Edição de Sábado: Dois presidentes contra um

O aniversário é nosso, mas quem ganha o presente é você. Não, não é uma promoção de lojas de departamento, supermercado ou coisa que o valha. Não se trata do velho golpe de marketing que indica que toda mercadoria estará pela metade do preço e o cliente desavisado vai se animar em gastar o dobro pela pechincha. A frase se aplica a um sentimento predominante em Brasília nesta semana.

Quem completou 78 anos na sexta-feira, dia 27, foi o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele recebeu homenagens da militância petista na frente do Palácio da Alvorada, bolo vermelho e, depois, calhou de tomar café da manhã com jornalistas que cobrem o Planalto — o Meio estava lá. É claro que o ministro da Secretaria de Comunicação, Paulo Pimenta, que organizou o encontro, não deixaria a data passar em branco. Ao final do papo, puxou os parabéns para o chefe.

Só que, bem ao estilo “liquida tudo”, nesta semana, quem ganhou o presente foi o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). O mimo? Nada menos que a Caixa Econômica Federal.

Lula postergou ao máximo a entrega do pacote. Quase terminou o ano sem colocá-lo na mão do Centrão comandado por Lira. Com isso, amargou, ao longo de 2023, impasses políticos com o alagoano que deixaram, e ainda deixam, seus articuladores em apuros na relação com essa espécie de super Legislativo que vemos hoje, com poderes exacerbados para travar ou fazer andar todo rol de iniciativas do governo. “O governo sabia que seria difícil a relação com a Câmara, mas não imaginávamos que seria tão difícil”, admite José Guimarães, deputado petista do Ceará que é líder do partido na Casa.

Nos últimos anos, o Congresso ganhou protagonismo, expandindo-se sobre a Praça dos Três Poderes. É um movimento contínuo, que vem desde, pelo menos, 2009, ano em que pela primeira vez o Congresso aprovou mais projeto de lei complementar, de autoria de parlamentares, do que projetos do Executivo. E intensificou-se. Os parlamentares já haviam ganhado, com Jair Bolsonaro, o direito de ordenar quando os recursos seriam liberados. Era o tempo do “orçamento secreto”, posteriormente considerado ilegal pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas, de algumas maneiras, reeditado. Neste ano, com Lula já no Planalto, as mudanças feitas nos ritos da Câmara dos Deputados e do Senado durante a pandemia de covid-19 acabaram ditando o tempo da política. O efeito: O Legislativo está tão superlativo, com seus presidentes tão poderosos, que a sucessão de ambos, que acontece só em fevereiro de 2025, já pauta a DR com o Executivo quase integralmente.

Rumo ao Judiciário, setores do Senado alinhados ao presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), investem agora em regular prazos judiciais e mandatos de ministros do STF. Além disso, parlamentares não se furtaram em tentar desfazer entendimentos já assentados na Corte. Um exemplo disso é a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas. O STF julgou a ideia inconstitucional na mesma semana em que o Senado aprovou esse argumento por meio de um projeto de lei. Lula vetou parcialmente o projeto de lei. O Senado ainda pode derrubar o veto. Pacheco está sob forte pressão da Frente Parlamentar da Agropecuária, a maior delas, com 303 deputados e 50 senadores. Por isso, adiou a sessão conjunta do Congresso em que se votam os vetos do dia 26 de outubro para 9 de novembro, enquanto o governo tenta um acordo para que o veto de Lula não seja derrubado. No Planalto, já é claro que, se o veto cair, essa tese deve ser levada novamente ao STF, a quem caberá a decisão final.

Os donos do calendário

Se por um lado as sessões remotas permitiram a votação de matérias importantes durante a pandemia, inclusive a autorização para Bolsonaro furar sequencialmente o teto de gastos vigente, um efeito colateral ocorreu: a concentração de mais e mais poder nas mãos dos dois presidentes. Poder de travar ou fazer andar propostas de interesse do governo. Poder de pinçar assuntos ainda não amadurecidos em comissões temáticas e levá-los diretamente para o plenário, de mandar e desmandar na agenda do Executivo.

