador humanitário é importante ele ganhou uma capacidade de articulação política internacional que faz falta no mundo de hoje.”

Sergio chegou ao cargo de alto comissário para os Direitos Humanos (ACNUDH), o mais alto posto da instituição já ocupado por um brasileiro. Muito próximo a Annan, seu nome, como mencionado por Monique, chegou a ser citado como possível secretário-geral da ONU no futuro. “Nesse modelo de atuação de diplomacia internacional, Sergio Vieira de Mello é incomparável. É muito impressionante tudo o que ele fez, com essa trajetória e relevância. O Brasil nunca mais teve alguém nesse estilo. Ele é meio insubstituível”, afirma um diplomata brasileiro.

Sergio foi para o Iraque como enviado especial de Annan, para atuar na reconstrução de um Estado sem governo e sob ocupação americana. Acompanhado de Carolina, ele queria ficar apenas quatro meses no país. Na sua última missão, não era a segurança que o preocupava, mas a soberania. Ele notou isso logo que chegou ao Iraque, em junho de 2003, em conversas com líderes políticos e religiosos. Só haveria uma redução do senso de humilhação, que alimentava a resistência, se os iraquianos começassem a sentir que a ocupação terminaria rapidamente. Por isso, ele pressionava os americanos a nomear um conselho para governar o país interinamente de modo que os próprios iraquianos pudessem atuar por eleições livres e pelo fim da ocupação. Mas isso não ocorreu.

Essa preocupação de Sergio com uma rápida devolução do país aos iraquianos era descartada pelos islâmicos radicais, que o consideravam um infiel. Nota emitida no dia do atentado por uma brigada da Al Qaeda chamava-o de “criminoso condenado e representante pessoal do criminoso e escravo da América”, em referência a Annan. Seu feito mais notável, a consolidação da paz e da democracia no Timor-Leste, após quase 25 anos de ocupação indonésia, na perspectiva extremista, tornava-o agente do desmembramento de um país islâmico em nome do cristianismo. Em entrevista ao UOL, Carolina, viúva de Sergio, que era funcionária da ONU e sobreviveu ao atentado, diz que as famílias das vítimas jamais foram informadas sobre os resultados das investigações internas sobre o atentado.

A ONU acabou reduzindo sua presença no Iraque após um outro atentado, em setembro de 2003. E a ocupação, iniciada em 20 de março de 2003, só chegou ao fim em 2011. Ainda hoje, o país pena para se restabelecer plenamente. “A invasão americana ao Iraque abriu as portas para grupos insurgentes que vão derivar no Estado Islâmico. Esperava-se que Sergio fizesse algo parecido com o que fez no Timor-Leste, em termos de reconstrução. Mas o panorama era muito diferente”, afirma Monique. “Ele é bem simbólico por ter sido um homem da ONU até o fim. Mas também mostra os limites do que poderia ter feito de diferença ali no Iraque.”

O legado de Sergio foi mais conhecido pelos brasileiros após sua morte. Sua história é retomada de tempos em tempos. Em 2020, a Netflix lançou a cinebiografia Sergio, protagonizada por Wagner Moura. Antes disso, o diretor do filme, Greg Barker, lançou um documentário com o mesmo nome.

“Não há qualquer outro brasileiro contemporâneo que se compare ao tamanho do Sergio Vieira de Mello nas relações internacionais. Em termos globais, a posição dele era maior. O que ele alcançou foi maior. A gente tem o Celso Amorim, conhecido e respeitado no mundo inteiro, mas que tem um viés mais político. É diferente do que era o Sergio”, diz uma fonte do Itamaraty.

Sua história inspira Monique ao lecionar a 48 alunos — a maioria deve ter nascido após a morte do brasileiro — a disciplina Ajuda Humanitária, que é optativa para os cursos de Direito e Relações Internacionais do IDP. Com a professora Nathalia Quintiliano, que como Sergio tem experiência humanitária no campo, ela apresenta toda a cultura do humanitarismo, começando com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, passando pela centralidade do brasileiro nessa área.

“Chamo para mim um papel de reforçar a relevância dele por vários aspectos: um funcionário da ONU exemplar, mas também um brasileiro que chegou a uma posição tão importante. Além disso, ainda temos pouca tradição de ajuda humanitária brasileira. Muitas instituições de ajuda humanitária internacional já me procuraram dizendo que querem mais brasileiros. Em que medida a figura dele não é um símbolo de algo que o Brasil teria a oferecer nessa área, essa capacidade de falar com vários níveis sociais, várias culturas?”, indaga.

