Edição de Sábado: Trump 2.0

No dia seguinte ao Natal, Donald J. Trump compartilhou em sua conta na rede Truth Social uma nuvem de palavras. Ela era fruto de uma pesquisa do Daily Mail, que havia perguntado a potenciais eleitores americanos o que os prováveis presidenciáveis, Trump e Joe Biden, querem de um eventual segundo mandato. (Tanta condicional é porque o voto é facultativo, indireto e ambos ainda precisam ganhar suas respectivas primárias no Partido Republicano e no Democrata.) Bem no centro, ampliada e em vermelho, estava a palavra “revenge”. “Power” aparece adjacente, quase do mesmo tamanho, em laranja-Trump. “Dictatorship” e “dictator” também estão por ali. O post não tem legenda, mas o ex-presidente não é de publicar nada de que não se orgulhe. Ele estava se gabando.

Há algumas palavras em inglês que giram em torno da ideia de vingança. “Revenge” é a mais precisa. “Retribution” é a mais agressiva, quer dizer “punição severa e merecida", de acordo com o dicionário Cambridge. “To get even” é uma maneira de dizer “estamos quites”. E há ainda “vindication”, que embute a ideia de se corrigir o que se acredita ser uma injustiça. Trump já usou todas. Mas “vindication” tem ficado para trás. “I don't get too angry, I get even” — ou algo como “Eu não fico com raiva, eu dou o troco” — foi como ele escolheu celebrar sua vitória nas primárias de New Hampshire. O homem que ama ganhar estava possesso. Queria que Nikki Haley, única adversária remanescente na disputa do Partido Republicano depois da desistência de Ron DeSantis, também cedesse e entregasse para ele a candidatura à Presidência. Mesmo com chances parcas de reverter o que já é dado como uma vitória certa de Trump, ela permaneceu. E ele não aceita ser contrariado.

Como na maioria dos casos de políticos como ele, não dá para acusá-los de não expor exatamente o que eles pretendem fazer e o que pensam. Ao contrário, o que assombra muitos é frequentemente o que seduz os que os escolhem. Por isso mesmo, se torna slogan. Trump já deixou cristalino o que almeja empreender se for eleito novamente — e com que sentimentos lubrificará sua campanha. Num misto de vitimização com desejo de vingança, o ex-presidente vem aditivando seus seguidores a acreditar que ele é perseguido politicamente e, portanto, se e quando na Casa Branca, terá total direito de retribuir, punindo adversários, radicalizando sua agenda, desbastando a democracia americana para atender sua vendeta.

As 91 acusações em quatro processos? Caça às bruxas. A insurreição de 6 de janeiro de 2021 que resultou em cinco mortes? Pessoas de bem lutando por liberdade. A vitória de Joe Biden em 2020? Fraude eleitoral. A derrota republicana nas eleições de meio de mandato de 2022? Incompetência de correligionários, não sua. Trump tem sempre na ponta da língua afiada uma desculpa para suas ações ou erros que, fosse outro o sujeito, seriam indesculpáveis. E uma parte expressiva do eleitorado americano está sempre disposta a crer nela. É justamente na outra parte, que inclui conservadores, que reside a chance de Trump não ser o 47º presidente dos Estados Unidos.

Angry

A ameaça mais concreta que Trump enfrenta para retornar à Casa Branca é o quanto uma condenação criminal pode enfraquecê-lo. Não por impedi-lo de concorrer ou governar — a Constituição dos Estados Unidos não tem dispositivos para banir condenados da política. Mas porque uma parcela relevante dos eleitores não aceita essa ideia. Uma pesquisa da Reuters de dezembro mostrou que apenas 25% dos eleitores disseram que votariam em Trump se ele fosse condenado por um crime. Quase 60% dos eleitores em geral — e 31% dos republicanos — disseram que não o apoiariam. Na prática, isso inviabilizaria sua vitória. Várias outras sondagens indicam o mesmo.