Foi nesse contexto que o estica e puxa entre Lira e Lula se estabeleceu já na inauguração da pauta do governo na Câmara. Era hora de votar a PEC 1157, a primeira medida de Lula, que reestruturou toda a Esplanada dos Ministérios. “Teve sofrimento, teve ranger de dentes”, comentou um líder governista, referindo-se aos momentos em que via que o governo passava perto de retroceder à conformação ministerial deixada por Bolsonaro. Guimarães concorda e aponta que essa negociação foi o auge da tensão com Lira. No final do mês de maio, prestes a “caducar”, ou seja, perder a validade pela não aprovação pelo Congresso, a medida simplesmente não entrava na pauta de Lira. Se não fosse aprovada pela Câmara e pelo Senado até a meia-noite do dia 1º de junho, Lula teria que governar com o desenho de ministérios do antecessor.

À medida que o tempo passava, o alagoano pressionava o Planalto para a liberação de emendas parlamentares. A votação só foi concluída na Câmara na madrugada. Coube ao Senado somente endossar a decisão tomada pelos deputados naquele mesmo dia. Lira entregou nessa votação 337 votos favoráveis, 125 contrários e 1 abstenção. Tudo isso saiu por R$ 4,87 bilhões em emendas liberadas. Até o início daquela semana, o governo já havia liberado R$ 3,16 bilhões. Desse valor, R$ 1,7 bilhão foram liberados naquela manhã, na sessão da Câmara. Nessa votação, não houve espaço para o governo pechinchar. (E o episódio reforçava uma noção de que a Câmara daria trabalho, mas no Senado a coisa fluiria mais fácil.)

Nesta semana, na mesma manhã em que Lira ganhou a Caixa, ele aprovou no plenário a taxação dos fundos especiais e offshores, coisa operada por gente muito rica e contava com o nariz torcido do próprio presidente da Câmara. Mesmo assim, Lira cumpriu o acordo e entregou de novo. No cafezinho do plenário, o líder do governo respirou aliviado, já calculando balanço de 2023: “Minha missão neste ano está 100% cumprida. Só falta agora a MP 1185”, disse Guimarães ao Meio, referindo-se à medida, editada em agosto, que altera o tratamento tributário dos incentivos do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), com a qual o governo espera um retorno de arrecadação de R$ 128,9 bilhões.

A cada votação de MP ao longo do ano, foi o mesmo perrengue, o mesmo script. Até chegar ao ponto de Lula diminuir drasticamente a edição de medidas provisórias. Uma diferença e tanto em relação ao seu primeiro mandato. Em 2003, quando Lula assumiu a presidência pela primeira vez, o petista conseguiu aprovar 54 medidas provisórias e não perdeu nenhuma. Neste ano, 17 já perderam a validade e apenas sete foram aprovadas.

Centrão é coisa da sua cabeça

No café da manhã com jornalistas na sexta-feira, Lula procurou não inflar as críticas de que o Congresso tem se arvorado sobre as atribuições dos demais poderes. Claro, ele sabe que vai precisar continuar a negociação pelos próximos três anos de mandato. E assume publicamente essa dependência ao comentar o acordo que fez com o PP, comandado por Lira, em torno da presidência da Caixa, e sobre a entrada do Republicanos, de Marcos Pereira (SP), no governo: “Eles juntos têm mais de 100 votos e eu precisava desses votos para continuar o governo, porque faltam três anos para eu terminar o meu mandato”, enfatizou o presidente.

Lula sabe que o jogo dificilmente vai mudar e preferiu não contribuir para aumentar a tensão. “Trata-se do exercício da democracia em sua total plenitude. O Congresso existe para isso. Ele não é o espaço para que as pessoas digam amém para tudo aquilo que o governo quer”, apaziguou. “Eu fui constituinte.”

Mas se tem uma imagem que Lula rechaça na política é a da existência do Centrão — nascida justamente na assembleia que pariu a Constituição de 1988. Toda vez que é perguntado sobre os acordos com o grupo liderado pelo presidente da Câmara, Lula diz que não negocia com essa turma. “Eu não fiz negociação com o Centrão. Eu não converso com o Centrão. Vocês nunca me viram fazer uma reunião com o Centrão. Eu só converso com partidos políticos que elegem bancadas e, portanto, é com eles que eu tenho que conversar para estabelecer um acordo”, Lula repetiu seu mantra aos jornalistas.

