Edição de Sábado: As voltas que o mundo de Lula dá

Em Nova York, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva estava especialmente bem-humorado na noite de terça-feira. Voltou para o hotel e, ao passar pelo saguão, aproximou-se, sorridente, de um bloco de jornalistas que insistia por uma entrevista. Já chegou se justificando. Dando batidinhas no relógio de pulso, ponderou que já era tarde e prometeu dar atenção aos repórteres no dia seguinte. Houve reclamações — afinal, Lula não havia, em momento algum da viagem, atendido a imprensa. Antes de pegar o elevador, Lula fez uma provocação. “Eu quero saber se vocês gostaram do discurso.” Repórter costuma só replicar com perguntas: “O senhor gostou? Como foi a recepção?”. E Lula, orgulhoso: “Eu gostei. Fui eu que fiz”, ele riu.

O tal discurso havia sido proferido pela manhã, na abertura da 78ª reunião da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Foi um texto medido, palavra por palavra. E o processo foi intenso. Foi Lula quem fez, mas não sozinho. Ghostwriters levavam versões ao presidente no intervalo das agendas e, a cada conferência, saíam com mais demandas. Não está bom, arruma aqui, muda o parágrafo de lugar, puxa outra ideia, redige diferente. Lula fez um pedido especial. Queria falar sobre a desigualdade “em todas as suas dimensões”: dentro dos países, históricas, sociais, econômicas e políticas. E pediu também um tom a mais para o final do texto. “A desigualdade precisa inspirar indignação.”

A intenção era chegar à ONU com uma marca, uma ideia que conversasse com aquela que ele havia levado à tribuna há 20 anos: a fome. Era preciso não cair na mesmice, apresentar um novo ângulo, capaz de envolver. A noção da desigualdade abarcava todas as mensagens. E essa foi a palavra que mais apareceu no texto: 14 vezes. “Indignação", quatro vezes. “Lula usou um discurso histórico seu (o do combate à desigualdade) para amalgamar tudo que falou. Usou essa ideia como fio condutor”, analisa, em conversa com o Meio, Hussein Kalout, cientista político, professor de Relações Internacionais e pesquisador de Harvard. O presidente falou da desigualdade como epicentro do desequilíbrio mundial. “Se você resolve o problema da desigualdade, seja no aspecto humano, predatório, social, político, nas assimetrias econômicas e financeiras, você consegue resolver boa parte do resto”, explica Kalout.

O Meio ouviu também Guilherme Casarões, cientista político e professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas. Para ele, Lula conseguiu fazer uma relação importante entre as crises que o mundo vive hoje e o tema da desigualdade. “O Brasil já falava isso 20 anos atrás, mas agora me parece que as questões que o país e o mundo vêm lidando são mais urgentes. E Lula conseguiu fazer esse vínculo de causa e efeito, numa avaliação muito correta.” Tanto Kalout quanto Casarões estavam em Nova York e acompanharam de perto as repercussões da atuação de Lula.

As canetas

Quando Lula respondeu aos jornalistas que havia gostado do próprio discurso, não disse que se tratava de uma autoria múltipla. Até a madrugada daquela terça, alguns auxiliares se ocuparam dos ajustes. Só em Nova York, o rascunho levado do Brasil passou por cinco reuniões, entremeando a carregada agenda que o presidente teve nos Estados Unidos, que incluiu jantares com empresários, dezenas de reuniões bilaterais, além da tradicional participação do Brasil na abertura dos debates dos presidentes, algo que ocorre desde 1947.

Pelo menos quatro pessoas trabalharam na confecção do texto que, depois, ainda passou pelo crivo do secretário de Imprensa, José Chrispiniano, e do chefe do cerimonial da Presidência da República, embaixador Fernando Igreja. Dos que deram a base para o discurso, o mais assíduo interlocutor de Lula é o embaixador Celso Amorim, assessor especial cuja sala fica no mesmo andar da do presidente no Palácio do Planalto. Amorim é amigo de muitos anos e filiado ao PT. Foi ministro de Relações Exteriores nos primeiros mandatos do petista e, em 2022, esteve o tempo todo ao seu lado, na pré-campanha e e na corrida presidencial. É de Amorim o tom de crítica ao “neoliberalismo”. “Muitos sucumbiram à tentação de substituir um neoliberalismo falido por um nacionalismo primitivo, conservador e autoritário”, dizia esse trecho.