O Centro Sergio Vieira de Mello, fundado em 2008 por Carolina e pela mãe do brasileiro, dona Gilda Vieira de Mello, inspira novas gerações de jovens e trabalha na democratização do ensino da diplomacia para que pessoas sem acesso possam desenvolver atributos exigidos pelo mercado de trabalho. “Jovens sonham com seguir o caminho no mundo internacional. Valores como a defesa da verdade até o final e dignidade humana, são princípios inspirados na nossa história, mais atuais do que nunca”, disse ao UOL.

O périplo de um pai

Twinkle, twinkle little star. How I wonder what you are”, ouvia o vovô John Shipton, dentro do trem, com os olhos marejados e fixos na tela do celular. Quem cantarolava era Gabriel, um de seus netos, então com dois anos. O menino encantava o avô com a popular canção de ninar. O vídeo lhe havia sido enviado pela nora, a advogada Stella Morris. Gabriel é filho de Stella com Julian Assange, o fundador do site Wikileaks. Assange está preso no Reino Unido desde 2019 — e esteve detido na embaixada do Equador em Londres por outros sete anos antes disso. Os Estados Unidos solicitaram sua extradição para que ele responda, em território americano, por 18 acusações de crimes de conspiração, espionagem, e que podem levar a até 175 anos de prisão. Shipton anda o mundo buscando apoio para tirar o filho da cadeia e evitar que ele vá aos EUA.

Ao que tudo indica, Assange esteve mais perto da liberdade no governo do republicano Donald Trump do que está hoje, no governo do democrata Joe Biden. Enquanto assessores de Trump supostamente chegaram a negociar um perdão para Assange, a esperança em Biden se esvaiu antes de completar um mês de seu governo. De acordo com a defesa de Assange, em 2017, Trump estaria pronto a perdoá-lo em troca de um testemunho do ativista de que o vazamento de e-mails de democratas na eleição de 2016 não tinha nada a ver com os russos. Trump negou essa disposição — embora tenha declarado reiteradamente seu amor pelo Wikileaks, plataforma onde os e-mails de Hillary Clinton e Bernie Sanders, entre outros, foram divulgados. A Casa Branca seguiu pedindo a extradição de Assange. Em janeiro de 2021, uma juíza britânica chegou a negar o pedido. Mas o governo Biden recorreu. Em junho de 2022, o Reino Unido determinou a devolução de Assange aos EUA.

John Shipton tinha, na transição entre governos, a expectativa de que Biden inauguraria um período mais democrático e isso beneficiasse a causa de seu filho. “Naquela época, o contexto de um novo governo apontava que havia indícios de retirada das acusações contra Julian. Porém, isso acabou por se revelar ser falso”, disse Shipton, em entrevista ao Meio. O pai do ativista chegou a argumentar publicamente que o caso de seu filho envergonha os EUA, país que tem na liberdade de expressão, coração da argumentação em defesa de Assange, uma enorme bandeira. Mas a invasão ao Capitólio, as evidências de interferência russa nas campanhas presidenciais e o contra-argumento de que Assange vazou documentos que colocaram a vida de cidadãos americanos em risco tornaram Biden insensível ao pleito.

Agora, a campanha “Free Assange” tenta entrar na pauta das eleições americanas do ano que vem. Shipton, por sua vez, tem mapeado os possíveis apoios pela liberdade do filho. A campanha ainda está na fase de escolha dos candidatos dentro dos partidos, mas Shipton já exibe um leque de apoios que vai da extrema-direita aos mais progressistas à esquerda. “Vivek Ramaswamy, que tem se colocado como candidato republicano, tem dito que soltará Julian, caso seja eleito. Robert Kennedy Jr. disse que, caso seja eleito, soltará Julian. Cornel West, um dos candidatos do Partido Verde, disse que, caso seja eleito, soltará Julian. Marianne Williamson, outra candidata do partido Democrata, disse que soltará Julian. Então, a partir disso, concluímos que o desejo de Julian por sua liberdade será uma questão central nas próximas eleições nos Estados Unidos.”

Mesmo com o passado de decepção com Biden, a família voltou a pedir clemência ao presidente. Mas a campanha pela liberdade de Assange se dá em um contexto ainda mais adverso, em que há uma sanha de punir Trump exatamente por dar um tratamento inadequado a documentos secretos que ele teria levado quando deixou a presidência. Mais do que nunca, o assunto segurança de Estado, que sempre foi caro aos americanos, está aceso.

