Edição de Sábado: O negócio da cannabis

As frases pausadas do ministro André Mendonça pareciam ter a intenção de alertar que algo muito grave estava prestes a acontecer. No julgamento sobre a quantidade de maconha que uma pessoa pode portar sem configurar crime, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) se esmerou em passar uma receita baseada no fundamento de que um grama de maconha dá para fazer “3.4 cigarros”. E seguiu na progressão geométrica: “10 gramas, 34”, disse Mendonça, até concluir que, em um mês, seria possível obter 6.200 cigarros com uma só planta de Cannabis sativa. Mendonça fez questão de citar a suposta produção mensal olhando bem nos olhos de seus pares. Depois de um longo silêncio dramático, proferiu: “Por tudo isso, eu entendo, em síntese, que a questão da descriminalização (...) é uma tarefa do Legislativo”.

O finíssimo calibre do “baseado” citado pelo ministro causou reações — e, claro, gerou memes. Mendonça foi além, citando as tentativas de liberação do plantio no Brasil. Parecia ciente da vigilância constante da bancada evangélica, que de certa maneira representa na Corte, sobre projetos que tramitam na Câmara e no Senado no sentido de flexibilizar as restrições à cannabis. Utilizou-se, assim, da mesma artimanha por vezes empregada por parlamentares para não deixar o debate acontecer. E é dessa forma, exagerando nas contas e misturando assuntos, que há anos não prosperam no Congresso propostas que ponderam sobre a necessidade de discutir avanços na Lei Antidrogas. Seguem paradas, em consequência disso, novas possibilidades de negócios com espécies diferentes de cannabis, produtos e subprodutos derivados, insumos medicinais, e uma série de etapas que, se bem desenhadas, poderiam ajudar a movimentar uma lucrativa e profícua cadeia de produção.

Amigos à parte

Hoje, o plantio da cannabis é um tema que começa a traçar uma linha divisória entre duas bancadas conservadoras que costumam jogar unidas. De um lado, religiosos tomam a frente para impedir qualquer flexibilização na lei e atuam para torná-la até mais restritiva. De outro, alguns ruralistas enxergam a oportunidade no cultivo do cânhamo e da cannabis. Enquanto a prática dos religiosos no Congresso é a de vetar o debate para não correr o risco de “afetar a família”, os representantes do Brasil rural repetem o lema: “negócio é negócio”.

Quando se fala de reação exagerada contra qualquer avanço, nem se coloca no horizonte uma discussão sobre o uso recreativo da maconha, como já existe no Uruguai. Isso é algo impensável no Congresso com o perfil conservador como o atual. Os exageros ocorrem contra qualquer passo que envolva a cannabis. Há quase três anos está parado na Mesa Diretora da Câmara o PL-399/15, que amplia e regulamenta as liberações de plantio da cannabis para a produção de medicamentos, tanto para uso humano quanto veterinário. O projeto de lei ainda autoriza o cultivo de cânhamo, planta que fornece fibras usadas na indústria para diversos fins e que vem sendo reintroduzida na agricultura de diversos países, inclusive na América do Sul.

O cânhamo é qualquer planta da espécie Cannabis sativa que contém menos de 0,3% de tetrahidrocanabinol, ou THC, a principal substância psicoativa encontrada nas plantas desse gênero. Esse teor é incapaz de causar alterações psíquicas. E do cânhamo se aproveita a planta toda. Os caules são transformados em fibras, que servem para fraldas, sapatos, cordas, papel e embalagens. As folhas também podem ser transformadas em polpa, utilizada para papel e embalagens, cimento, camas para pets e fibra de vidro. É da flor que se retiram os extratos, utilizados para produção de óleos e destilados. Já as sementes podem ser transformadas em óleos, usados como azeite, margarina, suplementos, biocombustível, solventes, bioplásticos, cosméticos, além de serem utilizadas cruas em alimentos, como na granola.

Vale lembrar que a Lei Antidrogas proíbe em seu artigo 2º “as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração”. Só que essa lei também diz que a União “pode autorizar o plantio, a cultura e a colheita da cannabis (...) exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização”. A lei não menciona, entretanto, o cultivo para fins industriais. E é aí que o Brasil perde dinheiro, na visão do agronegócio. O PL 399/15 amplia a permissão para esse setor explorar um mercado totalmente novo no país. Só que essa permissão esbarra na ideologia da bancada religiosa.