Embora o embaixador seja o principal conselheiro de Lula nessa área, de acordo com pessoas próximas do presidente, engana-se quem pensa que o presidente não tem sua própria visão de política externa. “Os dois conversam de igual para igual”, disse uma fonte do governo.

Já o diplomata Audo Araújo Faleiro, da equipe de Amorim, vem cumprindo outro papel importante: o de fazer a mediação entre o pensamento de Amorim, de alinhamento à esquerda mundial e a abordagem a questões espinhosas, como Venezuela e anti-imperialismos, e o Itamaraty, cuja tradição é de não-alinhamento automático e isenção, comandado pelo embaixador Mauro Vieira. Interlocutores próximos ao presidente negam que haja embate entre os dois, mas admitem visões distintas de mundo.

Quando foi chanceler de Lula, de 2003 a 2010, tinha, a seu exemplo, a sombra de um assessor especial — Marco Aurélio Garcia, na época. Na disputa, era Amorim o mais ouvido por Lula. Ainda é. Mauro Vieira, que já foi chefe de gabinete de Amorim, não tem essa veia partidária e, do grupo de ghostwriters, é o interlocutor mais recente de Lula. Vieira também já foi embaixador nos Estados Unidos e na Argentina e chanceler durante o governo da presidente Dilma Rousseff. Na prática, Amorim seria o grande formulador da política externa de Lula e Vieira, o executor. Mas quando o assunto é discurso, no final das contas, embora o peso da influência de Amorim fique na casa dos 70%, quem arbitra é Lula, segundo uma fonte palaciana.

Argumentos fechados e acordados, eis que entra o escritor e jornalista José Rezende Junior. Ele se incumbe de dar a “alma de Lula” ao discurso. E dessa “alma”, em especial a atual, Resende entende. Já fazia isso na campanha, na pré-campanha e, antes, voluntariou-se para escrever cartas para sindicatos, entidades e associações, enquanto Lula estava na prisão, em Curitiba.

Na posse do petista, um bom exemplo de leitura de Rezende sobre o sentimento que o presidente desejava passar se traduziu na frase: “Não existem dois Brasis. Somos um único país, um único povo, uma grande nação”. Lula havia pedido a ele um tom que atendesse a necessidade de “unir o Brasil”, depois da polarização e da disputa acirrada com Jair Bolsonaro.

Segundo fontes do governo, no processo de construção do discurso, em Nova York, um dos auxiliares perguntou ao presidente o que ele queria dizer para se diferenciar do antecessor, considerado um completo desastre nos organismos multilaterais. E Lula disse que queria, com precisão, informar que não haveria subserviência do Brasil a qualquer potência. O objetivo era passar a mensagem de que o Brasil não quer ser hegemônico, mas também não aceitará submissão a nenhuma outra hegemonia. Lula queria um recado forte contra o “vira-latismo”. Na linguagem mais usual do presidente, ele costuma usar a frase “O Brasil não fala grosso com a Bolívia e nem fino com os Estados Unidos”.

Pessoas próximas do presidente dizem que ele costuma ter calafrios quando assiste a atitudes que considera subservientes, principalmente aos Estados Unidos, e costuma citar com frequência o episódio ocorrido há mais de duas décadas, em 2002, quando o então ministro Celso Lafer, chefe do Itamaraty no governo de Fernando Henrique Cardoso, precisou tirar os calçados ao passar por uma vistoria para entrar nos Estados Unidos. Era uma averiguação de segurança, depois que o inglês Richard Reid foi preso, tentando detonar explosivos em seu tênis num vôo entre Paris e Miami. A lista dos “chanceleres descalços” incluiu o brasileiro, o russo, Igor Ivanov, e a chanceler chilena, María Soledad Alvear Valenzuela.

