Edição de Sábado: Com quem Pablo fala?

Há um novo brasileiro na rua. Se antes a salvação católica servia de consolo para a dureza da vida, isto mudou. No mundo da Teologia da Prosperidade, ascensão social é mostra de bênção divina. Quem não a conquista é porque não foi abençoado. Quem não a conquista tem raiva. No mundo das redes, nos celulares, a propaganda é constante. E não é como aquela propaganda antiga, distante, das TVs e do rádio. É uma propaganda que se impõe, precisamente individualizada, que atiça aquilo que cada um deseja mais avidamente. Esse novo brasileiro quer prosperar com todas suas forças. Quase sempre, não consegue. E se ressente. É com ele que fala Pablo Marçal. É ele que a esquerda tradicional não consegue mais atingir.

“O mercado de trabalho tradicional está cada vez mais difícil, e as pessoas estão buscando alternativas fora dos métodos convencionais”, explica Vinicius do Valle, cientista político, doutor pela USP e co-fundador com Juliano Spyer do Observatório Evangélico. “É muito difícil fazer uma faculdade e, mesmo que faça, isso não quer dizer passe livre para ascensão social. O que mais vemos, mesmo na classe média escolarizada, são jovens pulando de trabalho intermitente em trabalho intermitente. Estão tendo menos filhos porque não têm tempo. Não dá para baixar a energia do mercado de trabalho para ter filho.” É com este público que Pablo fala.

Para esse pedaço da sociedade, Pablo Marçal não é um picareta. É um guru. Quase um pastor. Alguém que fala sua língua e, do jeito que fala, incentiva. Estimula, dá a energia para o crescimento nas portas que parecem existir: o aplicativo, ser influenciador, com sorte viralizar. Abrir um negócio de fazer algo em casa para vender nas redes. Aplicar para um curso online de autoajuda. É um mundo onde as bets seduzem. Onde até OnlyFans pode ser um caminho. O importante é crescer e escapar de onde está. Há um brasileiro novo que quer crescer, mas o país lhes vira as costas. Em geral, políticos tradicionais não o compreendem. Nem políticos tradicionais, nem as elites culturais.

“Quem está nas universidades, no jornalismo, não entende Pablo Marçal e o vê simplesmente como um picareta”, sugere Vinicius. “Mas ele não é isso. Ele é uma das figuras mais representativas desse mundo da internet e da nova dinâmica do trabalho.” Leia a seguir sua entrevista ao Meio, que também está disponível para assistir em vídeo.

Para quem o Pablo está falando?
Ele emerge de um mundo que é fruto da precarização do mercado de trabalho e de uma mudança religiosa no Brasil. Quem não está nesse mundo, quem está num ambiente mais tradicional, nas universidades, no jornalismo, não entende Pablo Marçal e o vê simplesmente como um picareta. Mas ele não é isso. Ele é uma das figuras mais representativas desse mundo da internet e da nova dinâmica do trabalho. É como se estivéssemos vendo Henry Ford surgir como candidato nos Estados Unidos no começo do século 20. As pessoas estão desesperadas por saídas. Não é à toa que as bets tomam conta de uma parte considerável da economia brasileira, que tantos tentem se tornar influenciadores, sonham em viralizar no TikTok ou no Instagram. Pablo dialoga com essa nova economia, mais intermitente, mais conectada, onde a formação necessária não vem das grandes universidades.

A esquerda, que ainda tem uma perspectiva marxista, enxerga o “empreendedor” como o patrão, o dono dos meios de produção. Mas o que significa ser empreendedor para essa nova classe média ascendente? Marçal usa muito essa palavra e ela obviamente ecoa.
Existem muitos níveis de empreendedorismo. Uma coisa é quem tem capital e está realmente abrindo um empreendimento que vai disputar mercado. Mas há um “empreendedorismo” que poderíamos colocar entre aspas, um jeito de as classes populares se virarem nesse mundo. E as classes médias também acabam assumindo esse papel, no sentido de representarem a si mesmas, de pensarem sua carreira como uma empresa, de construírem uma marca pessoal.