‘Brownie de maconha não pode’

Em junho de 2021, esse projeto foi aprovado por uma comissão especial e tinha caráter terminativo, ou seja, uma vez aceito pelo colegiado da Câmara, poderia seguir direto para o Senado, sem passar pelo plenário. Mas um recurso apresentado pelo deputado Diego Garcia (Republicanos-PR) freou a tramitação. Garcia integra a Renovação Carismática Católica (RCC) e chegou a ser presidente do Conselho Diocesano na Diocese de Jacarezinho (PR). Apesar de católico, ele é membro da frente evangélica e de outras frentes conservadoras, como a da Família e de Doenças Raras. Ele também representa uma das interseções com a frente do Agronegócio.

Garcia confessa ter apresentado o recurso não para que o projeto fosse votado pelo plenário, mas para evitar que ele avançasse. “Eu acredito que o projeto não deva entrar na pauta”, disse ao Meio. “A gente apresentou esse instrumento porque o projeto passou na comissão especial, criada pelo Rodrigo Maia (ex-presidente da Câmara)”. Ele conta que a maioria dos membros da comissão era favorável à liberação não só do uso medicinal. “Alguns eram favoráveis à liberação até de todas as drogas. Era uma comissão de cartas marcadas e ia acontecer o que aconteceu.” Na visão do deputado, o projeto permite que todos possam cultivar a planta em casa, longe da regulação dos órgãos competentes — o que não está previsto no texto aprovado. “Basta alegar que vai fazer brownie de maconha que vai poder plantar sem problema algum”, exagerou o deputado.

Ao mesmo tempo, Garcia defendeu que não cabe ao Congresso autorizar o plantio de qualquer planta para fins medicinais e que não precisa de lei para isso no Brasil. De certa forma, ele tem razão, visto que a Lei Antidrogas faz a ressalva para que órgãos competentes possam emitir a autorização. No entanto, não há previsão na lei para que a União possa dar uma autorização para o plantio de espécies destinadas à indústria, como é o caso do cânhamo. Essa ressalva diz respeito apenas à parte destinada à medicação.

Alguns estudiosos do assunto também enxergam uma certa omissão do governo federal em conceder as autorizações para o plantio. “No caso do plantio para fins medicinais, já existe lei que autoriza. Bastaria uma portaria do Ministério da Saúde autorizando isso. Mas, para isso, é preciso ter um ministério da Saúde forte para enfrentar essa luta”, destacou Manuela Borges, fundadora do Instituto InformaCann, que desenvolve pesquisas no sentido de ampliar o acesso ao tratamento com a cannabis. O instituto já realizou na Câmara dos Deputados uma exposição de produtos feitos com cânhamo. A partir do dia 27 de março, essa mesma mostra estará na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), que formou uma frente parlamentar exclusivamente para tratar da cannabis medicinal e do cânhamo industrial. A frente é puxada pelos deputados Caio França (PSB) e Eduardo Suplicy (PT). França é autor da lei estadual 17.618/2023, que institui a política estadual de fornecimento gratuito de medicamento à base de canabidiol nas unidades de saúde pública do estado.

Mas se Garcia acerta quando fala da atribuição do governo autorizar o plantio da cannabis medicinal, ele erra ao utilizar o argumento de que a proposta parada na Câmara libera para qualquer pessoa ter uma plantação. Um exagero que serve à desinformação. O relator do projeto, deputado Luciano Ducci (PSB-PR), disse que já se acostumou com a prática de alguns parlamentares de fingir ignorância para emplacar um discurso ideológico sobre a proposta. “É proposital”, disse ao Meio. “Eu não posso imaginar que o Diego Garcia ou o Omar Terra queiram discutir um assunto e ler sobre ele. Nós cansamos de falar que o projeto não prevê o autocultivo, nem autorização de uso vaporizado ou fumado. Tudo isso é descartado do projeto”, disse o deputado.

