A salvação da democracia

Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, professores de Harvard, propõem caminhos para resgatar a democracia americana — e olham para o Brasil, talvez com excessivo otimismo, como exemplo

Uma boa parte do mundo ocidental assistia com assombro. A democracia sólida, rica e da trinca das mais antigas do planeta estava escolhendo eleger um candidato que não se constrangia em ameaçar vilipendiá-la. A campanha já havia sido um espetáculo grotesco de ataques retóricos às bases democráticas dos Estados Unidos. Empossado, Donald J. Trump iniciou um processo bem mais tangível de erosão das instituições — e da crença nelas. O que pareciam métodos próprios de países com pilares democráticos mais instáveis estava sendo empreendido na nação que se gabava de espalhar democracia pela metade menos civilizada do globo. E tudo televisionado ao vivo, em cores e com uma torcida fiel. Em 2018, dois anos depois da eleição de Trump, os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, professores de Harvard, codificaram esses métodos. Publicaram o já clássico Como as Democracias Morrem — e decretaram que não só elas perecem como são vítimas de autocratas que se utilizam da própria democracia como arma. Essa boa parte do mundo ocidental seguiu estarrecida, mas compreendeu que frear essa epidemia letal envolvia, entre outras coisas, impedir, pelo voto, um segundo mandato dos autocratas potenciais.

Trump perdeu a reeleição. Não aceitou a derrota e instigou uma tentativa de golpe no dia 6 de janeiro de 2021. Agora, às portas da eleição presidencial de 2024, os autores oferecem mais que um atestado de óbito a quem segue sobressaltado, testemunhando o Partido Republicano completamente capturado por Trump mesmo depois do flagrante atentado. Oferecem um antídoto. Em seu novo livro, propõem Como Salvar a Democracia. Nota-se, de saída, que eles optaram pelo singular na formulação do título. Isso porque, embora apresentem estudos de caso de democracias moribundas em diferentes regiões e eras, aprofundam-se mesmo é no processo americano. E identificam na questão racial, simultaneamente, a maior fragilidade e a salvação da democracia dos Estados Unidos.

Fragilidade essa narrada ao longo da História do país. Levitsky e Ziblatt remontam a como sempre que afro-americanos vislumbraram conquistas democráticas a reação do establishment branco, acuado com a perda de soberania, foi de suprimi-las. Isso desde antes da Guerra Civil. Os pesquisadores reforçam a constatação de que o medo é o veneno das democracias. Não é só o medo de perder a eleição, mas de ver todo seu modo de vida destruído. Autocratas de variadas estaturas — desde o parlamentar estadual ao presidente da nação mais próspera — manipulam esse sentimento a seu favor. Assanham uma parcela dos eleitores contra outra, normalmente minoritária. Fazem isso se utilizando de um princípio democrático.

Democracia é, na definição mais rudimentar, um governo de maioria que respeita e protege os direitos das minorias, não os atropela. Autocratas subvertem essa lógica, fazendo crer que as minorias estão usurpando o poder da maioria.

Assim, quando, no século 19, o Sul americano começou a se organizar para negros votarem e o resultado foi de perda de poder da hegemonia branca, a reação veio feroz. Pela natureza federativa extrema dos EUA, cada Estado foi montando sua legislação eleitoral — e os do Sul se empenharam em destituir os negros de direitos. Como não havia uma proteção federal, a participação negra nas eleições caiu de 61% em 1880 para 2% em 1912. Os professores são bastante corajosos em quebrar o tabu e criticar a Constituição americana. Em uma medida, eles defendem, ela teria se excedido na construção de mecanismos e instituições contramajoritários. Com essa “autorização”, políticos seguiram reforçando e criando novos mecanismos com esse fim. Eles servem justamente para impedir que maiorias transitórias e autoritárias esmaguem minorias. Na prática, acabaram criando o contrassenso que permitiu que Trump se elegesse, por exemplo: o colégio eleitoral, no caso, torna possível que um candidato não escolhido pela maioria dos eleitores chegue à Casa Branca. Os filibusters, instrumento criado pelo Senado pelo qual uma minoria parlamentar consegue bloquear votações no Congresso, impedem o avanço legislativo de matérias endossadas pela maioria. O cargo vitalício de ministro da Suprema Corte (que não é determinação explícita constitucional, mas vem sendo interpretado assim conforme explica o próprio site oficial da Corte) condena gerações a uma mesma visão jurídica, sem chance de atualização.

