Edição de Sábado: Erguem-se os muros
“Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial”, cantava Caetano Veloso na abertura do álbum Circuladô, lançado em 1991. O que a nova ordem mundial preconizava, nos anos 1990, era um movimento de abertura, de mercados, de fronteiras, de povos e, se esticar um pouco a corda, de costumes. O protecionismo estava dando lugar a novas configurações, blocos de países interligados para cooperar econômica e politicamente começavam a ser formados. Mercosul em 1991, União Europeia em 1993, o Nafta em 1994.
Obviamente, esse movimento nunca se deu sem atritos. Mas com a economia global crescendo, e a internet começando a mudar a maneira como todo o tipo de troca se dava, a ideia de globalização — que caminhava lado a lado com a expansão das democracias liberais — parecia quase um curso natural. O mundo estava nos primeiros passos de uma profunda transformação, e as fronteiras pareciam coisa de um passado para o qual não fazia muito sentido voltar.
Como em um remix que muda todo o sentido da canção original, alguma coisa está fora da ordem neste 2024. Alguma coisa é eufemismo. A nova ordem mundial não parece querer abertura, e os muros começam a se erguer, transformando a paisagem global.
Partindo do nosso umbigo, a semana começou quente, com a tentativa de abafar a crise causada pelo CEO mundial do Carrefour, Alexandre Bompard, que publicou em sua conta no Instagram que a rede de supermercados francesa não iria mais vender carne proveniente do Mercosul em suas lojas, justificando que os produtos não atendiam as exigências e as normas de qualidade do governo francês. A declaração desencadeou uma crise diplomática e frigoríficos brasileiros passaram a deixar de fornecer carne às lojas brasileiras do Carrefour. No começo da semana, Bompard se retratou, com uma carta entregue ao ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro.
A realidade é que o jogo tinha menos a ver com o Brasil e com a qualidade de seus bois do que com a política interna francesa. O anúncio do veto de Bompard era um aceno aos produtores franceses, que estavam protestando contra o governo e fazendo pressão para que o país europeu se opusesse ao acordo entre a União Europeia e o Mercosul. Curiosamente, no dia em que a carta com a retratação chega ao Brasil, a câmara dos deputados francesa aprova, em votação simbólica, o repúdio ao acordo, como queria o presidente Emmanuel Macron, opositor do pacto “em sua forma atual”. E com um placar expressivo: 484 dos 555 deputados presentes validaram a posição do governo de Macron, que ganhou força para pressionar a Comissão Europeia nas negociações. Mesmo assim, a França faz parte da minoria contrária ao acordo. Alemanha e Espanha o defendem, liderando um grupo maior de países.
De certa forma, olhando para a nossa política interna, a crise da carne representou para o governo brasileiro uma forma de se aproximar do agronegócio, setor hostil ao presidente Lula. E Fávaro adotou a figura do protetor do agro, ao se articular com grupos exportadores de carne bovina e acionar a diplomacia. No Planalto, interlocutores do presidente disseram ao Meio que se o ministro pedisse, Lula certamente conversaria com Macron para amenizar o embate. Não precisou. No saldo final da contenda, o governo brasileiro considera ter marcado ponto com o agro ao defender a qualidade da produção brasileira.
Nova Rota da Seda e BRICS
Em um tabuleiro em que cada vez mais o protecionismo parece querer dar o tom da conversa, a China tem se movimentado para expandir sua influência global. Seu principal projeto é a Nova Rota da Seda, um programa trilionário iniciado em 2013. Logo após o G-20, no começo do mês, Lula recebeu Xi Jinping em Brasília, mas não aderiu ao plano chinês. O brasileiro prometeu estabelecer “sinergias” com o programa chinês, mas seguindo um roteiro próprio de desenvolvimento de infraestrutura. Lula deu como exemplos os planos da Nova Indústria Brasil (NIB), o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o Programa Rotas da Integração Sul-Americana e o Plano de Transformação Ecológica.