Essa é uma das razões de sua ira pós-New Hampshire. Quanto antes o Partido Republicano topar embarcar em sua candidatura, antes ele poderá concentrar sua estratégia em lutar contra as condenações na Justiça. Para acusar o sistema de ser partidário, pró-Democratas, primeiro ele precisa ter seu próprio partido unido em torno de si. Não que ele venha desperdiçando oportunidades de caçoar da Justiça. Nesta semana, num dos processos a que responde (por difamar E. Jean Carroll depois de ela acusá-lo de agressão sexual), Trump compareceu ao julgamento sem necessidade. Na seleção do júri, quando os potenciais jurados foram perguntados se acreditavam que as eleições de 2020 tinham sido roubadas, três levantaram a mão. Trump também levantou.

Na quarta-feira, o advogado de Carroll disse que Trump estava atrapalhando por “resmungar” constantemente que o julgamento era uma “fraude” e uma “caça às bruxas”. O juiz ameaçou expulsá-lo. Trump respondeu: “Eu adoraria isso”. Trump acabou condenado a pagar US$ 83,3 milhões a Carroll pelas declarações que fez em 2019 a difamando e negando suas acusações de estupro. Enquanto os argumentos finais e o veredito eram pronunciados em Manhattan, o ex-presidente saiu intempestivamente e embarcou em seu avião. Quando sua foto de detento (“mug shot”) finalmente foi divulgada, Trump a transformou em camisetas de propaganda eleitoral. Por enquanto, os processos têm servido de palanque mais que seus próprios comícios, que andam reduzidos de estádios a salões de hotéis.

Há dois aspectos importantes nos percalços que Trump enfrenta na Justiça. De um lado, a Suprema Corte americana tem menos espaço para atuar de ofício ou com a veemência, autorizada implicitamente por outras instituições, que o Supremo Tribunal Federal brasileiro usou para conter Jair Bolsonaro. Em parte, porque, seguindo a cartilha de como assassinar uma democracia, em seu primeiro mandato Trump aparelhou o quanto pôde o Judiciário para favorecê-lo — segurou indicações, apontou três juízes ultra-alinhados, etc. Mas em parte porque, pela tradição americana, a Justiça evita ao máximo interferir na prática política e no resultado eleitoral, especialmente depois do trauma da eleição de George W. Bush.

Não à toa é consenso entre os analistas americanos que a tendência dos magistrados no julgamento sobre se Trump pode estar nas cédulas das primárias no estado do Colorado (e a repercussão disso para outros estados) por ter insuflado a insurreição no Capitólio é de usar tecnicalidades para justificar que, sim, ele pode, sem entrar no mérito de sua real participação na invasão. Numa breve explicação, a corte do Colorado disse, por 4 votos a 3, que uma cláusula da 14ª Emenda da Constituição americana estabelece que qualquer pessoa que “se envolva em insurreição ou rebelião” depois de prestar juramento à Constituição está proibida de ocupar qualquer cargo público. A defesa de Trump diz que ele não participou em insurreição alguma e, mesmo que tivesse participado, isso não se aplica a presidentes. Evitando julgar diretamente o papel de Trump no 6 de Janeiro, a Suprema Corte tende a decidir apenas se o Colorado podia opinar sobre isso e se presidentes estão sujeitos a essa vedação.

Dos outros quatro casos contra Trump, dois são acusações no nível federal, apresentadas pelo procurador Jack Smith (sobre a tentativa de subverter os resultados das eleições de 2020 e o uso indevido de documentos confidenciais). Apesar de programados para ir a julgamento no primeiro semestre, é quase certo que serão adiados. Ainda que Trump seja condenado, e até preso, antes da eleição, ele pode concorrer à presidência. Se ganhar, pode se autoperdoar. Ele diz que não faria isso, mas não por que não pudesse, e sim porque não fez nada errado. Nos outros dois casos, estaduais, Trump não poderia se perdoar. Mas analistas veem poucas chances de ele ter de cumprir tempo de prisão se condenado. O efeito maior seria mesmo na sua imagem.