Nesse contexto, entre as idas e vindas do discurso, iam se alterando a ordem, os sentidos, o peso de algumas ideias. Lula incluiu a Guerra da Ucrânia como mais um conflito em meio a tantos outros. A Ucrânia entrou por último na ordem dos parágrafos que faziam a defesa da “paz duradoura”, depois que Lula falou da Palestina, Haiti, Iêmen, Líbia, Burkina Faso, Gabão, Guiné-Conacri, Mali, Níger, Sudão e Guatemala.

A inversão da ordem dos parágrafos não foi aleatória. O tema da Ucrânia é sensível para Lula. Em uma entrevista nos Emirados Árabes, no mês de abril, quando ele voltava de uma viagem à China, o presidente brasileiro sugeriu a ambivalência de culpa pela guerra. Lula queria se livrar de vez desse desgaste. Desta vez, o presidente brasileiro não admitia errar e queria uma fala marcante. Para Hussein Kalout, Lula conseguiu, com o discurso, elevar seu prestígio e “se recuperar das arranhaduras impostas à sua imagem em função de declarações desencontradas e de recuos forçados”. “Isso demonstra que ele tem capacidade de poder exercer um papel preponderantemente positivo, se o quiser fazê-lo. Mas tem que ser com temperança e equilíbrio.”

Já Guilherme Casarões entende que “o caso da Ucrânia é totalmente novo para Lula. Ele foi salomônico demais, buscando encontrar uma resposta que ao mesmo tempo não sofresse um massacre do Ocidente, totalmente engajado na questão, e mantivesse uma boa relação com a Rússia, um parceiro importante, membro dos Brics”.

A nova ordem

Na opinião de Kalout, o discurso de Lula recupera a “dignidade”, perdida nos discursos do Brasil na ONU durante o governo de Jair Bolsonaro, quando só aconteciam “falas calamitosas”. “Foi um discurso sóbrio, equilibrado, consistente e marcante”. No entanto, é necessário esperar para saber se representará uma correção de rota na política externa brasileira, diante de desacertos que ele observou no primeiro semestre. “A política externa no primeiro período não teve substância. Foi uma política muito desconjuntada, e havia uma incompreensão de que a ordem internacional mudou e não dava para reeditar a política de 20 anos atrás”, observou.

Um exemplo de iniciativa que até o momento não deu resultado foi a tentativa de se recriar a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), anunciada por Lula no encontro organizado em Brasília no final de maio, com a presença de todos os chefes de Estado da região. “Isso é um momento de incompreensão do governo. É evidente que no entorno do presidente tem gente com uma visão boa de política externa, mas tem alguns com uma visão ainda nostálgica. Aí, depende de quem está sendo ouvido e em que hora”, ponderou.

Casarões pondera que as dificuldades de Lula se centraram na questão da Venezuela e ditaduras de esquerda na América Latina, como a Nicarágua, e da Ucrânia. "Essa é uma dificuldade histórica do PT, que tem uma relação com essas lideranças e regimes. Mas Lula não teve uma condução da política externa ruim no primeiro ano. O que houve foi uma dificuldade natural de um governo que acaba de chegar de compatibilizar agendas históricas, que estavam mais ou menos na inércia, com o mundo atual”.

Um outro ponto crucial da agenda externa de Lula no primeiro semestre foi a campanha para o uso de moedas alternativas ao dólar, numa disposição de recuperar relações com a China. Kalout não vê problemas nesse movimento, desde que o Brasil deixe sua postura clara diante da divisão mundial existente hoje. “É necessário separar a natureza das duas missões. Depois do hiato criado por Bolsonaro e das animosidades estabelecidas com a China, era necessária uma visita à China. Foi uma missão eminentemente comercial. Ao passo que a missão aos Estados Unidos tem um caráter essencialmente político. Portanto, não são coisas comparáveis”. Kalout aponta que, embora algumas declarações tenham sido interpretadas de excessiva simpatia à China, “essas interpretações podem ser equivocadas. Mas aí cabe, com o tempo, ir esclarecendo”.