A argumentação recorrente do presidente é a de que, se PP e Republicanos fecham acordo com o governo, é natural que exijam espaço nele. “Como é o governo que precisa do Parlamento, e não o Parlamento que precisa do governo, é importante que a gente tenha humildade de sentar e conversar em momento de adversidade também. A gente não vive só de aplausos”. Ele ainda relembrou o apuro do ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama com o Congresso. “O Obama foi presidente dos Estados Unidos e não conseguiu aprovar nenhum projeto.” Não foi bem assim. Obama aprovou, entre outras coisas menores e com imensa dificuldade, um grande plano econômico e a reforma na saúde do país.

Só que, apesar da fala conformista, Lula deixa transparecer que esse não é o Parlamento de seus sonhos. “Por mais que a gente diga que é conservador, o Congresso Nacional é a cara do povo brasileiro. É o Congresso eleito pelo povo pela quantidade de informações que recebeu. Certo ou errado, é aquilo. A gente vai ter que se preparar para mudar nas próximas eleições.” Entra pleito, sai pleito, está Lula no ex-Twitter avisando que “não adianta votar em presidente congressista e em deputado conservador”.

Com o Congresso que aí está, já está mais do que posta a questão da sucessão do “super Lira”. Além da Caixa, da liberação de emendas em levas que se sucederam a cada votação importante para o governo na Câmara, amenizar o clima com Lira também custou outro compromisso dos governistas: o de apoiar a possível candidatura de Elmar Nascimento (UB-BA), fiel aliado do alagoano, para a sucessão na Câmara. É certo que tem muita água debaixo da ponte, mas, a contar com o cenário que já se vislumbra, em 2025 o Planalto poderá enfrentar outro dilema. A candidatura do atual vice na Câmara, Marcos Pereira (SP) a ser lançada pelo Republicanos. O partido é majoritariamente evangélico, segmento que Lula tenta conquistar, e tem na Esplanada de Lula o ministro do Sílvio Costa Filho, na pasta de Portos e Aeroportos. E isso tudo já entra no cálculo de todos os envolvidos a cada nova pauta.

O carimbador maluco 

Mas se há uma perspectiva de tempos menos turbulentos na Câmara, a previsão para o Senado não é nada otimista. Ainda falta a votação da Reforma Tributária e outros projetos de interesse do governo nessa tarefa de aumentar a arrecadação. Entre elas, a proposta que regulamenta as apostas esportivas, as chamadas bets. O governo conta com os impostos dessa modalidade para fechar as contas do ano que vem — que Lula já admite que dificilmente ficará em zero, como queria Fernando Haddad.

Quando Lula decidiu dar um tempo na edição das medidas provisórias, a articulação do governo no Senado já havia identificado o mau humor dos senadores com o governo. “Vocês abriram mão das MPs, mas tem uma bomba-relógio no Senado”, teria dito o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), ao chefe da articulação do Planalto, ministro Alexandre Padilha (PT-SP). Isso porque, embora as MPs sejam um instrumento previsto na Constituição Federal, havia uma revolta latente no Senado com o sentimento de que a Casa Alta se tornara mera “carimbadora” das decisões tomadas pela Câmara. Esse puxa-estica era o mesmo da reforma dos ministérios: Lula precisava aprovar MPs; Lira sentava em cima, pedindo cargos e emendas; um pressionava o outro até o último instante; Lula liberava as emendas e os cargos; Lira aprovava; e o Senado tinha poucas horas para endossar. Se o Senado alterasse seu conteúdo, elas teriam de voltar para a Câmara para que as modificações fossem novamente apreciadas pelos deputados. Com isso, em alguns momentos, coube aos líderes governistas no Senado praticamente implorar a seus colegas a concordar com a Câmara para que garantir que a lei prevalecesse.