Nas classes populares, isso é vendido como uma ideologia: você é um empreendedor quando está inscrito em um aplicativo, quando sua remuneração depende exclusivamente de você, quando monta um pequeno negócio, vende um hot dog, um doce, ou cria um Instagram para anunciar algum produto que faz em casa. Estamos falando de precarização do trabalho. Algumas dessas pessoas acabam assumindo esse ethos de empreendedor, se vendo como empresas, estando à frente de um negócio que, às vezes, é apenas o trabalho delas. A pessoa se vê como empresária, mas não consegue crescer. Às vezes, tem raiva por não conseguir.

Mas em que isso é diferente da ascensão de uma burguesia como aconteceu nos séculos 18, 19 e 20 em tantos países do mundo? Isso não é, de certa forma, uma revolução burguesa? Pessoas que eram pobres, melhoram um pouco de vida e assumem uma postura de que devem trabalhar e crescer? O fenômeno não é o mesmo?
É uma boa pergunta, até porque a precarização do trabalho sempre existiu. Mas acho que há uma diferença: estamos passando por uma transformação religiosa no Brasil. A ideia de prosperidade está no centro da visão evangélica. Antes, se você estava em uma condição de pobreza, o foco, do ponto de vista religioso, era a salvação. As pessoas olhavam para si mesmas sem considerar a prosperidade material. Com a teologia da prosperidade, o quanto você possui é visto como reflexo de quão abençoado é, se está sendo fiel a Jesus. Se não tem prosperidade, algo está errado. Isso gera uma busca intensa pela prosperidade, uma pressa e uma raiva quando não ela chega na velocidade desejada.

Há outra diferença. Hoje, as pessoas estão imersas no universo da publicidade, já que estão no celular o tempo todo. Seus desejos estão sendo constantemente atiçados. Antes, a pessoa via uma propaganda ao ligar a TV, e essa propaganda não tinha muito a ver com seus gostos ou estilo de vida. Agora, a propaganda é muito direcionada. Se você gosta de carros, vai aparecer um carro que chama sua atenção; se você gosta de instrumentos musicais, uma guitarra que é o seu sonho. As pessoas são sugadas para esse mundo de consumo e mercadoria, e seus desejos são ativados constantemente. Os jovens, especialmente, não sabem como era antes. Para eles, isso é natural, e seus desejos são constantemente estimulados em todos os aplicativos que usam e em suas interações sociais.

Isso traz uma mudança significativa, pois gera um desejo de pressa na ascensão social. As pessoas não têm mais a paciência de entrar em um trabalho e planejar sua carreira ao longo de décadas. Elas querem resultados agora, e é aí que Pablo Marçal entra em cena.

Sua primeira afirmação é de que ele não é picareta no universo de onde vem. O motivo pelo qual muitos o veem como vigarista é a percepção de que é muito hábil com as palavras mas vende sonhos que é incapaz de entregar. Para o público dele, no entanto, que papel ele ocupa? Como se fosse um pastor? Está dando força, inspirando as pessoas a se moverem?
Em certo sentido, sim. Parte dos que o caracterizam como picareta o fazem por preconceito, porque ele não passou pelas instituições que legitimam o percurso de uma sociabilidade das classes médias altas e elites no Brasil. Ele vem de Goiânia, é evangélico. Fala de um jeito que é o oposto de uma linguagem acadêmica. Veja, não estou dizendo que ele nunca tenha cometido erro, mas existe também preconceito contra ele.