Houve realmente um cuidado da diplomacia brasileira em evitar pautas divergentes com os Estados Unidos na reunião que Lula fez com o presidente Joe Biden. Aliás, a desenvoltura com que Lula e Biden conversaram em público sobre temas caros aos dois chegou a ser comemorada pelo governo. Os dois extrapolaram tempos de fala em um tema no qual Lula se sente absolutamente confortável: o trabalho. Os dois presidentes assinaram um acordo de parceria para melhorar as condições de trabalho em seus países. O acordo, para Biden, ocorre quando o país passa por um momento de greves. Já para Lula, representa um momento posterior às flexibilizações das relações pós-pandemia e a necessidade de se ter uma regulação mais moderna, que consiga dar conta dos novos ofícios.

O horizonte

Que o discurso de Lula na ONU foi bom quase todos concordam. Mas e depois? Criar indignação diante das desigualdades não é uma tarefa fácil. Mais difícil é colocar de pé mecanismos para reduzi-las. Depois de falar da fome, em 2003, Lula conseguiu desenvolver ações a longo prazo que tiveram efeito no Brasil. Agora, o desafio parece maior, porque a proposta mexe com fatores externos e com mudanças de paradigmas internacionais, inerentes ao capitalismo.

O tempo do discurso é diferente do tempo da política. E, para muitas perguntas sobre pontos da fala de Lula, ainda não existem respostas. “Vai ter reforma do Conselho de Segurança? Não se sabe quando. Isso depende de múltiplos atores. Vai ter reforma do sistema econômico? Isso vai depender da evolução do sistema internacional, da recomposição de forças. Tudo isso vai levar à união coletiva para o combate à desigualdade? Mas quem vai financiar isso? Quanto o Brasil está disposto a bancar? Quem vai bancar? E quem vai mandar no fundo de combate à desigualdade?”, questiona Kalout.

O próprio Brasil apresentou alguns caminhos. “Não só Lula falou da desigualdade como problema, mas ofereceu a solução, que é trabalhar em conjunto para promover o desenvolvimento, sobretudo nos países mais pobres”, aponta Casarões. Lula defendeu, no discurso, que os Brics surgiram em resposta a uma crise econômica que os países ricos não conseguiram resolver. E alertou que os objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), que começaram em 2015 como a mais ambiciosa agenda da ONU, pode se tornar um fracasso antológico se os países não se dispuserem a trabalhar juntos e combater as desigualdades.

O que se tem hoje de concreto é que o Brasil está incumbido de organizar o G20, principal fórum econômico internacional, e prometeu priorizar programas para inclusão social, redução da desigualdade, da fome e da pobreza, ações para frear o aquecimento global, entre outros pontos. Também há no horizonte do governo a realização da Conferência do Clima (COP-30). Isso até 2026, quando termina o mandato de Lula. “O Brasil tem que trabalhar. Mas trabalhar sozinho não funciona. Então, tem que articular, criar consenso. Isso num momento em que há um processo de fragmentação do sistema internacional.” Sinais trocados sobre uma eventual aliança vocacionada para um dos lados do embate global atual podem não ajudar. Discursos — e ações — bem trabalhados nos temas relevantes para todo o planeta, sim.

Propriedade improdutiva

É um cenário um tanto desolador. O prédio está fechado por cercas e tapumes. O mármore, antes refletor do intenso brilho do sol brasiliense, está caído, despedaçado e espalhado pelo chão do pilotis do Bloco K da Super Quadra Norte (SQN) 202. Não há mais canteiros com plantas, tão característicos nos prédios da capital. Na portaria, único ponto em que há sinais de movimentação, um molho de chaves jaz num prego, à vista, mas cercado pelo vidro temperado da cabine destinada à vigilância do local. Nas pilastras, enormes buracos dão uma pista das razões pelas quais aquela construção, uma das primeiras de Brasília, está jogada às traças; são falhas grandes, com algumas delas carcomendo metade das bases de sustentação do edifício. 

