A nada discreta ‘magistocracia’ brasileira

Conrado Hübner Mendes explica o termo que cunhou para dar conta de como a casta do sistema de Justiça brasileiro se refestela com o poder político e econômico sem pudores

Há mais de uma década, Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da USP e doutor em direito e ciência política, examina, em crônicas e artigos, o sistema de Justiça brasileiro. Conforme esquadrinhava o comportamento dos protagonistas dessa área, fossem juízes ou promotores, foi detectando alguns padrões que, embora semelhantes aos de outras elites profissionais, tinham mecanismos e interesses próprios. Era necessária uma nova palavra que os descrevesse. Hábil com os vocábulos, criou um novo: magistocracia.

Agora, compilando os textos em que narra episódios bastante explícitos do que classificou como uma espécie de casta do Judiciário, lança o livro O Discreto Charme da Magistocracia — o título é, sim, inspirado no filme de Luis Buñuel e em como, nas palavras de Conrado, o grupo de amigos da alta sociedade “entretém conversas presunçosas, simula normalidade e expressa desprezo moral pelo drama que os rodeia. A magistocracia não deixa nada a dever”. Esse não é um problema exclusivamente brasileiro. A Suprema Corte americana, salpicada de escândalos, acaba de lançar um código de ética, qualificado por Conrado como paliativo. “Mas são muito raras práticas promíscuas tão normalizadas quanto as que se veem no Supremo Tribunal Federal”, ele pontua.

Claro que há aplicadores da lei que fogem a esse padrão. Mas uma das características da magistocracia — são cinco — é ser autocrática e interditá-los. Ela é também autoritária, autárquica, rentista e dinástica. Por tudo isso, Conrado defende algumas das propostas do Legislativo para limitar, por exemplo, decisões individuais dos ministros do Supremo. “O papel do Supremo é tomar as melhores decisões possíveis, com o maior grau de colegialidade e de consistência, porque é da essência da atividade judicial desagradar grupos e forças”, argumenta. Confira os principais trechos da entrevista.

O que é magistocracia e o quão indiscreta ela é?
O termo magistocracia é um neologismo. Eu o cunhei usando o radical de “magistrado”, que no século 20 se consolidou para se referir a juízes, mas na origem era usado para autoridades estatais com a responsabilidade de aplicar a lei, de fiscalização, de promotores de Justiça. De fato, a magistocracia, no conceito que eu elaboro, refere-se sobretudo a juízes. Mas as autoridades do sistema de Justiça como um todo se encaixam nesse conceito, porque suas práticas, seus atributos e características são parecidos. As carreiras jurídicas perseguidas pelos concurseiros do direito têm um ethos muito similar, ainda que os atores estejam sentados em locais institucionais bastante diferentes. Criei esse termo alguns anos atrás para me referir não ao imenso poder de cortes constitucionais, não para ecoar expressões como “governo dos juízes”, “supremocracia” ou “juristocracia”, que são outros neologismos em que a ideia é discutir as instituições em si. “Supremocracia”, por exemplo, é uma tentativa de expressar numa palavra o grande poder que o Supremo Tribunal Federal ocupou. Magistocracia não tem a ver com isso. Tem a ver com um grupo social particular e com o ethos dos chamados magistrocratas, que são as autoridades que ocupam esses cargos e que conseguem, pelos seus mecanismos de poder, legais e ilegais, construir uma teia de privilégios, uma espécie de casta, de aristocracia. E eu atribuo a essa aristocracia judicial, a magistrocracia, algumas características que a definem.