E nesse imbróglio, o auxílio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), foi valoroso para empacar a tramitação e, consequentemente, uma cadeia produtiva rentável para o agronegócio. Cabe somente a Lira decidir se aceita ou não o recurso e colocá-lo em votação. Se o recurso for rejeitado, a proposta segue para o Senado. Se for aceita, a proposta é decidida pelo conjunto dos 513 deputados. Para não levar o recurso para deliberação, Lira alega a existência de muito discurso ideológico cercando a proposta e acredita que ela pode ser rejeitada. Já o relator discorda. “Acho que dá para rejeitar o recurso. Se não rejeitar, a gente pode discutir a proposta no plenário, sem problema algum. Mas tem de discutir de uma vez”, disse Ducci, que até se coloca disposto a alterações pontuais no texto. Esse é um ano que antecede a eleição para a sucessão nas duas casas legislativas, o que diminui a disposição de pautar projetos polêmicos. Lira, que pretende fazer seu sucessor, e os demais candidatos à vaga tendem a não enfrentar segmentos do parlamento. Ducci, por sua vez, acredita que ainda é capaz de sensibilizar Lira mostrando o lucro que o setor do agronegócio pode ter. “Eu serei candidato a prefeito de Curitiba e não tenho problema nenhum em ter relatado isso”, comparou.

O presidente da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), Pedro Lupion (PP-PR), também é a favor de que a discussão seja feita. “Não tenho conhecimento técnico sobre isso, mas não vejo problema em discutir o tema. Se o plantio for regulado e para uso medicinal, sou a favor da aprovação”, disse ao Meio. Embora não tenha puxado esse debate para as reuniões da frente, conhecida como a bancada do boi, Lupion falou como empresário do agronegócio. As palavras de Lupion, no entanto, ecoam uma posição externada pelo deputado Alceu Moreira (MDB-RS), que, na época da discussão da proposta na comissão especial, era o coordenador da bancada do Agronegócio. Em 2020, ele disse publicamente que se o agro tivesse segurança jurídica, teria total interesse no cânhamo industrial.

Cada um na sua

Da mesma forma que a demanda por conhecimento sobre o cânhamo é crescente no setor do agronegócio, é também crescente o interesse de empresas farmacêuticas pelo domínio da produção medicinal. O diretor-executivo da Associação Nacional do Cânhamo Industrial (ANC), Rafael Arcuri, explicou que existem dois níveis de interesse a depender da destinação do produto. Para o uso medicinal, a demanda parte de um tipo de empresa específico, como as que hoje produzem insumos farmacêuticos de origem vegetal. São os IFAs vegetais, conhecidos pela sigla IFAV. Apesar de se tratar de uma planta, o tipo de cultivo é totalmente diferente das monoculturas do agronegócio. Só para se ter uma ideia, com mil hectares cultivados, é possível suprir toda demanda nacional. Trata-se de um cultivo indoor, com muito controle, porque não se podem usar agrotóxicos em plantas destinadas à medicação. “Já existem empresas grandes no país que poderiam trabalhar com isso e atender todo o mercado interno”, informou Arcuri.

Já as lavouras destinada a fornecer sementes para óleos e a fibra do caule é que devem ser formadas pelo agronegócio. “Seria mesmo uma cultura parecida com a da soja, do milho. Tanto o tipo de cultivo quanto a rentabilidade são muito semelhantes”, destacou. A ANC é uma das entidades em busca da aprovação do projeto no Congresso. Arcuri identifica que muito da resistência vem mesmo da falta de conhecimento e de alguns deputados associarem a liberação com ideais da esquerda. “A discussão acaba indo para um viés que não é o real. Mas quando se explica como foi o processo de legalização nos Estados Unidos, que foi puxado pelos conservadores de estados do Sul, eles dizem que são a favor. Mesmo assim, dizem que precisam de uma sinalização mais forte da liderança na Casa e do próprio agronegócio”, contou.

Demanda real

Enquanto o Legislativo segue paralisado, órgãos do governo e entidades privadas já estão se organizando para tentar formar o conhecimento a ser empregado tanto em grandes lavouras voltadas para a indústria quanto em produções pequenas, mas com alto grau de tecnologia, voltadas para o mercado de fármacos. E essa organização existe agora por um só motivo: há demanda dos setores produtivos por conhecimento na área. Em dezembro do ano passado, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa, instituiu um grupo de trabalho específico para pesquisas com a cannabis. O objetivo é chegar a uma condição de poder prestar esse suporte técnico e científico para os agricultores. Isso seria, na opinião de técnicos do órgão, o início do desenvolvimento de uma cadeia produtiva bem estruturada no país. O grupo de trabalho tinha 90 dias para apresentar um relatório, mas, de acordo com técnicos do órgão, esse prazo será estendido porque não foi possível apurar informações durante os recessos de final de ano.