Há 24 apartamentos, todos desativados, inabitados. Olhando de fora, da calçada do Eixo L, o “eixinho de baixo”, que margeia o Eixo Rodoviário — uma das duas principais vias do Distrito Federal —, é possível ver um pouco do interior das unidades, tão maltratadas pela falta de manutenção quanto a área exterior. Paredes corroídas, fios soltos, aparelhos de ar-condicionado em estado tão precário que perigam cair nos transeuntes e muita, muita sujeira. Às costas do K, dentro da quadra residencial, há outro bloco com mais 24 unidades nessas condições. O L, virado para a comercial da 202 Norte — uma das mais requisitadas de Brasília, pela culinária e cultura —, está um pouco mais conservado. Mantém, ainda, o mármore esverdeado atapetando o piso da entrada e há menos tapumes. Os prédios estão vazios desde 2017, quando os ilustres moradores foram desalojados. 

Ilustres porque, nestes blocos, moravam apenas parlamentares. Os prédios pertencem à Câmara dos Deputados, e os 48 apartamentos deveriam receber legisladores que não têm residência no Distrito Federal. São imóveis com 235 metros quadrados, uma raridade em Brasília, terra em que metragens como essa são encontradas quase que exclusivamente em coberturas ou casas. Eles fazem parte dos 432 imóveis funcionais que a Casa baixa mantém para deputadas e deputados federais. Atualmente, são 369 ocupados. Há, ainda, outros 11 cedidos a senadores e quatro com políticos que estão na chefia de ministérios. Na contramão, os deputados Aécio Neves (PSDB-MG), Gleisi Hoffmann (PT-PR) e José Medeiros (PL-MT) moram em unidades do Senado.  

Cores e valores

Na movimentada 202 Norte, onde poucos apartamentos ficam disponíveis para aluguel por mais de duas semanas, as unidades desativadas há meia década já fazem parte do imaginário local. Trabalhadores e moradores da região classificam os blocos K e L como “os prédios fantasmas”. As crianças que brincam no parquinho em frente ao bloco L já criaram histórias que vão desde a ocupação por lobisomens à ameaça de espíritos agourentos. Os edifícios servem mesmo como ponto de referência para encontros ali perto: “estou atrás do bloco abandonado”, dizia uma jovem ao telefone numa segunda-feira qualquer. Alguns porteiros de outros blocos afirmam que já chegaram a expulsar usuários de drogas dos locais. Muitas mulheres evitam transitar por ali à noite, porque a iluminação das redondezas está prejudicada. Na quadra, onde há uma procura intensa por vagas de estacionamento, carros não podem parar próximos aos blocos para evitar eventuais avarias. 

Por ser um conjunto arquitetônico tombado pela Unesco como patrimônio cultural da humanidade, Brasília tem limitações e mais exigências técnicas nas obras a serem feitas no Plano Piloto. Mas essa não foi, ao menos tecnicamente, a razão para a demora na recuperação desses apartamentos. Apenas em 2022 a Câmara passou a olhar para as construções com espírito reformista. Já assinados e em execução, dois contratos foram firmados para recuperar as estruturas, que sofreram particularmente com as enxurradas desde a reforma do Estádio Nacional Mané Garrincha, obra que criou uma área impermeável numa elevação, fazendo as águas das chuvas descerem a toda velocidade em direção às quadras 200 e 400. Além desses blocos, o “I” e o “J”, também de propriedade da Câmara, têm comprometimentos na estrutura. Não estão completamente inabitáveis, mas também entraram nos acordos firmados pela Casa para recuperação das bases de edificação. Os contratos para apresentação de projetos das reformas estruturais e de divisão dos apartamentos — são 96 imóveis na soma dos quatro blocos com problemas e eles serão divididos ao meio, resultando em 192 habitações de 102 metros quadrados — têm valor superior a R$ 3 milhões. Cerca de R$ 1 milhão já foi executado. 

A previsão é que a primeira etapa dos reparos seja iniciada ainda em 2023, mas sem data específica para as primeiras marteladas. É a parte que equivale aos blocos K e L, os mais deteriorados. O I e o J entrarão em obras em 2025 e, conforme duas fontes da Coordenação de Patrimônio da Casa, é muito provável — pela demora no início das obras, que estão ainda em fase de projetos — que todos os 96 imóveis da 202 Norte fiquem fechados até lá, algo equivalente a um quinto do total disponibilizado pela Câmara aos parlamentares.   