Quais sejam?
Uso cinco adjetivos. Ela é autoritária, porque se recusa a uma interpretação respeitadora da cultura de direitos fundamentais que a Constituição de 1988 tenta construir. É por essa razão que o Judiciário brasileiro é autor de uma das maiores tragédias humanitárias do país: o encarceramento em massa. Precisa ser uma uma instituição muito autoritária para interpretar o Direito Penal e manter 40% da população carcerária brasileira, a terceira maior do mundo, em prisão provisória. A magistocracia é autocrática — e aqui é preciso esclarecer: não são todos os juízes, procuradores e promotores que são magistocratas. A magistocracia é um grupo hegemônico, um certo modo de pensar e agir e que governa essas instituições. Mas a magistocracia é autocrática, porque reprime justamente a independência judicial dos não magistrocráticos, de quem não compartilha dos mesmos valores ou dos mesmos mecanismos de interpretar o direito. Ela é também autárquica, porque recusa qualquer forma de controle externo. A Constituinte não conseguiu aprovar algo assim, o Congresso passou a década de 1990 discutindo uma reforma do Judiciário, que saiu em 2004, muito desidratada. Imaginou-se um órgão de controle externo plural, com representantes da sociedade civil, e que pudesse controlar o Judiciário não no mérito das decisões do juiz, mas nas políticas internas de administração e de distribuição de recursos. Só que essas propostas mais democráticas foram todas derrotadas. O que passou e foi visto como ao menos um grão de progresso foi a criação do Conselho Nacional de Justiça, que não é controle externo, e sim um controle centralizado em Brasília, sobreposto às corregedorias estaduais.

Quais são as outras duas características?
A magistocracia é rentista, porque usa mecanismos da baixa política patrimonialista para multiplicar sua remuneração e desrespeitar a lei. Todas as iniciativas de estabelecer um teto de remuneração dos juízes eles conseguiram vencer por estratagemas ilegais que se tornam legais. E, por fim, ela é dinástica, porque usa múltiplos mecanismos para favorecimento dos seus filhos. Por um lado, o ingresso no Judiciário, há algumas décadas, passou a ser feito por concurso público, um mecanismo republicano. Mas há muitas formas de beneficiar parentes a partir do cargo de juiz. Se o filho for um pouquinho estudioso e passar no concurso, ele vai se dar bem na progressão na carreira. Um ministro poderoso consegue que seu filho seja indicado diretamente, sem concurso, para um tribunal como desembargador. Foi o que fizeram Luiz Fux no tribunal do Rio e Marco Aurélio no Tribunal Regional Federal.

Essa é a magistocracia. É uma fração do sistema de Justiça, mas que o governa e é muito poderosa politicamente.

Por que a magistocracia se sente tão à vontade para ser indiscreta? E ela se revela mais nas relações com o poder político ou com o poder econômico?
Ela se refestela tanto com o poder político quanto com o poder econômico. Veja o caso das palestras, dos parentes e dos penduricalhos na remuneração. A renda da magistocracia que desrespeita o teto é principalmente por essa técnica de inventar novos penduricalhos e chamá-los de indenizatórios em vez de remuneratórios. É tudo artificial. Há muita desfaçatez e, de fato, é muito indiscreto. Como é que eles conseguem fazer isso? Eles mantêm relações de intercâmbio de interesses com o poder político. Existem teses mostrando como a cúpula de cada tribunal tem uma relação muito próxima com a cúpula do Poder Executivo — mais especificamente com o governador do Estado quando se trata do Judiciário estadual ou com o presidente da República e o Congresso quando é o Judiciário Federal. Às vezes é possível perceber certa correlação até mesmo entre decisões judiciais tomadas pelo presidente de um TJ no uso da suspensão de segurança, por exemplo, e a concessão pelo governador do Estado de aumento salarial ou de outros benefícios pecuniários à Justiça. Foi o que fez a tese da pesquisadora Luciana Zaffalon. A magistocracia se esforça para ter uma relação imbricada com a política e manter esses privilégios. Mas com o poder econômico também, de outras formas. São coisas mais difíceis de monitorar, porque há muito pouca transparência. Não estamos falando da corrupção grosseira, da empresa rica que compra uma sentença. Isso é crime de corrupção. Mas sim daquelas práticas normalizadas, como a empresa que seduz ao pagar uma palestra, financiar uma viagem, patrocinar um evento, contratar o filho do desembargador.

