Uma necessária dose de ousadia

Para enfrentar o problema da segurança pública, Lula III não pode recorrer ao espírito da restauração. Precisará de criatividade para quebrar tabus

Há cerca de oito semanas, chamei aqui a atenção para o fato de que Lula III se apresenta como um governo de “restauração”. Claro que, por essa expressão, deve se entender a restauração de um governo normal, democrático, comprometido com a observância dos princípios da Constituição e seus objetivos: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Mas por “restauração” quero dizer também que Lula III pretende recomeçar onde terminou Lula II. Há uma tendência a colocar entre parênteses, sob o signo da reprovação, toda a “revolução conservadora” da década passada, desde as jornadas de 2013 até a presidência Bolsonaro, passando pela Lava Jato, o impeachment de Dilma e o governo Temer. A nostalgia de “recolocar as coisas no lugar”, que aparentemente é a de remontar a 2013, no fundo é a de remontar a 2010, ano em que Lula passou a faixa no apogeu da popularidade e o Brasil experimentava uma euforia digna dos “anos dourados”.

Em outras palavras: o espírito de restauração passa pelo intuito de começar Lula III reatando com Lula II.

Depois de dez anos de instabilidade, marcada por trágicas experiências oligárquicas e reacionárias, o espírito de restauração é bem-vindo.

O primeiro impulso que sucede ao grande trauma é o de reatar com a vida do ponto imediatamente anterior. Impulso reforçado quando o próprio presidente, depois de dois mandatos bem-sucedidos, foi perseguido e gramou um ano e meio na prisão, alimentando ainda mais o anseio pela “restauração”. É mais que desejável, igualmente, a restauração de políticas públicas que se revelaram acertadas no campo social.

O espírito de restauração também traz perigos. O maior deles, sem dúvida, é se deixar levar por um espírito de rotina que, se nos leva a repetir velhos acertos, também nos leva a repetir velhos erros, ou nos deixa desarmado diante de dificuldades novas. Não se pode esquecer do quanto mudou a sociedade brasileira durante a última década, cuja instabilidade e reacionarismo não podem ser exclusivamente creditados à ação de agentes malévolos. A prudência recomenda adaptação às novas circunstâncias, evitando o padrão de conservadorismo quase estúpido dos restauradores referidos por Talleyrand como aqueles que “não esqueceram de nada, nem aprenderam nada”.

Estou longe de crer que este seja o caso de Lula III, que tem revelado no geral o ânimo de se adaptar conforme as dificuldades se apresentam. Mesmo assim, muito poderia ser dito aqui a respeito dos choques de realidade sofridos pelo espírito restaurador do governo, como a impossibilidade de avançar em pautas progressistas para além do âmbito administrativo e as dificuldades de formar maioria no Congresso Nacional. A reportagem de Luciana Lima publicado sábado passado aqui no Meio informa que no primeiro ano de Lula I o governo aprovou 54 medidas provisórias e não perdeu nenhuma, ao passo que Lula III expediu menos da metade, aprovou apenas sete e teve 17 caducas por falta de exame. O presidente pode ser o mesmo, mas o Congresso definitivamente não é.

O maior desafio para o espírito restauracionista de Lula III, porém, é a segurança pública. A batata, que já assava por conta da violência na Bahia, queimou depois da execução à beira-mar de turistas paulistas por traficantes de drogas no Rio, terminando de virar carvão depois que a milícia paralisou a zona oeste da antiga capital federal, queimando 35 ônibus. De acordo com matéria publicada no g1 a 13 de setembro do ano passado, a máfia policial do estado expandiu quatro vezes seu domínio territorial em 17 anos (duas vezes o tamanho de Niterói). Ao mesmo tempo, mais de dois milhões de fluminenses vivem sob o jugo do Comando Vermelho.

Aqui o espírito de restauração de nada serve na orientação de Lula III. O problema da segurança não tem como ser resolvido pela replicação de fórmulas anteriores, porque nenhum governo federal adotou nenhuma.

Ao contrário, procuraram dele sempre e desembaraçar, alegando se tratar de atribuição dos Estados, ou promovendo intervenções inócuas. Durante o breve governo Temer, é verdade, criou-se o SUSP (Sistema Único de Segurança Pública). Mas, ao invés de desenvolvê-lo, o golpismo amador e aventureiro de Bolsonaro preferiu como política partidarizar as forças de repressão, distribuir armas a esmo e incentivar a expansão da máfia policial.

A primeira obrigação de todo Estado sempre foi a garantia da segurança pública por meio do monopólio exclusivo do uso da violência legítima. Nosso maior perigo hoje é a mexicanização, ou seja, a perda definitiva do controle do território para facções que impõem a ditadura do achaque e do terror. É o que está ocorrendo, por conta de uma inação dos governos federais, baseada em cálculos de custos eleitorais e, no caso particular da esquerda, no clichê de que o tema da segurança é coisa de reacionário. Cumpre dar o quanto antes carne ao SUSP e aos poucos criar mecanismos práticos de centralização indireta da segurança, ao exemplo do que se fez nas últimas décadas com o SUS e com a administração judiciária.

A resolução deste problema, como outros, também exigirá mais criatividade e ousadia. O respeito aos princípios gerais e objetivos da Constituição, bem como às suas cláusulas pétreas, não significa admitir como eternos modelos de organização estatal comprovadamente superados ou caducos. A sobrevivência da democracia exige mais do que simplesmente restaurar. Exige reforma para que possa subsistir. Um dos tabus a serem enfrentados é o federalismo simétrico da Constituição, com seu regime de capital única cercada de 27 estados de idênticas atribuições. É chegada a hora de começar a pensar em quebrar o tabu da simetria para expandir a atuação da União, cogitando da criação de territórios federais em zonas problemáticas de fronteira, na federalização das antigas capitais (Rio e Salvador), e também na eventual concessão de maior autonomia a Estados mais desenvolvidos (como São Paulo). Quando fórmulas antigas caducam, é preciso coragem para criar outras. Mas este é assunto para outro artigo.


*Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor do IESP-UERJ

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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