Até a conclusão das obras, a Câmara segue arcando com custos colaterais. Os primeiros, mais óbvios, são relativos à segurança e um mínimo de manutenção para manter os edifícios de pé. Desde 2017, foram desembolsados mais de R$ 1,1 milhão com vigilância, água, energia e limpeza. É impossível aferir valores adicionais, pois os custos de segurança patrimonial, por exemplo, são diluídos entre todos os imóveis da Câmara. Outro custo se refere aos auxílios-moradia de R$ 4.253 mensais pagos, há seis anos, em três legislaturas diferentes, a cada parlamentar que poderia morar num desses apartamentos. Se todas as unidades dos blocos K e L da 202 Norte estivessem ocupados, seriam R$ 204 mil a menos por mês, numa conta linear, de padaria mesmo. 

Isso sem contar os gastos que virão pelo desgaste da fiação elétrica, elevadores, vidros e outros materiais básicos ao funcionamento de um prédio. Entrando de cabeça no mercado imobiliário, o boletim mais recente do Sindicato da Habitação, que reúne os maiores empresários do ramo imobiliário do DF, mostra que o preço para venda do metro quadrado na Asa Norte, de forma geral, era superior a R$ 17 mil em junho deste ano. E, no lado humano, de 2017 (quando os apartamentos foram interditados) a 2023, Brasília quase triplicou sua população em situação de rua, de 2.445 para quase 8 mil pessoas — a maior do Centro-Oeste. 

Presente e passado numa cidade jovem

A Câmara dos Deputados possui imóveis em outra quadra da Asa Norte, a 302, e em duas quadras da Asa Sul, a 111 e a 311. Em nenhuma delas há edifícios ou unidades em tão avançado grau de deterioração. O Meio questionou parlamentares e até mesmo servidores da Coordenação de Patrimônio do porquê apenas os apartamentos da 202 Norte estarem inabitáveis. Ninguém conseguiu responder com clareza. Um servidor apontou que poderia ser só descaso mesmo, o que causa espanto em se tratando da quadra mais próxima à Praça dos Três Poderes.

Enquanto as obras não começam, os vizinhos olham de esguelha para os prédios, que parecem escombros de uma cidade antiga. Só que Brasília tem apenas 63 anos. Ao contrário de cidades como Rio e São Paulo, na capital não há a mescla de ruínas com a vida cotidiana. “Não fizeram manutenção mesmo com todos os problemas depois da construção do Mané Garrincha”, aponta uma servidora envolvida com o processo. Numa Casa que já viveu problemas demais com funcionários fantasmas, os apartamentos “ocupados por espíritos” sequer assombram os reles mortais.

Tambores ancestrais da resistência

A vida nas fazendas de café do Vale do Paraíba (SP e RJ) durante a colônia e o império era tudo menos fácil, em particular para os africanos cativos e seus filhos e netos, igualmente escravizados. Privados da liberdade e da dignidade e expostos a uma rotina desumana de trabalho, eles tinham nas suas tradições culturais uma das poucas ferramentas de resistência. Uma delas, o jongo, dança e ritmo reconhecidos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio imaterial brasileiro, ainda floresce em comunidades do sul fluminense e no morro da Serrinha, no bairro carioca de Madureira, que se uniram para celebrar sua história no álbum Jongo do Vale do Café, que chega ao Spotify e a outras plataformas neste sábado.

Suas 32 faixas não são importantes somente pela beleza ancestral do ritmo, mas pelo trabalho de pesquisa e a própria realização. É o resultado de um trabalho de 30 anos feito pelo produtor musical Marcos André Carvalho, um apaixonado pelo jongo, diretor artístico e musical do álbum, ao lado de Thiago da Serrinha. Ele é integrante tanto do grupo de Madureira quanto dos grupos do Vale do Café, a parte fluminense do Vale do Paraíba e fez o levantamento dos pontos (canções).

As gravações, ele explica, aconteceram ao longo de uma semana ao ar livre no Quilombo São José, em Valença (RJ), uma comunidade de 300 pessoas, todas descendentes de dois casais trazidos escravizados de Angola para os cafezais da região. Um estúdio móvel foi montado no terreiro aberto de terra batida, com microfones aéreos em buracos no chão para captar o som dos tambores e direcionais para gravar os mais de 40 cantores. Além das cantadoras do São José, participaram as mestras jongueiras do Jongo do Pinheiral, na mesma região, incluindo Mestra Fatinha, uma expoente do gênero.