Os democratas sabem do gume duplo dessa lâmina. Seria vantajoso que uma condenação viesse logo? Muito provável. Mas ela também poderia sair pela culatra ao reforçar a narrativa de vitimização. No esforço de não aparentar ser partidário e retroalimentar o vitimismo de Trump, o Departamento de Justiça do governo Biden se absteve de dar um parecer no caso da 14ª emenda, por exemplo. Numa outra ponta, em uma estratégia eleitoral bastante questionada, o Partido Democrata injetou algo perto de US$ 50 milhões em campanhas republicanas nas primárias do ano passado para ampliar o alcance de candidatos mais extremistas — por acreditar que eles seriam mais fáceis de derrotar, como de fato foram. Movimento arriscadíssimo. Tamanho empenho em se aproveitar da fragilidade do momento ou de não passar a imagem de estarem agindo ostensivamente na defesa da democracia pode acabar facilitando sua ruptura.

Mas, de outro lado, a Justiça americana e os eleitores são menos lenientes politicamente com uma condenação em primeira instância. Trump tem acusações de todos os tipos, em processos que vão da tentativa de reverter o resultado das eleições à retenção de documentos sigilosos e sensíveis, passando por propina a ex-atriz pornô. A aparente demora no julgamento pode ser frustrante para aqueles desejosos de um desfecho ágil que inviabilizasse sua candidatura. Pode, também, ser fruto de casos bem construídos, sem espaço para questionamentos sobre partidarismo, que o deixem sem escapatória. De qualquer maneira, parece temerário que condenações aconteçam depois de uma eventual vitória eleitoral de Trump. Ainda mais se ele cumprir a promessa de ser um ditador apenas por um dia, o primeiro, e levar a cabo a ideia de aumentar os poderes presidenciais e instituir imunidade total a si mesmo.

Nem só das páginas policiais e judiciais virão as emoções do cada vez mais provável repeteco da disputa entre Biden e Trump. Dois outros temas devem tomar conta da briga. O primeiro é a economia. Biden tem acumulado bons resultados nessa área recentemente, e mais boas notícias estão por vir, com índices apontando crescimento na atividade econômica mesmo diante de uma inflação em queda. Há estudos que mostram que a memória do eleitor está mais ligada à inflação ao longo de todo o mandato do que aos números próximos do pleito — e foi sob Biden que os EUA viram recordes históricos de alta de preços. Ainda assim, aos poucos os americanos estão sentindo os efeitos positivos das medidas econômicas do democrata, com aumento na confiança do consumidor e no emprego.

Outra pauta que tende a ajudar Biden é a ofensiva conservadora contra os direitos reprodutivos femininos, notadamente o aborto. Nas eleições de meio de mandato, em novembro do ano passado, a rejeição a esse ataque já foi sentida pelos Republicanos. Muitas mulheres foram às urnas expressar seu descontentamento. Na Pensilvânia, um estado considerado pêndulo, uma pesquisa mostrou que 35% dos eleitores citaram o aborto como o tema mais importante hoje, e 29%, a inflação. Biden e sua vice, Kamala Harris, têm investido nessa questão para conquistar votos. E, embora já esteja bastante claro que Biden é unanimidade no quesito “não empolga”, sua vitória nas primárias de New Hampshire, sem que seu nome sequer estivesse nas cédulas, revela uma adesão potencial maior do que se imaginava a sua candidatura. Sua idade avançada é frequentemente o alvo dos ataques de adversários. Mas ele se mostra consistentemente o democrata com maior chance de atrair votos de independentes e conservadores moderados.

Even

Fato é que Donald J. Trump chega às eleições pontuando como líder na corrida nas pesquisas. Biden, até aqui, ainda não apresentou uma visão diferente da de 2020 sobre como derrotá-lo — e a expectativa de que uma epifania do que Trump realmente representa para a democracia dominasse os eleitores ou seus correligionários se mostrou infundada. Ele está fortalecido por um partido que se rendeu a sua retórica agressiva e inconsequente. E com sede de vingança, no melhor estilo Charles Bronson de uma Sessão das 10.