O que ele vende não é diferente do que encontramos em livros de autoajuda e vemos na maioria dos influenciadores das redes sociais. Vende sonhos, disciplina, a ideia de que, se você tiver a mentalidade certa, vai prosperar. É um exímio comunicador, mas seu estilo de comunicação é popular. Ele é muito rápido de raciocínio, dobra entrevistadores. E, claro, abusa do fair play que existe nos debates políticos. Ele interrompe os outros, e isso nos soa agressivo. Mas é muito comum na comunicação das classes populares. Não é percebido como problema por quem está dentro desse mundo.

Na entrevista que concedeu ao podcast Flow, ele cita clichês os mais banais. Não há ciência, nenhuma base para muitas de suas afirmações. Mas, ao entrevistador, bate como profundo. Como uma fonte de sabedoria. Isso é sinal de uma sociedade partida? Estamos falando duas línguas muito diferentes? Uma parte do Brasil se tornou incapaz de compreender a maneira de se comunicar da outra?
Não acho que nos tornamos incapazes de nos comunicar, mas as pontes de entendimento estão ficando mais estreitas. Por isso, os esforços de quem quer viver numa sociedade democrática devem ser direcionados para alargar essas pontes. A entrevista no Flow, de todas as exibições recentes dele, é onde dá para entender melhor o estilo de pensamento do Pablo e o que ele propõe, se é que dá para tirar algo concreto. O Igor (Coelho, âncora do podcast) iniciou com uma postura de considerar Pablo meio esquisito, talvez até desonesto, mas acaba sendo convencido ao longo da entrevista. O Pablo tem essa habilidade de prender a atenção com uma história, em geral tendo ele como personagem, sobre como ele foi habilidoso em determinado negócio. Não responde, mas conta uma história e prende a pessoa. Dá a impressão: “como ele é visionário!” Ele se vale do senso comum. Sabe aquela ideia do ditado popular? É isso. E, com essa linguagem, consegue inspirar pessoas por meio de chavões que refletem sabedoria popular. Ele se coloca como um pastor, como um guru.

Defina, no universo do Pablo, o que querem dizer direita e esquerda.
Quando ele fala de direita e esquerda, percebemos que sua visão é pouco estruturada. Ele elogia a política da China, o que é contraditório. Se propõe a construir casas populares, plantar milhões de árvores, o que poderia ser considerado uma política de esquerda. O discurso dele não é reacionário, como o do Bolsonaro. O que tem é um traço libertário, embora ao mesmo tempo fale de um Estado presente na vida das pessoas.

É uma figura confusa ideologicamente.
Exatamente. Ele é anti-esquerda no sentido de ser anti-coletivista, acreditando que o indivíduo, com uma mentalidade empreendedora, deve prosperar. Mas acredita em algum apoio do Estado. Não uma intervenção pesada, mas um suporte para o indivíduo se desenvolver. Ele mistura elementos de cristianismo, teologia da prosperidade e uma disciplina que remete a uma ética empresarial, onde cada pessoa é responsável por sua trajetória rumo à prosperidade.

Isso se reflete na forma como ele vê a sociedade?
Claro. Marçal acredita que é possível tirar pessoas da Cracolândia e transformá-las em empreendedores, ou tirar pessoas das ruas e fazê-las prosperar por conta própria. Ele quer transformar a sociedade em um conjunto de indivíduos buscando progresso material e ascensão social a partir de uma mentalidade correta.

Como você vê a comparação entre ele e Bolsonaro? Ele é menos radical?
Em certo sentido, se você for pegar o veio autoritário, sim. Mas ele está propondo uma colonização do Estado pelo mundo empresarial, o que é mais radical do que Bolsonaro. E, ainda assim, ele não se identifica completamente com o anarco-capitalismo de figuras como Javier Milei, pois Marçal está mais ligado ao mundo dos produtos digitais e da educação fora das instituições tradicionais. Ele fala para uma fatia de mercado que vê na internet e nos cursos online um caminho. Você não precisa fazer uma faculdade, faz um curso para cada habilidade que precisar ter para o mercado lhe dar atenção. É como falávamos. É o universo das bets, dos influenciadores, da economia da atenção. Até do OnlyFans.