Alguns dos pontos remontam ao tempo do cativeiro e jamais foram gravados, sendo transmitidos oralmente por pretos-velhos e compilados por mestres e mestras como Fatinha e suas irmãs Meméia e Gracinha. Por isso e por virem de comunidades agrícolas do interior fluminense, a maioria trata de temas rurais, muitas vezes de forma bem-humorada, como em Mataram meu Carneiro e Não Lava Roupa, enquanto a ancestralidade africana é celebrada em Nasci na Angola e Eu Vim Aqui Pra Saravá.

Somente nas faixas da Serrinha é possível ouvir instrumentos de corda, incorporados quando, após a Abolição, jongueiros expulsos das fazendas migraram para o Rio de Janeiro. Nas demais, somente os tambores que caracterizam o gênero.

Angolano legítimo

Como é lembrado nas letras de alguns dos pontos, o jongo, também conhecido como caxambu e batuque, vem de Angola, dos antigos reinos de Ndongo e Kongo. É acompanhado fundamentalmente por dois a três tambores de madeira e couro reverenciados como entidades e pelas palmas dos cantadores e dançarinos dispostos em roda. Um solista puxa o ponto, acompanhado em coro pelos demais. A dança, muito livre e variada, tem como elemento comum a “umbigada”, uma batida de barriga com barriga na qual o solista desafia alguém do coro a substituí-lo na roda.

No tempo da escravidão, os pontos, muitas vezes com metáforas incompreensíveis para senhores e feitores, eram uma forma de comunicação entre os cativos. Sem terras suas para cultivar e expulsos das fazendas após a Abolição, muitos antigos cativos migraram para a capital, abrigando-se no que viriam a ser as primeiras favelas cariocas. Seu ritmo percussivo se encontrou com o samba de roda trazido do Recôncavo Baiano e, junto com outras influências, ajudou a formar o samba carioca. Clementina de Jesus (1901-1987), uma das vozes mais marcantes do samba, era, na verdade, uma jongueira oriunda do município de Valença, no mesmo Vale do Café dos quilombos registrados no álbum.

Assinante premium pode assistir às aulas introdutórias dos cursos

Mais um prêmio para você, assinante premium do Meio. As aulas introdutórias dos Cursos do Meio, ministradas por Pedro Doria e Christian Lynch, já estão disponíveis. Quer saber mais sobre a história recente da política brasileira e as origens das ideologias que hoje dominam nosso país? Então, entre e assista.

Olha o passarinho! Confira os mais clicados pelos leitores do Meio esta semana:

1. g1: As premiadas num concurso de fotos de aves.

2. YouTube: Ponto de Partida — O moralismo de esquerda.

3. Folha: Belmonte, o criador do Juca Pato.

4. g1: Você já viu um sol criança?

5. Panelinha: Salada de abobrinha com castanha de caju.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.

Se você já é assinante faça o login aqui.

Fake news são um problema

O Meio é a solução.

R$15

Mensal

R$150

Anual(economize dois meses)

Mas espere, tem mais!

Edições exclusivas para assinantes

Todo sábado você recebe uma newsletter com artigos apurados cuidadosamente durante a semana. Política, tecnologia, cultura, comportamento, entre outros temas importantes do momento.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)
Edição de Sábado: A primeira vítima
Edição de Sábado: Depois da tempestade
Edição de Sábado: Nossa Senhora de Copacabana
Edição de Sábado: O jogo duplo de Pacheco
Edição de Sábado: A política da vingança

Meio Político

Toda quarta, um artigo que tenta explicar o inexplicável: a política brasileira e mundial.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

Sala secreta do #MesaDoMeio

Participe via chat dos nossos debates ao vivo.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

Outras vantagens!

  • Entrega prioritária – sua newsletter chega nos primeiros minutos da manhã.
  • Descontos nos cursos e na Loja do Meio

R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)