A legislação em vigor é um dos pontos de atenção dos técnicos da Embrapa, já que ela impõe ao país uma verdadeira lacuna em relação ao que existe em outros países como Uruguai, Paraguai, Canadá, alguns países da Europa, além da China. O país asiático é o maior exportador do mundo de tecidos e papel feitos com cânhamo. Por lá, o plantio nunca foi proibido. “Hoje, nós somos importadores de matéria-prima, mesmo tendo um potencial enorme para atuar tanto no cultivo quanto na exploração, na linha industrial e medicinal”, destaca Fábio Macedo, engenheiro agrônomo, doutor em Agronomia e Fitotecnia e, atualmente, diretor do grupo de trabalho sobre a Cannabis. “Nosso trabalho se dará na internalização de materiais, melhoramentos genéticos, na pesquisa relacionada à agricultura e a pecuária com o uso dos subprodutos da cannabis. Para tentar entender esse cenário, tem que saber o que está posto hoje, na lei antidrogas e normativos da Anvisa.”

Um ponto importante colocado por Macedo é que a Embrapa pretende não só se especializar no fornecimento de conhecimento para o agronegócio. O grupo de trabalho tem o objetivo também de ajudar no processo de regulação. Isso porque existem informações não muito confiáveis circulando sobre o assunto e que trazem insegurança aos órgãos reguladores atualmente. De fato, sequer o uso medicinal da cannabis está regulamentado plenamente. “Os agentes públicos ficam com medo de dizer ‘isso pode, isso não pode’. Existe muito preconceito esbarrado nas questões ideológicas”, ressaltou. Outra iniciativa que também deverá constar no relatório do plano de trabalho da Embrapa é a formação de um “grupo multi-institucional público” para garantir o repasse das informações entre os órgãos reguladores. Recentemente, o urbanista Washington Fajardo definiu a Embrapa como a Nasa brasileira aqui neste Meio. Quem sabe não sai dali o caminho para o Brasil trilhar um tanto de progresso nessa área.

O custo invisível da Inteligência Artificial

Os avanços da inteligência artificial criaram possibilidades antes impensáveis. Dos textos às imagens, vídeos e áudio, tecnologias como o ChatGPT, GPT, Midjourney, Llama e Gemini aumentaram o apetite das empresas de tecnologia pela tecnologia e o investimento em data centers — enormes instalações que abrigam os servidores para o armazenamento online dos dados de milhões de pessoas. Com a demanda crescente, o setor também precisa de mais espaço e energia elétrica para dar conta de tanta informação. Esse é um desafio novo que, no entanto, tem pelo menos um problema antigo: o alto consumo de água e energia para alimentar essa operação.

A tecnologia de IA extrai muita eletricidade dos data centers, que correm o risco de superaquecer. Isso exige a necessidade de um alto volume de água para resfriá-los. E, com esses centros se multiplicando a cada ano, a pegada de carbono e o gasto de água se tornam uma enorme preocupação ambiental.

Big techs como Amazon, Microsoft, Google, Meta e Oracle estão expandindo suas estruturas de maneira exponencial. Em fevereiro, a Microsoft anunciou um investimento de 3,2 bilhões de euros na Alemanha nos próximos dois anos, o maior já feito no país pela companhia nos últimos 40 anos. O objetivo é dobrar a capacidade de infraestrutura de IA ali. Mas o acesso a espaço, eletricidade e água para abastecer os planos ambiciosos destas gigantes não está na mesma sintonia. Só na Europa, uma pesquisa mostrou que as taxas médias de disponibilidade de espaço nos maiores mercados do continente devem cair para um novo recorde mínimo de 8,2% este ano. Em 2023, essa taxa fechou no recorde mínimo de 10,6%.