Até OnlyFans?
Sim, porque plataformas como OnlyFans oferecem a jovens, especialmente mulheres, uma maneira de se sustentar e alcançar ascensão social, algo que muitos outros caminhos não oferecem mais. O mercado de trabalho tradicional está cada vez mais difícil, e as pessoas estão buscando alternativas fora dos métodos convencionais. Essa geração mais jovem vê os caminhos tradicionais fechados. É muito difícil fazer uma faculdade e, mesmo que faça, não quer dizer passe livre para ascensão social. O que mais vemos, mesmo na classe média escolarizada, são jovens pulando de trabalho intermitente em trabalho intermitente. Estão tendo menos filhos porque não têm tempo. Não dá para baixar a energia do mercado de trabalho para ter filho. Aquele caminho tradicional de vou estudar, entrar numa empresa, seguir carreira? É um universo cada vez mais restrito.

Para nós, que estamos dentro destes códigos tradicionais, que pensamos a partir desses códigos, olhamos e achamos que há algo de errado com Marçal. Ele só pode ser um grande picareta, não é? Para quem está fora, não. Para aqueles que não veem mais sentido em buscar ascensão por meios convencionais, ele oferece uma disciplina e um mindset que, para muitos, parecem ser o único caminho para algum tipo de sucesso. Ele dialoga com os sonhos dessas pessoas, oferecendo esperança onde muitos já a perderam.

O que acontece se a candidatura dele é cassada?
Quando entrevistamos pessoas das classes populares que flertam com esse tipo de política populista, percebemos que o sistema é visto como algo muito forte, que impede as pessoas que poderiam promover mudanças de chegar ao poder. Essa ideia de perseguição é extremamente eficaz para conquistar mais seguidores para esses líderes. É uma estratégia amplamente utilizada em vários contextos, especialmente dentro de igrejas evangélicas. A narrativa é de que “precisamos nos mobilizar para garantir nossa visão e nossa forma de vida”. Bolsonaro o usou esse discurso o tempo todo, e Marçal também o faz. Ele diz: “Os jornalistas vêm cinco, seis contra mim. Eu só apanho.” Mas a mensagem é que o sistema não quer permitir que ele faça a mudança que as pessoas precisam.

Não adianta simplesmente tentar retirar os direitos políticos de cada líder populista que surge. O problema é mais profundo. Precisamos estabelecer pontes para dialogar com as pessoas. O ideal seria que essas candidaturas, que representam ameaças democráticas e não apresentam propostas concretas, não tivessem o apelo popular que têm. Não adianta apenas tentar controlar essas lideranças e achar que o problema está resolvido se ainda existe um anseio popular.

Isso não significa que qualquer crime possa ser cometido sem punição. Não é isso. Mas é preciso que a punição seja proporcional. Por exemplo, Guilherme Boulos fez um ato com Lula que funcionou como uma campanha antecipada. O TSE aplicou uma multa, o que foi a medida correta. Da mesma forma, Pablo Marçal deve receber uma punição proporcional. Cassar a candidatura de alguém deveria ser uma medida extremamente rara.

Moraes supera Musk em menções nos apps, mas de forma negativa

Assistir às últimas horas da briga entre o empresário Elon Musk, dono do X (ex-Twitter), e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes a partir do que viraliza em grupos públicos de WhatsApp e Telegram é encontrar números gigantescamente surpreendentes e uma dose cavalar de polarização política. Nesses ambientes, em geral, Moraes parece estar em maus lençóis.

Dados da Palver, que enxerga mais de 80 mil grupos públicos ativos nesses dois apps de mensagem, mostram que, entre a 00h01 de quarta-feira (28) e a 00h01 de sexta-feira (30), somente um dos vários DDDs de todo o país (vindo de parte do Amazonas, veja mapa) não engajou na conversa sobre o duelo Musk-Moraes.