A Suprema Corte americana criou só agora um código de conduta por conta de escândalos assim. Por aqui, o ministro Barroso diz que o Judiciário não precisa de reformas. Existe um modelo em algum país para fiscalizar e punir os membros das cortes constitucionais em caso de desvio de conduta?
São muito raros os casos em que uma corte pune membros por desvio de conduta. Isso não significa que os abusos não gerem escândalo, constrangimentos e renúncias. O código de ética da Suprema Corte nos EUA vem na esteira do escândalo com o juiz Clarence Thomas, indicado por George Bush em 1991 e da ala mais extremista e conservadora. Há muitos anos, ele recebe todo tipo de mimo de alguns milionários americanos. Isso foi um escândalo, mas não houve, ainda assim, a possibilidade de sancionar o juiz. Então, a elaboração de um código de ética é paliativa. Como princípio geral da política, da organização dos poderes e das cortes é sempre muito difícil punir as grandes autoridades, sobretudo numa corte constitucional. Uma certa cultura institucional do que é aceitável ou não acaba sendo o elemento regulador da conduta desses juízes. Esse modo de accountability não acarreta necessariamente sanções legais, mas profissionais e reputacionais. Estou fazendo esse grande desvio porque, novamente, são muito raras práticas promíscuas tão normalizadas quanto as que se veem no STF. Falo “muito raras” por contenção retórica, para permitir exceções. Agora, dentro daquelas cortes que mais se estudam — incluindo as do Norte global, mas também as do Sul como da África do Sul, Colômbia, Chile —, receber esse tipo de mimo ou um juiz violar a lei e ter sua própria empresa que promove eventos e encontros para supostamente discutir o Brasil e, no fundo, para a prática de lobby com advogados e empresários, tudo isso é inaceitável.

Quando Barroso diz que o STF não precisa de reforma é uma frase retórica para reagir à onda de propostas de interferência no Supremo, que foi interpretada pelo jornalismo erroneamente, a partir da fala dos próprios juízes, como limitadoras dos poderes da Corte.

Elas não os limitam de fato?
Há muitas propostas de reformas na mesa. Apenas uma delas efetivamente tenta limitar, de maneira muito problemática, o poder do Supremo, que é aquela que daria ao Congresso a prerrogativa de revogar decisões da Corte. Essa é grave e tem muitos problemas. Todas as outras, por mais que se possa dizer que é uma reação bolsonarista, conservadora ao ativismo que supostamente o Supremo pratica, são absolutamente defensáveis e não enfraquecem o Supremo, mas o fortalecem. O que elas enfraquecem é o poder de obstrução individual que o ministro tem. Enfraquece o ministro naquilo que ele pode fazer sozinho. E as coisas mais graves que existem no STF são as feitas individualmente por ministros — isso um conjunto de estudiosos, observadores e analistas diz há tempos. A possibilidade de um ministro dar uma decisão monocrática e boicotar o plenário é muito anti-institucional. Permitir que o ministro peça vista e nunca mais devolva o caso, ou só devolva 10 anos depois, quando o ambiente esteja propício ao que ele quer, é muito grave. Limitar esse poder individual não é limitar o Supremo. Retoricamente os ministros reagiram a isso e o jornalismo comprou sem questionar.

O primeiro artigo do livro faz justamente o diagnóstico do quão nocivo é o individualismo dos ministros e a falta de uma coesão institucional. A reação ao bolsonarismo seria prova de que isso mudou?
Não, foi algo absolutamente conjuntural e momentâneo pelo reconhecimento de que algo perigoso estava acontecendo nos ataques ao Supremo como instituição e às pessoas dos ministros. Nesse momento de autodefesa, houve um grau de coesão. Não em qualquer caso, mas naqueles que tinham relação com eleições, com alguma investigação criminal do Bolsonaro e de bolsonaristas, em que tudo era muito extravagante. Eles reconheceram algo que deveriam reconhecer ordinariamente em qualquer caso: existe um peso importante na coesão. Só que a cultura individualista não mudou.