A Microsoft mesmo opera mais de 300 data centers no mundo e é uma das que mais consomem energia e água, principalmente após virar parceira e investidora da OpenAI, dona do ChatGPT. Isso porque a startup treina seus modelos de IA exclusivamente nos servidores da big tech. Vale lembrar que o chatbot, embora tenha completado apenas um ano de lançamento, é extremamente popular, com 100 milhões de pessoas utilizando semanalmente. Já no ano fiscal de 2022, o uso de água e eletricidade pela Microsoft subiu cerca de um terço — esse foi o maior aumento já relatado pela gigante de tecnologia ano a ano.

O ChatGPT consome, em média, meio litro de água para cada 10 a 50 solicitações. Para atender essa demanda, a empresa fundada por Bill Gates adquiriu uma área de 279 acres no deserto do Arizona, nos Estados Unidos. De acordo com a The Atlantic, o terreno tem dois edifícios. Além disso, um terceiro está em construção e mais sete virão na sequência. A infraestrutura abrigará servidores e computadores de IA projetados para consumir 56 milhões de galões de água anualmente. É aproximadamente a mesma quantidade que famílias que vivem na região de Phoenix, capital do estado, consumiriam em um ano. Phoenix teve o verão mais quente de todos os tempos em 2023. O Rio Colorado, que fornece água potável e energia elétrica para a região, está diminuindo. Alguns agricultores também foram obrigados a deixar os campos e uma comunidade próxima ficou sem água durante a maior parte do ano. Os Estados Unidos concentram cerca de 30% de todos os data centers do mundo, sendo os estados do Arizona, Utah e Carolina do Sul os mais procurados para esse fim.

Enquanto isso, o último relatório ambiental do Google, divulgado em julho de 2023, revelou que a companhia usou 21 bilhões de litros de água em 2022, representando um aumento de 20% em comparação ao ano de 2021. Esse aumento também está relacionado aos esforços crescentes da empresa na IA. A escassez hídrica no Arizona, no entanto, fez com que a empresa mudasse os planos de um novo data center e optasse por uma tecnologia alternativa “arrefecida a ar” devido à falta de água na área.

O impacto da inteligência artificial no meio ambiente já é tema de estudos científicos. Pesquisadores da Universidade da Califórnia Riverside estimaram que a demanda por IA poderia exigir que os data centers absorvessem de 1,1 trilhão a 1,7 trilhão de galões de água até 2027. Outro levantamento da Holanda revelou que os servidores poderiam usar entre 85 e 134 terawatts-hora (Twh) anualmente em eletricidade. Esse valor é semelhante ao que a Argentina, os Países Baixos e a Suécia utilizam cada um em um ano. A própria Holanda foi palco de um escândalo envolvendo a Microsoft, quando foi revelado que uma das instalações da companhia estava consumindo quatro vezes mais água do que o declarado em um contexto de seca. Na Alemanha, autoridades de Brandemburgo negaram permissão para o Google construir um data center na região, alegando que a fábrica da Tesla já estava consumindo muita água.

Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE, na sigla em inglês), o consumo de eletricidade dos data centers de IA poderia dobrar até 2026. Mas a IA não é a única responsável por essa demanda. No mundo das criptomoedas, o Bitcoin e o consumo de eletricidade e água são uma polêmica antiga, que envolve mais do que apenas a economia. De acordo com um estudo publicado na revista Cell Reports Sustainability, uma única transação de Bitcoin consome a mesma quantidade de água necessária para encher uma piscina. Apenas em 2021, a mineração da criptomoeda consumiu mais de 1.600 gigalitros de água em todo o mundo. Ou seja, cada transação de Bitcoin usa 16 mil litros de água, em média. O processo é semelhante ao da IA: a mineração de Bitcoin requer um enorme poder de computação para resolver equações matemáticas. Por conta disso, é necessário usar água para resfriar os computadores de data centers e também para baixar a temperatura de usinas de energia a carvão e gás que alimentam computadores de mineração de Bitcoin, que atualmente é a maior cripto do mundo.

Por conta desse risco ambiental, governos ao redor do mundo estão intensificando a fiscalização quando o assunto é a construção de novos data centers, pois temem que esse consumo prejudique as metas climáticas estabelecidas pelos governos. Países como Irlanda, Alemanha, Singapura e China, além de um condado nos Estados Unidos, Amsterdã e Holanda, introduziram restrições a novos data centers nos últimos anos. Entretanto, as próprias big techs estudam outras fontes de energia. A Microsoft disse que vai investir em energia nuclear, além da eólica e da solar. Já a Amazon, outra empresa por trás de alguns dos maiores complexos de centrais do mundo, planeja usar biocombustível feito a partir de óleos residuais para seus geradores de backup em seus data centers na Europa, começando pela Irlanda e Suécia.