Acontece que perfis demográficos mudam. Nos Estados Unidos, mudou. Nos anos 1960, quase 90% da população americana era branca. No fim de 1966, uma pesquisa mostrou que 85% dos brancos achavam que os negros caminhavam “rápido demais” rumo à igualdade racial. Foi nessa onda que o Partido Republicano surfou por décadas, no que parecia um ativo eleitoral infindável. Somaram, a partir dos anos 1980, o perfil dos evangélicos brancos do Sul. E se consolidaram como o partido do nacionalismo cristão branco. Só que em 2000 a porcentagem de brancos não-hispânicos nos EUA já era de 69% e, em 2020, caiu para 58%. Entre os americanos com menos de 18 anos, negros, hispânicos e asiáticos já são maioria. Essa diversidade se reflete, inclusive, na política. Nos últimos 40 anos, o número de parlamentares não brancos aumentou mais de quatro vezes e a Suprema Corte, que em 1966 tinha homens brancos como seus nove ministros, hoje tem apenas quatro. Eles são minoria. Enquanto isso, o Partido Republicano seguiu cativo dos brancos cristãos, com quatro entre cinco eleitores da legenda em 2012. Em vez de se reinventar para atrair o eleitorado mais diverso, como recomendou uma “autópsia” encomendada pelos dirigentes em 2013 e como pressupõe uma democracia, os republicanos mergulharam no sectarismo. Criaram o Tea Party, ala mais radical do partido que acabou por dominá-lo. Lindsey Graham, senador pela Carolina do Sul, teve a desfaçatez de vaticinar: “Não estamos produzindo brancos irritados em quantidade suficiente para continuar no mercado por muito tempo”. Isso em 2012 mesmo.

Ainda em 2016, houve a chance de um caminho mais inclusivo nas primárias. Jeb Bush era casado com uma mexicana e sua equipe queria adotar a “autópsia”, uma reinvenção do eleitorado a ser conquistado. Mas Trump foi no sentido oposto. Alimentou o ressentimento branco. Na frase do jornalista Ezra Klein recuperada pelos autores: “Trump não sequestrou o Partido Republicano. Ele o compreendeu”. Àquela altura, republicanos em todo o país já haviam retomado o método de promover, por vias legais, supressão do voto negro, hispânico e de cidadãos de baixa renda, e radicalizado a política anti-imigração. Ainda que numericamente isso não pareça expressivo, os professores lembram que, por causa do sistema eleitoral disfuncional americano, o pleito presidencial de 2000, por exemplo, foi decidido por 537 votos na Flórida. Em 2020, foram 40 mil votos em três estados — a ponto de Trump pressionar por 11.780 votos a mais na Geórgia. Enquanto isso, insuflaram nos nacionalistas cristãos brancos a certeza de que os não-brancos estavam em busca de removê-los da cena, torná-los uma minoria, com a teoria da “grande substituição”, abastecida dia e noite na Fox News e na bolha da direita. Esse é o caldo que permite que hoje Trump seja o dono do Partido Republicano e tenha chances reais de vitória, segundo Levitsky e Ziblatt.

Há um elemento extra fundamental. Não é só da ação de extremistas que nasce uma autocracia. É da leniência de políticos tradicionais. Ou, como eles classificam recorrendo à definição do sociólogo espanhol Juan Linz, dos democratas semileais. São aqueles que vão autorizando o que Levitsky e Ziblatt chamam de “banalização do autoritarismo” e, consequentemente, o legitimando. Trump não seguiria uma ameaça se não houvesse tantos dispostos a aceitá-lo para faturar eleitoralmente no curto prazo. É neste ponto que o prefácio dos autores para a edição brasileira, em que eles fazem anotações sobre o bolsonarismo e o rescaldo do nosso 8 de Janeiro, periga partir de uma dose de excessivo otimismo — ou até de ingenuidade. Como dito anteriormente, eles não se dispõem a analisar com tanta profundidade os casos de outros países. Mas especialmente Levitsky conhece o bastante de América Latina para compreender algumas particularidades importantes da região e do Brasil. Os professores apontam que há três coisas que democratas leais devem fazer diante de um autocrata: “condenam publicamente o comportamento antidemocrático e agem para responsabilizar os culpados, ainda que sejam aliados ideológicos; expulsam figuras autoritárias de suas fileiras, recusando-se a nomeá-las ou indicá-las para cargos públicos; e trabalham com forças pró-democracia de todo o espectro ideológico para isolar e derrotar extremistas antidemocráticos”.