Entrevistado pelo Meio, o professor de Relações Internacionais da UERJ Maurício Santoro, especialista em China, disse ter conversado com diversos diplomatas antes e ao longo do G-20 e antecipou que o Brasil não aceitaria aderir à Nova Rota da Seda. O motivo é bastante simples, o país já recebe bastante investimento chinês e parece melhor para o Brasil poder resolver suas diferenças comerciais em discussões bilaterais do que em meio a muitos outros países, como ocorreria com o ingresso no projeto chinês.
Santoro vê uma crise nas relações multilaterais e cita que um ponto sensível é a entrada de novos países nos BRICS, sobretudo o Irã, que eleva a tensão do bloco com Europa e Estados Unidos. Ainda mais com o protagonismo da Rússia e o peso que a Guerra na Ucrânia traz para o xadrez político-econômico internacional.
Desde a eclosão do conflito, cresce a ideia de que a guerra tem um impacto importante sobre a nova ordem mundial. Numa carta a seus acionistas, um mês após o início do ataque russo em 2022, Larry Fink, CEO do maior gestor de ativos do mundo, a BlackRock, disse que a invasão da Ucrânia pela Rússia desestabilizou a ordem mundial que havia estado em vigor desde o fim da Guerra Fria. “A invasão russa da Ucrânia pôs fim à globalização que vivemos ao longo das últimas três décadas”, disse Fink em sua carta aos acionistas daquele ano. “Isso deixou muitas comunidades e pessoas se sentindo isoladas e olhando para dentro. Acredito que agravou a polarização e o comportamento extremista que estamos vendo na sociedade hoje.”
Protecionismo e fronteiras
Outros fatores também têm forte impacto na sensação de que uma nova ordem mundial se desenha. E atravessa duas questões que se imbricam: a busca de um protecionismo das economias locais através da promoção de uma guerra tarifária e o fechamento das fronteiras para trabalhadores imigrantes. Não por acaso, dois pontos fortes do discurso de Donald Trump durante sua campanha presidencial.
Na última segunda-feira, Trump anunciou que vai promover aumentos expressivos de tarifas sobre os bens provenientes do México, Canadá e China assim que tomar posse. A medida, disse, será em retaliação à imigração ilegal e ao “crime e drogas” que entram pela fronteira. “No dia 20 de janeiro, como uma das minhas muitas Primeiras Ordens Executivas, assinarei todos os documentos necessários para cobrar do México e do Canadá uma Tarifa de 25% sobre todos os produtos que entram nos Estados Unidos, e as suas ridículas fronteiras abertas,” postou o presidente eleito em sua plataforma Truth Social. “Essa tarifa permanecerá em vigor até que as drogas, em especial o fentanil, e todos os imigrantes ilegais parem essa invasão do nosso país!”
Para especialistas, medidas como essa, que atingem o coração do Nafta, podem aumentar drasticamente os custos para empresas e consumidores americanos. Mas Trump não está sozinho nessa cruzada. Boa parte do discurso anti-imigração tem tido aderência forte. A ascensão da extrema direita no Parlamento Europeu, por exemplo, está diretamente ligada a essa ideia de que são os imigrantes e não as mudanças estruturais no mundo da produção, com a automação e o crescimento da economia digital, os grandes responsáveis pela crise de empregabilidade, sobretudo de quem tem menos escolaridade, nas grandes economias.
Outro exemplo dessa mentalidade vem da Holanda. Governada por um partido anti-imigração, ela fechará suas fronteiras com a União Europeia por seis meses a partir do próximo dia 9 de dezembro. O país faz fronteira terrestre com a Bélgica e com a Alemanha, países que integram o Espaço Schengen, zona de livre circulação de cidadãos e mercadorias da União Europeia. Em situações extraordinárias, os países do Espaço Schengen têm autorização para fechar suas fronteiras. E a ministra da Migração holandesa, Marjolein Faber, justifica a medida como forma de controlar os fluxos migratórios para o país.