Em entrevista ao The Atlantic, Noelle Walsh, chefe da divisão de data centers da Microsoft, disse que a companhia está agindo para atingir metas ambientais do final da década. Segundo a executiva, a empresa está trabalhando em regiões com escassez de água, incluindo o Arizona, para devolver a água aos lagos e rios locais. “Mesmo com o aumento da demanda e o aumento da IA, nossas metas para 2025 permaneceram as mesmas, assim como nossas metas para 2030”, enfatizou Walsh.

Outro tipo de custo. Aqui não se trata de IA. Mas de click farms, ou fazendas de cliques. Em um novo livro, o fotógrafo britânico Jack Latham expõe as fábricas de engajamento em redes sociais de Hanoi, no Vietnã. “Quando a maioria das pessoas está nas redes sociais, elas só querem atenção — estão implorando por isso”, Latham explica o título de seu livro, Beggar's Honey. Daí, nasceu o mercado de cliques fabricados, especialmente em países da Ásia. As fotos mostram um tanto da precariedade desse trabalho, normalmente feito por jovens de baixa renda. Confira aqui e aqui algumas das imagens.

O avesso do avesso

“Você apenas pensou que havia um problema com você, mas talvez nunca tenha percebido que toda aquela vontade de ficar calado, que toda aquela vontade de permanecer quieto, pudesse ter a ver com a cor da sua pele. Que o seu receio de falar, seu receio de se expor, pudesse ter a ver com as orientações que você recebeu desde a infância: ‘não chame a atenção dos brancos. Não fale alto em certos lugares, as pessoas se assustam quando um rapaz negro fala alto. Não ande por muito tempo atrás de uma pessoa branca, na rua. Não faça nenhum tipo de movimento brusco quando um policial te abordar. Nunca saia sem documentos. Não ande com quem não presta. Não seja um vagabundo, tenha sempre um emprego.’ Tudo isso passara anos reverberando em você. Como uma espécie de mantra. Um manual de sobrevivência.”

Nas 188 páginas de O Avesso da Pele, livro de Jeferson Tenório, não consta a palavra censura. É nas entrelinhas da obra, por meio dos relatos do personagem Pedro, que se compreendem as interdições impostas cotidianamente às pessoas negras.

Nas últimas duas semanas, o livro vencedor do Prêmio Jabuti 2021 vem sofrendo uma série de censuras. O movimento teve início com um vídeo gravado pela diretora da Escola Estadual Ernesto Alves, em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul. Em redes sociais, a diretora expõe trechos da obra em que constam palavras de baixo calão e cenas de sexo, avaliando que o material é impróprio e a oferta da obra em escolas estaria acontecendo sem o pedido de professores. O vídeo foi compartilhado por alguns políticos como a deputada estadual Kelly Moraes (PL-RS) e os deputados federais Zé Trovão (PL-SC) e Bia Kicis (PL-DF). Eles diziam que a adoção do livro à gestão atual do Ministério da Educação e ao PT. Isso é falso.

O Avesso da Pele faz parte do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) desde 2022, aprovado para distribuição em escolas públicas durante a gestão do governo Bolsonaro. A decisão de adquirir as obras cabe às escolas. Segundo o Ministério da Educação, “a aquisição das obras se dá por meio de um chamamento público, de forma isonômica e transparente. Essas obras são avaliadas por professores, mestres e doutores, que tenham se inscrito no banco de avaliadores do MEC. Os livros aprovados passam a compor um catálogo no qual as escolas podem escolher, de forma democrática, os materiais que mais se adequam à sua realidade pedagógica, tendo como diretriz o respeito ao pluralismo de concepções pedagógicas”. A adoção da obra na escola de Santa Cruz do Sul foi aceita pela própria autora do vídeo, conforme comprovante divulgado pela Companhia das Letras, editora do livro, nas redes sociais.