Quando eles dizem que o sistema brasileiro reagiu exemplarmente à intentona porque políticos tradicionais isolaram Bolsonaro, e portanto foram leais à democracia, parecem ignorar que, até a véspera da eleição, a metade do espectro político à direita estava fechada com ele — incluindo o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira.

Se ele foi ágil para reconhecer a vitória apertada de Luiz Inácio Lula da Silva, possivelmente foi menos por lealdade à democracia e mais por fisiologismo clássico do Centrão, por sobrevivência. Isso é algo que os próprios autores reconhecem: o fato de que a direita americana só tem o Partido Republicano como expressão limita sua atuação. No Brasil, a reacomodação acontece, mas isso não quer dizer que seja por apreço à democracia. Além disso, o partido de Bolsonaro, o PL, é o de maior bancada no Congresso, ainda o abriga em suas fileiras, não só não esboça punição a todos os ataques à democracia que o ex-presidente fez como segue promovendo eventos em que ele é protagonista e onde ainda mina as instituições democráticas. Valdemar Costa Neto, presidente da legenda, chegou a dizer que “99% do pessoal” no 8 de Janeiro era “gente de bem”. Mesmo a CPMI dos Atos Golpistas, apontada pelos autores como marco da reação democrática, foi inicialmente motivada por uma inversão completa dos fatos e era desejada pelos bolsonaristas para emparedar o governo eleito. Isso tudo sem contar a força política dos militares, essa peculiaridade latino-americana. Os fardados apadrinharam a erosão da democracia, não foram punidos e seguem angariando mimos e agrados do novo governo.

Numa análise mais detida do caso brasileiro, o que nos diferencia dos americanos e talvez nos tenha salvado é a robustez da nossa legislação eleitoral e a jovialidade de nossa Constituição, mais moderna em mecanismos e no entendimento da democracia. Claro que juízes mais complacentes poderiam ter se omitido na aplicação dessas leis, algo que Alexandre de Moraes não fez. Mas sem um conjunto de regras uniforme no país não haveria Alexandre que segurasse o atentado golpista. Na conjuntura da eleição de 2022, ajudou, ainda, a concorrência de um líder bastante popular como é Lula — o que facilitou a rápida adesão dos políticos semileais ao novo governo. No rescaldo, o Tribunal Superior Eleitoral agiu para tornar Bolsonaro inelegível.

Levitsky e Ziblatt apontam também como o Brasil está ainda mais longe de ser uma democracia multirracial do que os EUA. Embora seja absolutamente irrefutável o nível de racismo e desigualdade no Brasil, o fato de não termos tido na história recente uma segregação oficial de Estado impediu que políticos de qualquer espectro adotassem um discurso abertamente racista. O Brasil tem uma maioria de negros e pardos autodeclarados desde 2007 (o primeiro censo do Brasil, de 1872, já apontava para uma maioria de negros e pardos) e o voto aqui hoje é majoritário e direto. Isso é intocável — pelo menos tem sido até aqui. O custo político de tentar suprimir a votação negra e parda por vias legais seria impagável. Na impossibilidade de fazer isso com legislação, Bolsonaro tentou essa façanha com as blitze da Polícia Rodoviária Federal, o que foi imediatamente reprimido pelo ministro Alexandre de Moraes, do Tribunal Superior Eleitoral. Esse acesso pleno ao voto garante, de alguma forma, que o voto de um negro pobre tenha exatamente o mesmo peso do voto de um branco bilionário. Aqui, sim, pode estar o que nos salve.

No caso americano, o que os autores sugerem como salvação passa muito por aí. Eles denunciam como as grandes coalizões contra autocratas têm prazo de validade, no sentido de que rapidamente uma parcela da população pode enxerga-las como “coniventes, excludentes e ilegítimas”. A democracia militante, uma segunda estratégia de enfrentamento, também tende a ser excessivamente agressiva e excludente e gerar uma reação perigosa. Como saída, eles elegem um princípio de um dos fundadores da república americana, James Madison. A ideia de que a melhor maneira de suplantar minorias extremistas é pela competição eleitoral. “Madison achava que a necessidade de conquistar maiorias populares domesticaria as tendências políticas mais sinistras”, dizem. Para isso, é preciso reformar o sistema eleitoral americano, reconhecer o desequilíbrio causado pelo excesso de mecanismos constitucionais contramajoritários, abraçar o fato de que mais gente de diferentes perfis pode e deve votar. Democracia para valer e multirracial. Ou, para usar a citação que eles reproduzem, da reformista americana Jane Addams: “A cura de todos os males da democracia é mais democracia”.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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