Pois na política mágoas do passado podem se tornar faturas do futuro. Pacheco entendeu que tinha, nessa brecha, um trunfo a explorar para conquistar apoios. E em pleno outubro de 2023, a um ano e quatro meses da próxima eleição para a mesa diretora do Senado, em fevereiro de 2025, não há mais qualquer conversa ali que não esteja contaminada pela disputa pela sucessão de Pacheco. O mineiro quer fazer do senador Davi Alcolumbre (UB-AP) seu sucessor na cadeira de presidente — e foi Alcolumbre quem o fez, está tudo entre amigos.

Para 2025, além de Alcolumbre que, para os petistas, tem forçado as discussões sobre sucessão, alguns nomes já despontam no cenário. Um deles é o do senador Renan Calheiros (MDB-AL), que não admite que é candidato mas é lembrado em qualquer roda de conversa. Apesar da dobradinha Pacheco/Alcolumbre, só no partido do mineiro dois nomes são ventilados como candidatos: o da senadora Eliziane Gama (PSD-MA), que sonha em se lançar representando a bancada feminina, e o do senador Otto Alencar (PSD-BA), aliado do governo. O apoio informal do Planalto ainda não está acertado. O apoio formal, por sua vez, não ocorrerá. Lula é sempre enfático, e escorregadio, ao dizer que um presidente não pode se meter na eleição do Legislativo.

Só que Alcolumbre não se elege só com votos governistas. Na volta do recesso, Pacheco passou a fazer movimentos que sinalizam a aceitação de uma pauta com a qual os senadores da oposição, principalmente os bolsonaristas, se entusiasmam, com destaque para as mudanças no funcionamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Para deixar bem claro ao Planalto que ali também há um preço a se pagar, o Salão Azul simplesmente derrubou a indicação de Igor Roque para a Defensoria Pública da União. O próprio Lula admitiu que falhou nessa articulação. “Até aqui, a Câmara foi um inferno e o Senado foi o céu. Agora, acho que o Senado será o inferno e a Câmara poderá ser um purgatório”, previu um petista cristão. Resta saber como o governo se salvará.

Quanto vale um preso?

“Estarão as prisões obsoletas?”, pergunta Angela Davis em seu livro que leva o mesmo nome e discute a reforma e o fim do sistema prisional. Na obra, a filósofa americana e militante do abolicionismo penal questiona como tantas pessoas foram presas sem que houvesse maiores debates sobre a eficácia do encarceramento. “A prisão é considerada algo tão ‘natural’ que é extremamente difícil imaginar a vida sem ela (...) um fato inevitável da vida, como o nascimento e a morte”, constata Davis.

Os Estados Unidos, que têm a maior população carcerária do mundo, caminham para reduzir as taxas de aprisionamento. Já nos primeiros dias de mandato, o presidente Joe Biden publicou decretos para combater a desigualdade racial e encerrou contratos com prisões privadas — um dos fatores para o encarceramento em massa do país. O Brasil, que desde 2017 tem a terceira maior população carcerária do mundo, vai na direção contrária. Em abril deste ano, o governo federal assinou um decreto no qual inclui o sistema prisional nos “projetos de investimento considerados como prioritários na área de infraestrutura ou de produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação”, incentivando a privatização de presídios por meio de isenções fiscais e aporte financeiro por parte do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

No dia 6 deste mês de outubro, a Soluções Serviços Terceirizados LTDA venceu o leilão para construir e administrar um presídio em Erechim, no Rio Grande do Sul. O contrato é de 30 anos e o subsídio por parte do BNDES será de R$150 milhões. A previsão para início das obras do presídio de Erechim é em até 24 meses após a assinatura do contrato, que deve acontecer no primeiro trimestre de 2024.