Além dos discursos com as variações sobre o tema, as linhas gerais de seus planos de governo deixam claro tanto sua intenção de fazer seus adversários sofrerem quanto de radicalizar sua agenda. Em seu site oficial, há uma seção chamada Agenda 47. Ali estão algumas das propostas, em sua linguagem usual: esmagar o “deep state” (traduzindo, toda burocracia estatal que impeça seu devaneio autoritário); criar a Academia Americana, novo sistema de ensino universitário, gratuito, em contraste com o atual, que “transforma os nossos estudantes em comunistas, terroristas e simpatizantes”; pena de morte para traficantes de pessoas; implementar a Lei de Comércio Recíproco de Trump, em que “outros países terão duas escolhas: livrar-se de suas tarifas sobre nós ou nos pagar bilhões de dólares”. A política externa que Trump vem sugerindo, seja em comércio ou em alianças estratégicas, em particular na afinidade com Vladimir Putin, merece uma reportagem a parte, mas já faz a China e a Europa se prepararem para o pior.

Está lá também a proposta de banir a cidadania automática para filhos de imigrantes ilegais que nasçam no país. Há várias outras referentes a imigração, tema absolutamente central de sua campanha. Ele promete o programa de deportação mais amplo e feroz da história. E essa é uma área em que Biden não conseguiu encontrar o tom certo de discurso e ação. Prova disso é a disposição do governador do Texas de desafiar o governo federal e a Suprema Corte em sua decisão de que fosse retirada uma barreira de arame da fronteira com o México. E a formação de milícias paramilitares para lutar na fronteira, com incentivo de Trump.

Mas o plano de governo de Trump não é feito só de bravatas e formulações extravagantes, como a ideia de poder comandar que militares americanos ataquem cidades do próprio país. Há ao menos dois think-tanks construindo políticas públicas para implementar a visão de mundo trumpista, o America First Policy Institute e a Heritage Foundation. Além de rascunhar as propostas, que incluem o esfacelamento das burocracias do Estado que poderiam resistir às iniciativas antidemocráticas de Trump, as entidades já estão fazendo a triagem dos mais de 4 mil servidores públicos que poderiam ser indicados por Trump (1,2 mil deles têm de ser aprovados pelo Senado). Requisito 1 no “LinkedIn conservador”, como a triagem foi apelidada: lealdade absoluta ao trumpismo. Ou seja, se eleito novamente, Trump chegaria ao poder mais preparado, com servidores ainda mais fiéis, sem freios por dentro da máquina pública e com uma Suprema Corte aparentemente alinhada.

A visão de mundo que Trump quer empreender é, acima de tudo, autocentrada. Por isso, muitos cientistas políticos apontam para o fato de que ele não é um líder partidário, mas líder de um movimento — que acabou engolindo o partido. Isso o torna um bicho indomável.

Quando Steven Levitsky e Daniel Ziblatt roteirizaram como autocratas estavam matando democracias pelo mundo, eles foram certeiros no diagnóstico de que a reeleição é passo fundamental para a deterioração das instituições que sustentam o ambiente democrático. Eles não avaliaram, porém, o que acontece quando um aspirante a autocrata não se reelege na sequência, mas depois de um hiato. A candidatura de Trump sugere, até aqui, que, ao não ser impedido de voltar a concorrer e eventualmente retomando o poder, o autocrata pode retornar ainda mais perigoso. Como se estivesse endossado de forma mais ampla e contundente pela frágil democracia que o eleger. O tipo de porta que isso abre para a extrema direita pelo mundo é insondável. E não terá sido por falta de aviso do próprio Trump.

Nelson, acima de tudo Rodrigues

Nelson Rodrigues (1912-1980) não foi somente o maior dramaturgo brasileiro, foi um dos maiores escritores, desnudando a hipocrisia moralista da sociedade em peças, colunas de jornal e romances, alguns dos quais permaneceram inéditos até bem depois de sua morte. Embora ele próprio se declarasse um reacionário, sua obra revolucionou a cultura brasileira. Mas Nelson era bem menos singular do que se pode supor. A compreensão do Brasil que marca seu trabalho era uma característica familiar.