Shipton passou por Brasília para lançar o documentário Ithaka: A Luta de Um Pai, que conta a saga da família para livrar o australiano da prisão. Dirigido por Ben Lawrence, o filme estreou no Festival de Sydney em novembro de 2021 e entra em cartaz nos cinemas brasileiros na próxima quinta-feira, dia 31. Na capital, ele se reuniu com autoridades nos gabinetes do Ministério de Direitos Humanos e, no Planalto, houve encontro com deputados e movimentos sociais de esquerda. “O povo da América do Sul sabe melhor que qualquer um o quanto é importante ter a capacidade para buscar asilo de um Estado que extrapolou seus poderes”, disse Shipton ao Meio. Lula, que já defendeu Assange, sabia da visita dele ao país e fará uma declaração após voltar da África do Sul, segundo a presidente do PT, Gleisi Hoffmann. “Estou aqui, sabe, principalmente para agradecer ao Brasil, e agradecer ao presidente Lula, uma figura mundial, ilustre, que é reconhecido mundo afora.”

Ao mesmo tempo em que busca uma conciliação com presidentes dos EUA, Shipton é bastante contundente nas críticas que faz à política externa do país. “É grotesco e obsceno que os Estados Unidos e seus aliados tenham causado 67 milhões de mortes no Oriente Médio em 20 anos. É grotesco e revelador que as autoridades americanas queiram manter Julian preso, avaliando que ele possa causar prejuízos.” Shipton ainda citou o caso de espionagem por parte da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos EUA sobre as comunicações da então presidente Dilma Rousseff, em 2015. “Hipocrisia é o nome. Eles dirão qualquer coisa para avançarem em seus crimes. Não importa se tem fundamento, não importa se destrói, por exemplo, um país inteiro. Não importa se prejudica a presidência de Dilma; se leva um país à falência; eles não se importam. Eles se importam apenas em impor sua hegemonia. Este é seu objetivo."

Ahsoka, quem?

O caro leitor tem simpatia por Star Wars, viu os nove longas da história principal, sabe a diferença entre um wookie e um ewok, mas não chega a ser um “fã-nático”. Acaba de fazer uma assinatura da Disney+ e decide explorar as séries da franquia a partir da mais nova, Ahsoka, que estreou na última terça-feira. Eis que, com dez minutos do piloto, está mais perdido que um stormtrooper num stand de tiro. Quem são essas pessoas? Que trama é essa? Onde estão os personagens clássicos? Aqueles troços nas cabeças das protagonistas são só enfeite?

Calma, angustiado padawan. O Meio está aqui para levá-lo ao lado luminoso da Força. Ou pelo menos para botar alguma ordem nessa barafunda de nomes, planetas e apliques cranianos.

A confusão é compreensível. Os personagens principais de Ahsoka jamais entraram nos filmes; a maioria foi apresentada em duas séries animadas, também disponíveis no Disney+, The Clone Wars e Rebels. A primeira se passa entre os filmes 2 e 3 (ordem da numeração, não de lançamento), focada nos Jedi Anakin Skywalker, futuro Darth Vader, e Obi-Wan Kenobi durante a guerra contra o exército de droides. A segunda acompanha um grupo de resistentes enfrentando o Império paralelamente aos filmes 4, 5 e 6. Como na Marvel, parte-se do princípio de que o público conhece esses títulos, sem precisar de apresentações.

Mas, para facilitar, oferecemos um rápido glossário dos personagens e do momento da nova série.

Tempo: Ahsoka se passa nove anos depois dos acontecimento de O Retorno de Jedi e cerca de 20 anos antes da última trilogia. O Império caiu, e os antigos rebeldes formaram a Nova República, mas ainda têm de lidar com forças imperiais dispersas e quintas-colunas na própria estrutura. É contemporânea das séries O Mandaloriano e O Livro de Boba Fett, nas quais a personagem fez participações.

Ahsoka Tano (Rosario Dawson): A personagem-título foi apresentada ao público no longa de animação The Clone Wars (2008), tornando-se fixa nas temporadas de 3 a 7 da série. Uma troguta do planeta Shili, ela tinha 14 anos e foi designada padawan (aprendiz) Jedi de Anakin. O objetivo, tanto do mestre Yoda quanto dos roteiristas, era fazer com que ele amadurecesse com a responsabilidade de treinar a menina — tolinhos. No fim da série, ela consegue escapar do massacre dos Jedi pelo imperador e por seu antigo mestre e cai na clandestinidade, reaparecendo, 14 anos mais velha, na série Rebels. Nessa fase, ela é uma agente da Rebelião, e seus dois sabres de luz são brancos, indicando que ela não se considera mais uma Jedi, cujos sabres têm diversas cores, mas não se tornou uma Sith, os seguidores do lado sombrio da Força, que portam sabres vermelhos. Embora na nova série ela esteja reconciliada com a recriada Ordem Jedi, seus sabres permanecem brancos.