Nesse período, tanto o nome do ministro quanto o do empresário foram citados mais vezes do que os do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do ex-presidente Jair Bolsonaro, historicamente populares nesses espaços digitais.

Pelo menos 2,1 milhão de pessoas podem ter sido impactadas por no mínimo uma das mais de 2,4 mil mensagens únicas que circularam por essas plataformas no período. Como alguém que acompanha esses espaços desde o início da campanha eleitoral deste ano, posso afirmar que esses números quebram recordes de audiência e engajamento. Merecem ser analisados com lupa.

A novela entre Musk e Moraes não é nova nem fácil de entender (leia aqui o explicador da Lupa), mas teve um capítulo crucial nesta semana. Na quarta-feira, depois de o X ter passado dias ignorando as determinações do Judiciário sobre remoção e moderação de conteúdo e de decidir por fim a sua representação no Brasil, o STF intimou Musk para que, em até 24h (ou seja até a noite de quinta-feira, 29) informasse quem representava sua empresa no país (uma exigência legal para qualquer entidade jurídica que opera no Brasil). Se não o fizesse, a plataforma poderia ser bloqueada em território nacional por ordem judicial. O curioso do episódio foi que, para intimar o empresário, o tribunal usou sua própria conta no X, marcando Musk e o time que trabalha com ele em esfera global, abrindo um debate jurídico considerável sobre a validade da medida. E isso se refletiu no que rolou nos grupos públicos de WhatsApp e Telegram.

Mas fato é que até a manhã de sexta-feira, quando finalizamos essa coluna, a ameaça de Moraes não havia sido cumprida. O X funcionava perfeitamente no Brasil. Debatia-se, no entanto, o fato de o STF ter bloqueado os bens de outra empresa de Musk no país, a Starlink, alegando necessidade de garantir o pagamento das multas que foram imputadas ao X por descumprir decisão legal. Os críticos de Moraes diziam nos apps que esse era outro exagero do “ditadorzinho” e que uma empresa não pode ser responsabilizada pelo que a outra faz. O críticos de Musk destacavam a necessidade de Moraes “garantir a democracia”.

Moraes na mira

Mas, de volta ao conteúdo das 72h analisadas com a ferramenta da Palver, é importante mencionar que se essa briga fosse apenas numérica, Moraes estaria vencendo em menções (2.417 x 1.050 mensagens). Sua estratégia, no entanto, tem sido alvo de duras críticas. Entre as 11 mensagens únicas de WhatsApp que falavam dele nesse período e que receberam a flecha dupla dada pela Meta a conteúdos encaminhados com frequência na plataforma (considerados virais), todas eram negativas para o ministro. Além de postagens que supostamente redistribuíam os conteúdos que Moraes pretende tirar do X, havia mensagens divulgando uma petição pública pelo impeachment dele, associando seu nome (sem qualquer comprovação) a um grupo criminoso e frases classificando seu trabalho como “censura” ou “arapuca”. A Palver informa que esse material pode ter alcançado ao menos 10 mil usuários do app.

Entre as cinco mensagens únicas de WhatsApp que citavam Musk no período e que também foram marcadas com a flecha dupla de viralidade, todas eram a favor do empresário. Uma reproduzia o tuíte de Musk com uma imagem artificialmente criada mostrando Moraes atrás das grades. Outra continha um trecho de um vídeo crítico ao ministro do STF, e o resto, buscava difundir conteúdos que supostamente teriam sido alvo de pedido de remoção por parte do Judiciário brasileiro. A Palver mostra que esse material pode ter impactado ao menos 3 mil usuários do app.

Nos canais públicos de Telegram, o duelo Musk-Moraes tomou um rumo ainda mais polarizado. Chegaram a mais de 400 mil usuários dessa plataforma mensagens que colocavam o caso brasileiro ao lado de dois episódios internacionais: a prisão do CEO do Telegram na França e a intenção de Nicolás Maduro, supostamente reeleito presidente da Venezuela, de bloquear diversas redes sociais (entre elas o X) em seu país.