Seu pai, Mário Rodrigues (1885-1930), jornalista de ampla cultura, intensa atividade política e gosto pela polêmica, fez nome em Pernambuco e mudou-se com a família para o Rio, então capital do país, para, no comando de jornais como o Correio da Manhã e seu diário A Crítica, mudar a imprensa carioca.

Três de seus irmãos foram notáveis em suas áreas. Mário Filho (1908-1966), fundador do Jornal dos Sports, foi quem primeiro identificou o futebol como uma paixão popular, tornando-se um dos maiores incentivadores dos esportes no país. Joffre Rodrigues (1915-1936) fez a ponte entre os morros e o asfalto cariocas, organizando os primeiros desfiles de escolas de samba. E Roberto Rodrigues (1906-1929), ilustrador, era um ícone da arte moderna, assassinado em plena redação d’A Crítica por uma mulher, alvo de matéria sensacionalista do jornal.

No entanto, hoje todos estão virtualmente esquecidos – não contando Mário Filho ser o nome oficial do estádio do Maracanã.

O pesquisador, editor, diretor e produtor teatral Caco Coelho decidiu resgatar a memória dessa família e preencher uma lacuna na cultura brasileira. Editor da obra de Nelson, ele lançou em dezembro o livro Dossiê Rodrigues­ - A Genealogia (Ed. Mecenas), abrangendo o período de 1900 a 1934. Diferentemente da biografia O Anjo Pornográfico, de Ruy Castro, focada na vida do dramaturgo, e do estudo Nelson Rodrigues - Dramaturgia e Encenação, de Sábato Magaldi, que olha apenas sua produção teatral, as mais de mil páginas do Dossiê procuram traçar uma biografia da obra dos Rodrigues.

Caco conversou com Meio sobre seus notáveis personagens e o que lhe revelaram os 25 anos de pesquisa dedicados ao projeto. Confira os principais trechos da entrevista.

De que forma Mário Rodrigues ajuda a formar o escritor Nelson Rodrigues
Na obra literária do Nelson, a cultura vem do Mário, o conhecimento, a paixão pelo Brasil. Eles, os Rodrigues, são cúmplices, autores e pronunciadores daquele sentimento de brasilidade que nascia. Paixão não só pelo Brasil que é, mas pelo Brasil que poderia ser e não é. Tanto que abro o livro com uma citação do Nelson: “O Brasil precisa ser feito, e nós não fazemos.” Enfim, Mário era de uma cultura assombrosa. Seus primeiros textos, escritos ainda com 14 anos, trazem citações com solidez de conhecimento. Sua inteligência era respeitada até por adversários figadais, como Assis Chateaubriand (dono dos Diários Associados), segundo o qual ninguém parava em pé diante da pena de Mário Rodrigues. E, ao mesmo tempo, era de uma de um envolvimento, de uma sensibilidade e uma afetuosidade tremenda. Aquele que ele destruía de manhã, de tarde ele abraçava e recebia com o maior afeto. Então, é Mário quem arma essa dialética para todos os Rodrigues. Não haveria uma peça ou uma linha de Nelson se Mário Rodrigues não tivesse apontado esse caminho. Aponta como se dissesse “esse é o caminho que precisamos criar de sensibilidade brasileira”.