Poucos dias depois da repercussão do vídeo, a Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul informou que não havia orientado a retirada do livro das escolas e que elas seriam instruídas a utilizar adequadamente os livros literários. No caminho contrário, as secretarias de educação do Paraná e de Goiás determinaram o recolhimento de exemplares da obra. Conforme as pastas, o conteúdo do livro passará por uma “análise pedagógica e posterior encaminhamento”.

Não é a primeira vez que Tenório passa por retaliações por conta da publicação. Em 2022, o escritor denunciou que estava sofrendo ameaças de morte após o anúncio de uma palestra em uma escola em Salvador.

“Resistir fazia parte da sua vida e você nunca havia se questionado por que as coisas eram assim. Nunca se questionou por que era pobre, nunca se questionou por que vivia sem pai. Nunca se perguntou por que a polícia o abordava na rua com tanta frequência. A vida simplesmente acontecia e você simplesmente passava por ela. (...) quando pela primeira vez você ouviu a palavra “negritude”, o seu entendimento sobre a vida tomou outra dimensão, e você se deu conta de que ser negro era mais grave do que imaginava.”

O racismo e todas as suas complexidades são o tema central da obra de Tenório. As palavras de baixo calão ou as cenas de sexo, mencionadas pela diretora, estão no contexto de uma crítica ao estereótipo que a sociedade perpetua de pessoas negras e sua sexualidade.

“A tese central é a de que o racismo é sempre estrutural, ou seja, de que ele é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade”, escreve Silvio Almeida no livro Racismo Estrutural. O atual ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania considera que o racismo não é um fenômeno patológico. Mas a manifestação normal da sociedade. “O fato de pessoas negras frequentarem certos ambientes e isso causar espanto também demonstra o quanto nós naturalizamos a ausência de pessoas negras em certos locais”, especifica o ministro. Em um país onde 55,5% da população se declara negra, dos 540 parlamentares eleitos em 2022 para a Câmara dos Deputados e o Senado, 141 são pretos ou pardos. Dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino é o único autodeclarado pardo. Em 195 anos de existência, houve apenas três homens negros como ministros do STF. Já a população carcerária brasileira é de 68% de negros.

Em contraponto a Silvio Almeida, o sociólogo Muniz Sodré não considera o racismo estrutural. Caso fosse, já teria sido exterminado. “Acho que o racismo funciona exatamente porque ele não é estrutural. Minha visão é que o racismo que existia no Brasil estava consolidado e ligado à escravatura. Portanto, a estrutura escravista existia”, ressalta em entrevista para a Folha de S. Paulo. Sua defesa é a de que o racismo é, na realidade, institucional — e tem como marca a negação do preconceito. O autor do livro O Fascismo da Cor reforça que a sociedade não reconhece a discriminação racial no Brasil, tampouco os racistas reconhecem que o são.

Almeida e Sodré são professores. Acontece que, quando se proíbe qualquer tipo de obra numa instituição de ensino, proíbe-se junto o debate. A refutação de ideias. A construção de novas percepções. E a ciência.

“‘É necessário preservar o avesso’, você me disse. ‘Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que a sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias, existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.’”

As relações afetivas interraciais e as dificuldades no mercado de trabalho estão entre os muitos aspectos do racismo levantados na obra. Mas permeiam também a reflexão de um filho sobre sua relação com o pai, que foi morto num episódio de violência policial.

“A diretora fez uma leitura completamente distorcida e deturpada do livro, apagando a sua verdadeira discussão: a morte de pessoas negras pela violência policial. Por isso, reforço que O Avesso da Pele não é livro sobre sexo, mas uma reflexão sobre o letramento racial de jovens negros”, reforça Jeferson Tenório em coluna no UOL, complementando que o banimento dos livros é uma prática fascista antiga, que tem como objetivo eliminar pensamentos críticos.

Para o autor do livro Escola Partida: ética e política na sala de aula, Ronai Rocha, há uma nova configuração de vigilância das práticas escolares. “Começamos a perceber um interesse maior em saber o que se passa na escola, principalmente em conteúdos mais sensíveis, ligados a valores religiosos, à sexualidade. E esse interesse não é apenas dos pais, mas políticos também passam a se envolver. Por vezes, determinado livro cai no radar desses movimentos. Curiosamente, costuma cair mais no radar de políticos. São raros os casos em que a escola toma essa iniciativa”, explica.