Hera Syndulla (Mary Elizabeth Winstead): Agora uma general da Nova República, essa twi’lek do planeta Ryloth era capitã da nave Fantasma, o veículo dos jovens rebeldes de, bem, Rebels. É a mesma nave usada agora por Ahsoka na série. Filha de um importante general que resiste ao Império em seu planeta natal, ela montou seu bando com o Jedi Kanan Jarrus, com quem tem um filho. Com a morte do companheiro, assumiu sozinha a liderança do grupo, incorporado à Aliança Rebelde, da qual Hera se tornou uma das líderes mais combativas e eficientes. Uma curiosidade: Mary Elizabeth Winstead, a atriz que a interpreta, é casada com Ewan “Obi-Wan Kenobi” McGregor.

Sabine Wren (Natasha Liu Bordizzo): Uma humana criada na tradição guerreira de Mandalore (os mandalorianos são antes uma cultura que uma raça), Sabine era a armeira da Fantasma, tendo cursado a Academia Imperial antes de descobrir para que as máquinas que construía seriam usadas. Artista de talento, vê tudo, do próprio corpo às paredes da nave, como uma tela. Sua marca é um pássaro de asas abertas numa representação da liberdade, o que acabou se tornando o símbolo da Aliança e da Nova República. Apesar da rígida criação mandaloriana, é pouco afeita a regras. A nova série mostra que, após o fim da história de Rebels, Sabine se tornou padawan de Ahsoka, mas as duas se separam antes de o treinamento ser concluído. Fica implícito que houve um relacionamento amoroso entre elas, embora, em Rebels, a mandaloriana tivesse um interesse romântico no personagem a seguir.

Ezra Bridger (Eman Esfandi): Protagonista de Rebels, é um jovem padawan que também escapa do expurgo imperial e acaba acolhido pela tripulação da Fantasma. Humano do planeta Lothal, onde se passa a maior parte da série animada e começa Ahsoka, tem uma grande conexão com a Força e com seres vivos em geral. Treinado por Kanan Jarrus, torna-se um Jedi completo e um líder rebelde, especialmente dedicado à libertação de seu mundo. Na batalha final, ele desaparece quando a nave de seu antagonista é lançada no espaço desconhecido. A possibilidade de encontrá-lo é o que motiva Sabine a reatar com sua antiga mestra.

Grão Almirante Thrawn (Lars Mikkelsen): Ao lado de Darth Vader, era considerado pelo imperador Palpatine seu mais importante servo, além de ser um dos raros não-humanos a subir na hierarquia da frota imperial. Com sua pele azul e seus olhos vermelhos, é um chiss do planeta Rentor, além dos limites conhecidos da galáxia. Adere ao Império para proteger seu povo de uma raça inimiga e se revela um estrategista brilhante e um conquistador cruel, encarregado de debelar de vez a resistência em Lothal. Na batalha final desse conflito, o Jedi Ezra Bridger, que enfrenta Thrawn no cruzador deste, usa seus poderes para convocar criaturas gigantescas que vivem no espaço profundo. Estas cercam a nave e a lançam pelo hiperespaço para algum lugar desconhecido e inacessível com os dois adversários a bordo. Os vilões em Ahsoka trabalham para trazer o Grão Almirante de volta e reconstruir o Império.

Huyang (voz de David Tenant): Um droide criado há mais de 25 mil anos e que serviu por séculos à Ordem Jedi, especialmente ajudando padawans no ritual em que constroem seus próprios sabres de luz. Foi apresentado na quinta temporada de Clone Wars numa aventura com Ahsoka e outros aspirantes a Jedi, criando um forte vínculo com ela. Na série, é seu principal acompanhante.

Com essas informações, já é possível mergulhar sem medo em Ahsoka e ainda fazer expressão de connoisseur. E se o leitor quiser conferir as séries animadas, mas não tem tempo ou paciência para encarar todas as temporadas, aqui está uma lista de 11 episódios essenciais.

Que a Força esteja com você.

Donald Trump e repolho. Os leitores do Meio têm realmente interesses diversos — ou não. Os mais clicados da semana são:

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2. Meio: Você conhece o leitor do Meio? Responda nossa pesquisa anual!

3. g1: As fotos do Cristo sob raios.

4. Panelinha: Um delicioso repolho assado com parmesão.

5. Panelinha: Refogado de alho e cebola para congelar.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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