E qual a consequência desse abraço à brasilidade?
A consequência é que eles vão ser os primeiros a perceber a paixão pelo futebol e pelo samba, vão ser os primeiros a nortear a maneira como se lê o jornal, a presença do jornal na nossa literatura e também no modo de entender o país. Joffre Rodrigues, irmão de Nelson, era um poeta deslumbrante, que vai ter grande influência no que chega a nós como rodrigueano. Rodrigueano é um insight. Nasce como um emblema do Mário Rodrigues, passa pela percepção que Mário Filho teve ao fazer as primeiras entrevistas no país com jogadores de futebol. Foram muito mais de 100. Se fomos percebidos como país do futebol, muito disso se deve a Mário Filho. O próprio estádio do Maracanã, que hoje leva o nome dele, é fruto de uma mobilização que ele capitaneou. Roberto Rodrigues foi considerado o maior desenhista das Américas, o sujeito que levou Cândido Portinari para a Escola de Belas Artes. Joffre, além de poeta, foi criador dos desfiles de escolas de samba. Havia uma programação intensíssima de carnaval no Rio, com clubes, blocos, as grandes sociedades, de onde vieram os carros alegóricos, mas foi Joffre que trouxe dos morros as escolas de samba. E hoje não há uma linha sobre eles.

E como pessoas que foram tão influentes na cultura do Rio acabaram virtualmente esquecidas?
Eu fui exatamente atrás da resposta para esse vil silêncio, nada inocente. Como é um dossiê, em vez de responder, preferi oferecer condições para que as pessoas entendam do que se trata, inclusive trazendo a complexidade de lados dos embates. A resposta que eu encontro é que nós, brasileiramente, temos um apagamento da História. O que Mário e os filhos faziam era falar, escrever e promover um Brasil que infelizmente não temos, mas poderíamos ter tido. Mário Rodrigues fez campanha de implantação de trens no Nordeste, que até hoje não foi feita, nos anos 1910. Na década seguinte já enxergava que o álcool era o combustível que nós deveríamos usar. Havia também a questão política. Desde 1922 Mário era ligado ao movimento dos tenentes. Ele passou a noite no Forte de Copacabana como os 28 revoltosos – que entraram para a História como os 18 do Forte. Foi preso em 1926 e passou mais de um ano na cadeia. Mas, nas eleições de 1930, apoiou Júlio Prestes, o candidato oficial, por conta de um conflito com o ex-presidente Epitácio Pessoa, tio de João Pessoa e articulador da aliança em torno de Getúlio. Epitácio mandara prender Mário por conta de uma reportagem. Com a revolução de 1930, já depois da morte de Mário, uma multidão depredou as instalações d’A Crítica. Na época a expressão era “empastelar”.

O que te motivou a resgatar essa memória?
O filósofo franco-argelino Jacques Derrida dizia que toda pesquisa é um instrumento para o futuro. Ela olha para o passado para aprender. A chama que levou foi essa. Eu me indagava qual a grande questão de Nelson. Era a traição? E aí concluí que a única questão dele era a brasilidade. A manifestação sensual, a alma feminina, tudo isso é instrumento de percepção da brasilidade.

Mas não há um conservadorismo nessa visão pecaminosa do sexo na obra dele? Na ideia de que toda nudez será castigada?
Eu tento oferecer instrumentos para compreender exatamente essa dialética que há na ideia de que toda nudez será castigada. A sociedade não condena a nudez? Não se mostra conservadora mentirosamente? Não tenta falsamente dizer que não é racista? É preciso entender que, ao mostrar isso, ele está fazendo uma denúncia. Não está passando a mão na cabeça, não está de acordo. O próprio Nelson contribui para essa confusão. No momento que ele chama a si mesmo de reacionário, e nós acreditamos, perdemos a profundidade da obra e ficamos numa superfície iludida por uma palavra ambígua. Ele, na verdade, se dizia reacionário por defender a liberdade individual. Em Álbum de Família, ele mostra uma sociedade repressora, machista e autoritária. Tira o manto azul da culpa e o sacode, soprando a poeira para nos mostrar como verdadeiramente somos. A vida como ela é. E nessa dialética há uma poética.