Por um lado, é positivo que a sociedade não esteja alheia ao que acontece dentro da escola e das salas de aula, destaca Rocha. Porém, é preciso impor limites e respeitar decisões pedagógicas, porque os conteúdos didáticos passam por avaliações e são selecionados por um corpo técnico. Sua adoção, geral e idealmente, está num contexto em que o professor ou a professora vão discutir e desdobrar os temas. “No caso de Santa Cruz, o professor provavelmente leu o livro e julgou que possuía habilidade didática com as passagens que foram chamadas de baixo calão. O conteúdo do livro faria sentido para o grupo de adolescentes com o qual ele trabalha. O livro é um objeto didático, não é qualquer leitura a ser feita para os alunos lerem e darem risada.”

“Ainda custo acreditar que isso tenha acontecido com você. Eu sei que os negros são os que mais morrem por armas de fogo. Vemos isso a todo momento na TV, mas a gente nunca acha que isso vai acontecer com a gente. Você assiste àquelas reportagens com os parentes das vítimas, pessoas negras em bairros periféricos, chorando, reclamando da violência, do descaso das autoridades, e a gente fica triste e solta um que-merda-quando-isso-vai-acabar, e volta a comer seu prato de arroz com feijão. Então, de uma hora para outra, assim, sem mais nem menos, é a sua vez de chorar um morto. É a sua vez de conhecer a dor da perda”

A violência policial é responsável por 3,2 mortes a cada 100 mil habitantes no Brasil, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. A corporação mais letal é do Amapá, seguida por Bahia, Rio de Janeiro, Sergipe, Pará e Goiás. Das vítimas, 83,1% eram negras e 68,1% das mortes aconteceram em via pública.

No dia 7 de abril de 2019, o músico Evaldo Rosa estava de carro com a família e quando passava por uma travessa próxima à favela do Muquiço, no bairro de Guadalupe, no Rio de Janeiro, o veículo foi alvejado por 62 tiros de fuzil do um comboio do Exército Brasileiro. Ele morreu na hora. O catador de recicláveis Luciano Macedo tentou ajudar o músico e também foi fuzilado. No total, foram 257 tiros. No dia 1º de março deste ano, o Superior Tribunal Militar votou para absolver os militares das mortes de Evaldo e Luciano. Cinco dias depois, o policial militar Alessandro Marcelino de Souza foi condenado por homicídio culposo — quando não há a intenção de matar — pelo homicídio de Johnatha de Oliveira Lima, de 19 anos. O jovem levou um tiro nas costas na comunidade de Manguinhos, na Zona Norte do Rio, em 2014.

“Depois que você morreu, passei meses pensando na minha própria morte. Mesmo com tão pouca idade, eu pensava na morte, pois você, muito cedo, me deixou consciente da nossa finitude. E isso é triste, mas eu te agradeço. As pessoas que te mataram ainda estão soltas. E não sei por quanto tempo elas continuarão livres. Mas elas nunca saberão nada sobre o que você tinha antes da pele.”

E, para encerrar, aqui estão os links mais clicados por vocês, leitores, na semana:

1. Meio: Ponto de Partida — O real mudou tudo.

2. Panelinha: Salmão no vapor com pimentão chamuscado, hmmmmm!

3. Globo: O Pritzker de Riken Yamamoto.

4. Rolling Stone: A primeira imagem de Superman, de James Gunn.

5. BBC: Trump, a IA e os negros.

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A rede social perfeita para democracias

24/04/24 • 11:00

Em seu café da manhã com jornalistas, na terça-feira desta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que a extrema direita nasceu, no Brasil, em 2013. Ele vê nas Jornadas de Junho daquele ano a explosão do caos em que o país foi mergulhado a partir dali. Mais de dez anos passados, Lula ainda não compreendeu que não era o bolsonarismo que estava nas ruas brasileiras naquele momento. E, no entanto, seu diagnóstico não está de todo errado. Porque algo aconteceu, sim, em 2013. O que aconteceu está diretamente ligado ao caos em que o Brasil mergulhou e explica muito do desacerto político que vivemos não só em Brasília mas em toda a sociedade. Em 2013, Twitter e Facebook instalaram algoritmos para determinar o que vemos ao entrar nas duas redes sociais.

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