Nesse quase um ano pós-bolsonarismo, o Supremo está se reacomodando e voltando a ser como antes?
De jeito nenhum. O STF não está voltando ao momento pré-Bolsonaro. Pelo contrário, é um STF que se formou no bolsonarismo e no pós-bolsonarismo, com esse acúmulo de poderes excepcionais, sobretudo no campo criminal para lidar com o próprio bolsonarismo. Esse STF empoderado, mergulhado na política e fazendo lobby pelas indicações de colegas e tudo mais, obviamente tem relações e semelhanças com o que era o STF pré-bolsonarismo, mas é um STF mais ousado, no pior sentido do termo. Toda extravagância e todos os poderes excepcionais que eles usaram, às vezes com boas razões, justificando como uma prática de “democracia militante”, continuam lá. É verdade que práticas bolsonaristas estão aí, soltas, mas não há nenhum sinal de que existe uma preocupação institucional de dar um passo atrás e tentar voltar um pouco à normalidade decisória. Eles acumularam o poder e não vão renunciar a esse poder voluntariamente.

Os ministros do Supremo são escolhidos por processos políticos. É possível o STF se isolar da polarização política, ainda que por um tipo de autocontenção?
Por um gesto voluntário de autocontenção, é improvável. Uma eventual retração do Supremo vem quando a Corte percebe que sua autoridade começa a ser ameaçada e a obediência a suas decisões esteja em jogo. Essa obediência não é um dado e, quando o Supremo é desobedecido, isso mostra um esgarçamento dessa autoridade. Não cabe ao Supremo escapar da polarização. Ao aplicar o Direito Constitucional, que protege liberdades, valores e assim por diante, a Corte acaba entrando no olho do furacão da polarização. Não tem como um ator político escapar da polarização, mas o Supremo não deve ficar refém dela e deixar de tomar certas decisões com receio de que a polarização prejudique a sua efetividade. O papel do Supremo não é se posicionar na polarização, é aplicar o direito. Claro que, em certos casos mais polêmicos, isso envolve grandes guerras culturais. Um país polarizado é um país que pode fazer muito barulho contra certas decisões. Mas o papel do Supremo é tomar as melhores decisões possíveis, com o maior grau de colegialidade e de consistência, porque é da essência da atividade judicial desagradar grupos e forças. Se temos uma Constituição que prevê mudanças e estabelece direitos, as forças que uma decisão constitucional vai desagradar necessariamente são aquelas que recusam esse projeto constitucional de mudança, de aplicação de princípios de Justiça.

O Poder Judiciário, por ser o guardião da Constituição, deveria ser mais virtuoso que os demais?
Toda instituição tem a sua ética própria. A ética do Poder Judiciário, ou do sistema de Justiça como um todo, é a da imparcialidade, da discrição e da proteção da integridade institucional — para que você, como aplicador da lei, seja percebido como um sujeito que, ainda que tenha ideias e opiniões sobre o mundo, a vida e a política, está num lugar institucional, exercendo responsavelmente sua missão de aplicar a lei. Isso vale para muitas autoridades, até mesmo para um policial na rua. Não é que o Judiciário deva ser mais virtuoso. Existe uma ética judicial, assim como existe a ética da advocacia, da burocracia. Isso significa desejar, no melhor dos mundos, que juízes sejam virtuosos. Mas não temos controle sobre a virtude do juiz, ou sobre o quão sincero... exercer virtude é exercer algo sincero, automatizado. O que se deve controlar, mas não se controla, é se o comportamento judicial é compatível com a ética dessa instituição. Não estou preocupado se o ministro fulano é virtuoso, mas me preocupa muito que ele desrespeite princípios normativos de ética judicial. Não é só uma questão se ele é um bom sujeito, ele está desrespeitando a lei. Não é só uma norma de bons costumes ou de etiqueta. A ética judicial está descrita no papel, como lei, certas coisas o juiz não pode fazer. E isso é estendido a todos os magistocratas, não só o juiz.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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