E, para surpresa de zero jornalistas que acompanham política, apareceram entre as mensagens que mais viralizaram no Telegram claros esforços partidários para surfar no caso. Na lista, há, por exemplo, vídeos dizendo que “o melhor amigo de Alexandre Moraes é o coordenador da campanha de Ricardo Nunes”, prefeito de São Paulo e candidato à reeleição pelo MDB. Há também notícias sobre projeto de lei da deputada federal Júlia Zanatta (PL-SC) que sugere que processos de impeachment contra ministros do STF sejam automaticamente iniciados quando assinados pela maioria absoluta do Congresso.

Por fim, há teorias da conspiração. E uma delas está em alta: a que alega que todo o debate entre Musk e Moraes é, na verdade, a maneira que o STF encontrou para distrair a atenção do povo sobre mais um suposto “escândalo trilhionário” do governo Lula e o “holocausto econômico brasileiro”, que “praticamente ninguém ficou sabendo”. A teoria ainda cita a Petrobras e usa links do jornal O Estado de S.Paulo como “prova”. Desinformação de primeira ordem, e não vamos nos alongar sobre ela respeitando os princípios do silêncio estratégico.


*Cristina Tardáguila é fundadora e sócia da agência Lupa. Este texto faz parte da parceria do Meio com a Lupa, que mapeia o que está fervendo em 80 mil grupos públicos do WhatsApp e do Telegram sobre as eleições municipais deste ano e publica na newsletter Ebulição.

Ditadura revisitada

Há muita latitude para discordar de Karl Marx neste século 21, mas é inegável que uma de suas frases mais certeiras é a de que a história acontece como tragédia e se repete como farsa, levando à frente o pensamento de Hegel da repetição histórica. O golpe que instaurou a ditadura militar no Brasil fez 60 anos neste ano. Já são 39 anos de Nova República, ainda assim, no 8 de janeiro de 2023, Jair Bolsonaro, que teve o governo mais repleto de militares desde o fim da ditadura, tentou dar um novo golpe e fracassou.

Memória é uma coisa complexa. Apesar de ter perdido as eleições por pouco mais de dois milhões de votos no segundo turno, Jair Bolsonaro teve 49,10% dos votos. Nem toda essa votação, é verdade, pode ser atribuída a golpistas. Pesquisa do Datafolha de agosto de 2022 mostrava que a defesa de que a ditadura é melhor do que a democracia em certas circunstâncias chegou ao seu menor índice na série histórica medida pelo instituto desde 1989, 7%, caindo dois pontos percentuais em relação ao levantamento anterior de 2021. No Brasil pré-tentativa de golpe, 75% das pessoas ouvidas pelo Datafolha concordavam que a democracia é sempre melhor que qualquer outra forma de governo.

Agora, pode-se discutir que para essa quase metade da população que optou por um populista reacionário, que durante toda a sua trajetória política fez do elogio à ditadura militar sua plataforma, a democracia não pode ser considerada um valor absoluto. E aí voltamos à importância da memória. A população com menos de 50 anos pode até ter vivido as consequências da ditadura, mas não tem uma memória direta dos anos de chumbo. Daí a importância de manter viva a memória dos anos de chumbo e poucos veículos são mais apropriados para criar laços emocionais do que o cinema.

Neste momento, dois filmes em cartaz no país contam histórias tenebrosas da violência de Estado perpetrada contra cidadãos suspeitos de ir contra o regime. Entrelinhas, de Guto Pasko, narra a história real de uma jovem de 18 anos presa e torturada por 10 dias no Paraná em 1970, a despeito de não ter ligação com a resistência à ditadura. O outro é , de Rafael Conde, também baseado na história verídica do estudante mineiro José Carlos Mata Machado, presidente do Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da UFMG e vice-presidente da União Nacional dos Estudantes. Ele de fato foi para a clandestinidade, mas foi morto depois de torturado no Doi-Codi em Recife em 1973. Sabemos de sua história por conta do que foi revelado pela Comissão da Verdade. A versão do Exército brasileiro sobre sua morte era de que ele e dois outros militantes teriam entrado em conflito. A farsa era tão evidente que ficou conhecida como o “Teatro de Caxangá”.