Especialistas não veem com otimismo a guinada à privatização do sistema prisional que o Brasil vem dando. “Preso não é para servir para ser processo de lucro. Estamos colocando sujeitos privados de liberdade na mão de empresas que estão mais preocupadas com o lucro do que a integração harmônica social dos presos”, aponta Roberto Moura, coordenador do Departamento de Sistema Prisional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

O Brasil já conta com um modelo de parceria público-privada (PPP) na cidade de Ribeirão das Neves, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Inaugurado em 2013, o complexo prisional tem 2.164 vagas. O Estado paga R$ 167,03 por dia por vaga ocupada — mensalmente, são cerca de R$ 5,2 mil por apenado. No contrato do Rio Grande do Sul, o valor repassado à empresa será de R$ 233 por vaga/dia, média de R$ 7,2 mil mensais. Conforme o governo do estado, o valor não se refere somente ao preso, mas inclui a construção das duas unidades, que contarão com 1.200 vagas, operação do presídio, equipamentos, alimentação, saúde e educação. O gasto mensal com apenados em penitenciárias públicas gaúchas é de R$ 2,8 mil (cerca de R$ 90,32 vaga/dia).

Como decidir quem vai merecer esse maior “investimento” do poder público? “O Estado administra o sistema prisional com valores muito baixos e irá pagar para a empresa muito mais do que tem previsto para os presos de maneira geral. Que bom se fosse um valor alto para o atendimento de todos os presos. Mas, assim, é direcionado um recurso para esse presídio especificamente, que o restante do serviço não tem”, afirma Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, sociólogo, professor da Escola de Direito da PUCRS e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O sistema prisional brasileiro conta com 34 operações em cogestão com a iniciativa privada. Neste modelo, serviços como alimentação, assistência de saúde, e vestuário são gerenciados por empresas. De acordo com dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), a Bahia é o estado com mais presídios em cogestão, com 11 unidades, seguido pelo Amazonas, com 9. Entretanto, a administração dos locais ainda é feita pelo Estado. “Nesses contratos de parceria público-privada, há cláusulas para que Estado garanta uma taxa mínima de ocupação da unidade prisional e a remuneração é calculada por pessoa encarcerada. A empresa irá ganhar X por detento. Quanto mais pessoas encarceradas, maior o aporte para a empresa”, explica Thandara Santos, cientista social e associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Até junho deste ano, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023 (íntegra), são 832.295 pessoas privadas de liberdade no Brasil — para cerca de 600 mil vagas do sistema penitenciário. Houve um crescimento de 0,9% na taxa de presos em relação a 2022. O temor dos especialistas é que o Brasil passe por uma nova onda de encarceramento em massa, problema aumentado pela Lei de Drogas de 2006, que impulsionou o aprisionamento de pessoas, principalmente pobres e pretas, no país. Segundo o Anuário, os presos são, em sua maioria, jovens de até 29 anos (43,1% da população carcerária) e negros (68,2%). “Os contratos muito longos, de 30 anos, as cláusulas que garantem uma taxa de lotação, que remuneram por encarcerado, tudo isso promove o encarceramento em massa como uma prática lucrativa. É uma distorção completa do que seria a política penal pautada por direitos humanos”, complementa Thandara.

O sociólogo Azevedo discorda e duvida que o Judiciário, a quem cabe a atribuição de responsabilizar criminalmente um cidadão, vá trabalhar em função disso. “A tarefa de condenar e executar a pena é do Estado, não da iniciativa privada. É uma tarefa do Judiciário. E falar que o Judiciário vai condenar mais para beneficiar empresas não é lógico”, reforça. Nos EUA, há casos de juízes subornados por donos de presídios para prender mais. Mesmo sem a relação direta da propina, há estudos que mostram que a adoção de prisões privadas aumenta o índice de encarceramento, e a duração das penas, no longo prazo.

Em sua obra, Davis questiona a presunção de que aprisionar uma proporção cada vez maior de americanos traria mais segurança e proteção para aqueles que vivem em liberdade. “Por que as prisões tendem a fazer com que as pessoas pensem que seus próprios direitos e liberdades estão mais protegidos do que estariam se elas não existissem?”. O Brasil segue construindo mais penitenciárias. “É o populismo penal. Uma resposta para a opinião pública sobre o que se está fazendo com as pessoas que a população não quer ver. A população não quer ter contato com quem interage com o sistema de Justiça Criminal. Investir na política de encarceramento em massa sempre foi lucrativo do ponto de vista eleitoral”, aponta Thandara.