O que despertou essa paixão pela obra do Nelson?
Foi um movimento naturalmente teatral. Eu na infância já o via na TV em programas esportivos. Aquilo ficou, e mais tarde, já no Rio de Janeiro, eu me vinculei muito ao teatro por ser então casado com a atriz Vera Holtz. Foram oito anos no palco, ela como atriz, eu como produtor. Em 1989, Vera fez a novela Que Rei Sou Eu na TV Globo, interpretando a assistente do bruxo Ravengar, vivido pelo Antônio Abujamra. Eu e ele nos tornamos muito amigos e criamos uma companhia teatral para Vera, os Fodidos Privilegiados. Fodidos por fazermos teatro, privilegiados idem. Na imprensa éramos “F... Privilegiados”. Nossa terceira montagem foi A Serpente, última peça do Nelson, que eu e Abu dirigimos. Anos depois, um amigo me falou de um espetáculo em Nova York em cima de compêndios das peças de Shakespeare, e eu, numa reunião da companhia, propus fazermos isso com o nosso maior dramaturgo, o Nelson.

Chegaram a montar?
Então, um dos diretores da companhia, Tanah Corrêa, que faleceu no ano passado, lembrou que naquele momento a família do Nelson ainda estava com uma preocupação grande de envelopar a obra teatral, para que não se mexesse. Foi quando o Abujamra propôs irmos além do teatro. Eu mergulhei nas biografias do Nelson e descobri que havia um conjunto de obras inéditas. Nos enfurnamos na Biblioteca Nacional e localizamos a primeira leva de romances. Nós entregamos Núpcias de Fogo para o Ruy Castro, que ainda era o editor da obra do Nelson. Depois eu, já como o editor, publiquei A Mentira, primeiro romance que ele assinou com seu nome. Localizamos as colunas, o romance e as cartas que ele assinou como Myrna e o último romance como Suzana Flag.

O que você concluiu dessa pesquisa na obra inédita de Nelson?
Eu proponho uma classificação da obra dele diferente, mas não antagônica à do Sabato Magaldi. Não se conhecia todo esse material nem se percebia o quanto a cronologia influiu na obra do Nelson. Cada vez que ele mudava de local de trabalho havia uma divisão estilística na obra. Além disso, quando se promove o cruzamento entre o romance e as peças, percebe-se que todos estão ligados. Tudo o que nós vemos na peça A Valsa, aquele ambiente familiar melífluo, está no romance O Homem Proibido. Da mesma forma o romance A Mentira e a peça Viúva, Porém Honesta. Eu vejo três trilogias claras na obra teatral do Nelson. Primeiro a “tragédia brasileira”: Álbum de Família, O Anjo Negro e A Senhora dos Afogados. Depois a “trilogia do jornal”, na qual as redações têm uma grande importância: Boca de Ouro, O Beijo no Asfalto e Bonitinha, Mas Ordinária. E a “trilogia mundana”: Os Sete Gatinhos, Perdoa-me Por Me Traíres e Viúva, Porém Honesta. Aliás, há um deslize na interpretação do Sábato. Ele diz que Nelson inventou seu mundo. Não. Álbum de Família fala de Casa Grande e Senzala, dos porões da família colonial. O mundo dele é o Brasil.

'Pitchfork’ e o fim da web que já foi

Fiquei triste quando soube esses dias que o Pitchfork vai acabar. Pitchfork é um daqueles sites que pareciam estar na web desde sempre. Lembro que ele estava no mapa de sites de música que desenhei com dois sócios quando estávamos criando o Novamúsica, minha primeira tentativa de startup, ainda antes do estouro da bolha no começo do ano 2000.

O anúncio do fim do Pitchfork foi feito num email interno, enviado pela notória Anna Wintour, Chief Content Officer da Condé Nast, editora de revistas que comprou o site em 2015. O conteúdo do Pitchfork vai ser incorporado ao da GQ, uma das revistas da editora. A história do fim do Pitchfork é também a história de como as plataformas estão mudando radicalmente o mercado de mídia digital.