Um outro filme brasileiro, que concorre ao Leão de Ouro no Festival de Veneza, que começou nesta semana, é Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, adaptação do livro de mesmo nome de Marcelo Rubens Paiva, em que a personagem principal é sua mãe Eunice, que se vê tendo de cuidar de quatro filhos após seu marido, o deputado cassado Rubens Paiva, ter desaparecido nos porões da ditadura. Uma história que passa por toda a luta para descobrir a verdade e também para conseguir legalmente um atestado de óbito, já que sua morte, depois comprovada pela Comissão da Verdade, era negada pelo Exército.

Mantendo a memória viva

Guto Pasko diz que, ao fazer Entrelinhas, fala do Brasil de hoje ao recontar uma história que se passa em 1970. “Me interessava refletir, enquanto cineasta, a situação insana que a gente vive no Brasil, onde uma parcela significativa da sociedade brasileira, metade, poderíamos dizer, deseja inclusive o retorno disso tudo. Será que esse é o caminho de fato? Será que precisamos de uma ditadura de novo? Eu como democrata tenho minha opinião, então por isso quis fazer esse filme”. Fala também que, embora haja mais de 30 filmes sobre a ditadura militar, a maioria deles se passa no eixo Rio-São Paulo e ele queria contar uma história do Paraná. "Me interessava fazer um filme de uma adolescente absolutamente anônima que ninguém conhece e que passou por todas as atrocidades da ditadura. Quantos mil brasileiros anônimos foram torturados também nos porões da ditadura naquele período. E esse problema não acabou. O que eu quero falar do Brasil de hoje? Porque acabou a ditadura com a anistia, ninguém foi punido, e o modus operandi continua. Quantos brasileiros são todos os dias torturados nas delegacias brasileiras? Todos os dias isso continua acontecendo, e pessoas inocentes, 'por engano', como foi com ela, porque torturaram por dez dias essa menina, por engano, então isso continua acontecendo. Pessoas continuam sendo presas de forma arbitrária, sem dever nada“, diz o diretor, ressaltando que o sul do Brasil, e especialmente o Paraná ”vive uma onda fascista e me interessava fazer um filme de uma história real que aconteceu lá e que sirva de reflexão para o estado também".

Já Rafael Conde conta que foi um projeto que tentou realizar por 20 anos. “A atualidade dele foi mudando com esse tempo e realizá-lo hoje diz muito da questão dessa atualização, desse tema do fascismo, da repressão, da violência do ataque à democracia, da diminuição desses culpados, dos torturadores, dessa anistia que perdoou todo mundo que cometeu crimes na ditadura”, diz.  E completa falando que acha muito pertinente hoje falar isso para a juventude.  para que as pessoas “não esqueçam nunca, porque esse perigo do fascismo, da repressão, da ditadura, pode voltar.”

Há duas semanas, no Conversas com o Meio, entrevistei Marcelo Rubens Paiva para falar do filme e também de política. Um ponto bem interessante, que se conecta com a fala dos dois cineastas, é sobre a questão da anistia, em que sua mãe foi uma personagem importante. “Fica essa coisa invisível que domina o país há 500 anos. Eu acho que está se repetindo. Claro que, se não tivesse tido aquele perdão na Anistia, o Brasil seria outro. Inclusive, talvez a forma como a PM aborda as pessoas na rua, a tortura. Não teria essa epidemia que existe hoje”.

No streaming

Pensando no alerta dos três sobre como é importante revisitar a ditadura para impedir que a história se repita, selecionei dez longas brasileiros de ficção sobre a ditadura disponíveis nas plataformas de streaming ou para aluguel on demand.