Neste ponto, ela está em sintonia com a crítica de Azevedo. Para o sociólogo, é preciso, sim, investir no sistema prisional, mas como um todo, para se melhorar problemas de gestão, saúde, alimentação. “Por que colocar esses recursos nas mãos da iniciativa privada, se todo o sistema está carente? Se o estado não tem recurso para manter os presos atuais, porque ele investiria muito mais que o dobro para a iniciativa privada?”, questiona.

Em setembro, 86 entidades emitiram uma nota técnica contra a privatização do sistema prisional e os recentes incentivos do governo federal para a transferência da gestão dos presídios à iniciativa privada.

A privatização do sistema prisional transita pelos governos, sejam de direita, extrema direita ou esquerda. Em 2016, Michel Temer já planejava as concessões da gestão dos presídios. Posteriormente, Anderson Torres, ministro da Justiça do governo Bolsonaro, reviveu a ideia. Em 2020, houve uma tentativa de realizar o leilão para a construção do presídio em Erechim, mas não houve candidatos habilitados. Segundo Thandara, “essa política perpassa diferentes espectros ideológicos. Tem uma pressão privada e tem uma pressão da opinião pública mesmo”.

A pauta da privatização está dividindo o governo Lula. Além do financiamento do presídio gaúcho, o BNDES, comandado por Aloizio Mercadante, apresentou um plano para a construção de um complexo em Blumenau, em Santa Catarina. Entretanto, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, apoia as entidades autoras da nota técnica e deve pedir a exclusão das parcerias com o setor privado. “Quando se trata de questões de política de segurança pública, Lula e Bolsonaro se unem. A plataforma de Segurança Pública é muito calcada em política de tolerância zero, de inimizade e neutralização. Não é calcada na política de integração harmônica social, voltada à política pública de estudos. É uma política de espetacularização de corpos pretos e pobres”, completa Moura.

A soberana

Não é o movimento o que impressiona mais. É o que não se mexe. Conforme ela corre, mergulha, salta, revolve-se, contorna-se e pousa, em coisa de oito segundos, não há um vestígio sequer de franzir em sua testa. O único músculo de seu rosto que se arreda é o da satisfação. Aquele do sorriso na aterrissagem perfeita. Aquele das monarcas serenas e repletas de seu poder. Rebeca Andrade é soberana.

Se por algum infortúnio você não teve a felicidade, o privilégio de ver, clique aqui e assista ao salto perfeito de Rebeca nos Jogos Pan-Americanos de Santiago. Ele está em looping, por vários ângulos, em slow motion, acelerado — e, de todas as maneiras, fascina. O nome do salto é Cheng, em homenagem à ginasta chinesa Cheng Fei, que foi campeã na Olimpíada de Pequim em 2008. Seu grau de dificuldade é “alto”. Na feição de Rebeca, seu grau de dificuldade é “nasci para isso”. Ela tirou nota 9,733, a maior de sua carreira e uma das maiores já registradas na ginástica. E no replay do vídeo nós, leigos, ficamos procurando onde os milésimos que faltaram para o 10 escaparam. Mas eles não estão ali. São abstrações. Para completar a sequência, Rebeca fez um outro salto, um Yurchenko, com a também excelente nota de 9,633. Em sua estreia em Pans, levou o ouro.

Rebeca conseguiria ainda o ouro na trave, e a prata nas barras assimétricas e na prova de equipe — ao todo, o time brasileiro de ginástica, feminina e masculina, conquistou 14 medalhas. E uma coroa.

Em nome da precisão que Rebeca nos inspira a buscar, a coroação veio duas semanas antes. No Mundial da Antuérpia, na Bélgica, Simone Biles, considerada a maior ginasta de todos os tempos, transferiu, risonha, sua tiara encravada de conquistas para a amiga Rebeca. Simone havia, dias antes, realizado o salto mais difícil já feito por uma mulher. Ele passou a ser chamado de Biles II — e foi a quinta manobra batizada em sua homenagem. Na ginástica, os movimentos realizados com sucesso pela primeira vez numa competição internacional levam o nome do ou da ginasta que conseguiram a façanha. Mas Rebeca superou Simone. Na final, fez o Cheng, em que evidentemente está imbatível. E, ao receber a coroa de Simone, que já declarou que deve se aposentar depois dos Jogos de Paris, sorriu com a humildade e a confiança das grandes. Porque o reinado de uma não se dá em detrimento da outra, mas na irmandade.