Casey Newton, editor da Platformer, faz a cronologia da importância do Pitchfork: “Eu estava entrando na faculdade naquele início dos anos 2000 e considerava o bom gosto musical um pilar da minha identidade, então, em retrospecto, era inevitável que eu passasse a ler o Pitchfork religiosamente. Lembro de rir alto das resenhas, que muitas vezes tinham milhares de palavras e às vezes pareciam ter pouco a ver com a música em si. Com o tempo, porém, passei a apreciar o vasto conhecimento musical possuído até mesmo pelo mais ocasional freelancer do site. E, além de profundo, o Pitchfork era extremamente opinativo. Em uma época em que a Rolling Stone e outras revistas de música estavam carimbando quase todas as resenhas com uma mediana avaliação de três estrelas, o Pitchfork fazia questão de provocar conflitos. Como a maioria das grandes publicações, a Pitchfork se tornou popular ao fazer um trabalho para seus leitores: nesse caso, vasculhar a vasta paisagem da música gravada para identificar o que valia a pena ouvir. Quando foi fundada, em 1996, havia duas maneiras principais de ouvir música nova: uma era ouvir o rádio. A outra era dirigir até uma loja e pagar US$ 18 por um CD. E para os jovens que ela atendia, para quem US$ 18 era muito dinheiro, a publicação fornecia um serviço valioso.”

“Mas não durou muito. O Napster chegou em 1999, trazendo consigo a proposta atraente para os consumidores de que a música deveria ser gratuita. A Apple lançou a loja iTunes em 2003, iniciando uma tendência que viu as pessoas se afastarem de ouvir os álbuns que o Pitchfork se especializava em resenhar e se voltarem para os singles. A mudança mais importante chegou em 2006, quando o Spotify foi criado. (Chegou aos Estados Unidos cinco anos depois.) O Spotify era o Napster, mas legal: uma jukebox celestial que permitia ouvir quase tudo o que você pudesse imaginar, sob demanda e por alguns centavos por dia. Em resposta, o Pitchfork se aprofundou em seu papel de historiador e curador. Sua excelente série Sunday Reviews oferecia resenhas retrospectivas ponderadas de álbuns clássicos, iluminando a maneira como uma boa crítica pode contextualizar, reformular e desafiar o senso comum. Mas então algo inesperado aconteceu: o Spotify, à sua maneira, também se aprofundou no papel de historiador e curador. A princípio, o Spotify contava com seres humanos para criar playlists. Como a música podia ser toda consumida no ponto de curadoria, as playlists do Spotify se tornaram grandes formadoras de opinião.”

“A partir de 2020 o Spotify começou a investir em playlists criadas por IA. Como muitas inteligências artificiais, essas recomendações começaram medianas, mas melhoraram significativamente com o tempo. Neste ponto, é claro que o Spotify entende minha idade, que música eu ouvia no ensino médio, quais gêneros eu mais amo e quais lacunas existem no meu conhecimento musical. A cada semana, ele trabalha de forma gentil, mas incansável, para preencher o que está faltando. Em um nível, é impressionante que o Spotify possa capturar perfeitamente meu gosto musical em uma série de pontos de dados e regurgitar isso para mim em uma série de playlists semanais. Mas, por mais que tenha melhorado, não consigo me lembrar da última vez que ele me apontou algo que eu nunca esperava gostar, mas que acabei amando totalmente. Para isso, você precisava de alguém que pudesse ir além dos dados para contar a história: do artista, do gênero, da música que eles fizeram. Para isso, você precisava de crítica.”

Além da perda essencialmente musical, o fim do Pitchfork talvez seja visto no futuro como o fim do sonho de uma web que já foi. Uma web aberta em que o link era soberano e os usuários navegavam de forma fluida de site para site. Entramos definitivamente na era das plataformas, cada uma defendendo seu cercadinho.

Recesso do Congresso e do Judiciário = leitores mais interessados em temas diversos. Eis os links mais clicados da semana:

1. Politico: Os gatos guerreiros da Ucrânia na guerra com a Rússia.

2. Meio: Meio Explica — Drex, o manual definitivo da moeda digital brasileira.

3. Meio: Ponto de Partida — Quem é, politicamente, Domingos Brazão?

4. Molekada: Atividades para fazer com os pequenos.

5. g1: O Japão pousou na Lua. E mandou uma foto.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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