Lamarca, de Sérgio Rezende, 1996 (Belas Artes a la Carte)
Com Paulo Betti, é uma cinebiografia do capitão do Exército Carlos Lamarca que abandona a força para se tornar um dos comandantes da Vanguarda Popular Revolucionária, operação de guerrilha armada que combatia o regime militar.

O que É Isso Companheiro, de Bruno Barreto, 1998 (Globoplay)
Baseado no livro de Fernando Gabeira, narra a história do sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969, por integrantes dos grupos guerrilheiros de esquerda MR-8 e Ação Libertadora.

Ação entre Amigos, de Beto Brant, 1998, (Apple TV)
Quatro amigos são presos pela ditadura em 1971 e torturados durante meses. Vinte e cinco anos depois, os quatro amigos se reúnem ao tomar conhecimento de que o torturador está vivo e decidem sequestrá-lo e matá-lo.

Cabra Cega, de Tony Venturi, 2005 (Prime Video)
Após ser ferido por um tiro, em uma emboscada feita pela polícia, um jovem revolucionário que está na luta armada precisa se esconder na casa de  um arquiteto simpatizante da causa.

Zuzu Angel, de Sérgio Rezende, 2006 (Prime Video/Apple TV)
Outra cinebiografia, desta vez da estilista carioca que teve seu filho Stuart Jones torturado e assassinado pela ditadura. Ela busca reaver o corpo do filho até que, em 1976, morre em um acidente suspeito na Estrada da Gávea.

Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton, 2006  (Globoplay)
O filme conta a história dos dominicanos de São Paulo, como Frei Tito e Frei Beto, que passam a apoiar o grupo guerrilheiro Ação Libertadora Nacional, comandado por Carlos Marighella.

Hoje, de Tata Amaral, 2013 (Apple TV)
Baseado no livro Prova Contrária, de Fernando Bonassi, conta a história de uma ex-militante que, ao se mudar para um apartamento comprado com o dinheiro da indenização do desaparecimento do marido, passa a relembrar do que viveu na época da ditadura ao lado dele.

Deslembro, de Flávia Castro, 2018 (Reserva Imovision)
Joana é uma adolescente que mora em Paris com sua família e volta ao Rio de Janeiro na época da anistia e mistura memórias reais e inventadas da vida na cidade onde seu pai desaparece nos porões do Dops.

Marighella, de Wagner Moura, 2019 (Globoplay)
Cinebiografia centrada em no último ano da vida de Carlos Marighella, político cassado que parte para a luta armada como um dos cabeças da Ação Libertadora Nacional e é assassinado em São Paulo.

O Pastor e o Guerrilheiro, de José Eduardo Belmonte, 2022 (Telecine)
Na década de 1970, um guerrilheiro está preso na mesma cela que um cristão evangélico. A despeito das diferenças ideológicas, os dois marcam um encontro para o réveillon do ano 2000. Época em que a filha de um coronel descobre que ele foi o torturador dos presos.

O candidato à Prefeitura de São Paulo Pablo Marçal dominou o noticiário nesta semana e também por aqui foi o campeão de cliques ao lado de outro assunto quente: o embate entre Alexandre de Moraes e Elon Musk. Veja os mais clicados da semana:

1. Meio: Na TV, Pablo Marçal confessa o crime que pode cassar sua candidatura avalia Pedro Doria no Ponto de Partida.

2. BBC: As imagem que concorrem à 60ª edição do Wildlife Photographer of the Year.

3. g1: Elon Musk compara Alexandre de Moraes a vilões de Star Wars e Harry Potter após ameaça de tirar X do ar.

4. Meio: Pedro Doria argumenta que Pablo Marçal não foi alvo de censura ao ter suas redes bloqueadas pela Justiça Eleitoral.

5. Panelinha: Gratinado de batata com frango, aproveitando as sobras da ave.

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