Não que uma rainha inconteste precise de endosso. Só que no esporte, onde a competição é causa e efeito, uma reputação se constrói justamente na comparação com o outro. E o ouro olímpico de Rebeca esteve, aos incautos, sombreado pela ausência de Simone — que, ela mesma grandiosa, teve a coragem de se retirar de uma Olimpíada para cuidar de sua saúde mental. Incautos porque não compreendem que grandeza se constrói na presença, não na ausência. Rebeca estava lá, na extemporânea Olimpíada de Tóquio, em julho de 2021. E entregou tudo para trazer a primeira medalha olímpica de uma ginasta brasileira. Foi também com um Cheng.

Desde miudinha, do auge de seus dois aninhos em Guarulhos (SP), ela dava estrela. Com três, estrelas sem as mãos. Aos quatro, já era chamada de Daianinha, em referência óbvia a Daiane dos Santos, uma das monarcas que a antecederam — a linha antecessória tem ainda Jade, Danielle... Dona Rosa produziu aquilo que tantas mães solo produzem no Brasilzão desigual. Tem gente que chama de milagre. Ela botou sua filha no topo. Apesar das lesões, das aflições.

É bom demais ver uma brasileira, negra, sendo a melhor. Não bastasse ela, tem a Rayssa Leal, nossa garota prodígio do skate, que também ficou dourada no Pan. Tem Flavinha Saraiva dividindo pódio com Rebeca e levando cinco medalhas. E nada disso esteve na TV. Aberta ou fechada. As emissoras não quiseram bancar o valor da transmissão da exuberante realeza brasileira, essa que não está nos gramados tomando vareio do Uruguai. Mas rainhas legítimas não precisam de ibope.

Pedro Doria explica o conflito entre Israel e Palestina


Quer entender de verdade as origens do conflito entre Palestina e Israel e suas possíveis consequências? Então assista à aula inaugural do curso “Israel e Palestina: uma tragédia evitável?", com Pedro Doria, dia 9, às 19h. Além de poder participar gratuitamente dessa aula, assinantes premium também ganham desconto de 20% na aquisição do curso.

Você sabia que agora o Ponto de Partida é publicado no novo site do Meio em vídeo e também em texto? Aqui estão os mais clicados da semana:

1. Poder360: Lira não gostou de se ver na lata de lixo.

2. Meio: Ponto de Partida — Milícias do Rio, Bolsonaro e o Brasil.

3. Panelinha: Pasta de cebola caramelizada com cerveja.

4. Meio: Ponto de Partida — A surpresa de Milei na Argentina.

5. g1: Em vídeo, o flagra dos criminosos incendiando ônibus no Rio.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.

Se você já é assinante faça o login aqui.

Fake news são um problema

O Meio é a solução.

R$15

Mensal

R$150

Anual(economize dois meses)

Mas espere, tem mais!

Edições exclusivas para assinantes

Todo sábado você recebe uma newsletter com artigos apurados cuidadosamente durante a semana. Política, tecnologia, cultura, comportamento, entre outros temas importantes do momento.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)
Edição de Sábado: A primeira vítima
Edição de Sábado: Depois da tempestade
Edição de Sábado: Nossa Senhora de Copacabana
Edição de Sábado: O jogo duplo de Pacheco
Edição de Sábado: A política da vingança

Meio Político

Toda quarta, um artigo que tenta explicar o inexplicável: a política brasileira e mundial.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

Sala secreta do #MesaDoMeio

Participe via chat dos nossos debates ao vivo.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

Outras vantagens!

  • Entrega prioritária – sua newsletter chega nos primeiros minutos da manhã.
  • Descontos nos cursos e na Loja do Meio

R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)