O diretor de marketing do Meio, Wagner Martins mora há cinco anos no país e entende esse movimento sob dois ângulos diferentes. De um lado, os movimentos migratórios dos últimos anos transformaram o país radicalmente, e o holandês tradicional começa a ter dificuldade de se identificar com uma sociedade que hoje é mais plural, com uma presença importante de muçulmanos. Por outro, há a pressão econômica de um fluxo migratório que vem de outros países europeus com mão-de-obra qualificada. “Hoje mais da metade das pessoas falam inglês nas ruas, você vê mais gente de hijab do que sem. Isso começa a incomodar, a trazer a sensação para o holandês de que o país está sendo invadido. E a verdade é que está. Mas se não houvesse necessidade de mercado, não teria imigração”, pondera.
Nova ordem mundial
Todos esses casos apontam para um cenário de profunda transformação na ideia de globalização. Mas será que, na prática, esse movimento antiglobalista tem o tamanho que aparenta?
A diplomacia brasileira minimiza o impacto do retrocesso na globalização e entende que, apesar desse movimento se fortalecer mundialmente, há um imperativo sobre as nações pelo menos no curto e médio prazos. “Os países vão ter que continuar se relacionando comercialmente. Ainda há muita coisa interligada, há dependências e interesses que obrigam que essas relações aconteçam”, disse ao Meio um membro do Itamaraty.
Especialista no tema, e professor da NYI Stern School of Business, Steven Altman conduz uma série de pesquisas sobre o estado da globalização no mundo, entre elas o Índice de Conectividade Global da DHL, que rastreia tanto o tamanho quanto os padrões geográficos do comércio internacional e do capital, além dos fluxos de informações e de pessoas ao redor do mundo.
Ele identifica cinco fatores políticos cruciais para entender o grau de conectividade global. O primeiro é paz e segurança. O segundo é que um ambiente empresarial doméstico atraente pode aumentar a conectividade global de um país mais do que políticas tradicionais de pró-globalização. O terceiro ponto é o de que políticas que aumentam diretamente a abertura para fluxos internacionais também podem ser muito eficazes, podendo ser adaptadas para focar em tipos específicos de comércio, capital, informações e fluxos de pessoas. O quarto é a primazia da integração regional, uma vez que cerca da metade de todos os fluxos internacionais ocorrem dentro das grandes regiões do mundo. Por fim, e talvez esse seja o ponto mais desafiante hoje, está a premissa de que criar apoio social para a conectividade global é crucial para sustentar os benefícios de um mundo mais aberto.
Ao analisar os dados, Altman defende que a maior parte da conversa sobre desglobalização não se refere a padrões reais de atividade internacional. E que, se houvesse de fato uma desglobalização, os padrões estariam diferentes. Por outro lado, ele enxerga mudanças nas políticas públicas e nos planos discutidos por empresas em relação a alterações em suas estratégias globais. “Minha visão é de que o Índice de Conectividade Global nos mostra que a desglobalização realmente não começou a ocorrer em termos de atividade internacional efetiva. O mundo ainda está basicamente tão conectado quanto nunca esteve. Mas, ao analisar os pontos políticos, há um risco elevado de desglobalização.”
Outro ponto que ele destaca é que as tendências atuais indicam níveis crescentes de protecionismo. Em sua avaliação, contudo, isso ainda não causou, ao menos até agora, uma reversão da globalização. “Claro, os fluxos internacionais provavelmente teriam crescido ainda mais se não tivéssemos esse recente aumento no protecionismo”, avalia, dizendo que outra dimensão a se considerar é a de que empresas e países costumam ser bastante criativos em encontrar maneiras de manter os mercados conectados, mesmo quando novas barreiras políticas são impostas. “O comércio, por exemplo, às vezes se desvia para rotas diferentes em vez de encolher. Isso reflete o quão benéfica a globalização tende a ser para as economias e quão custoso pode ser revertê-la.”
Ao olhar para o futuro, ele reafirma que enxerga sim um risco elevado de desglobalização. “Tomadores de decisão prudentes precisam levar esse risco em consideração. Mas eles não devem assumir que a desglobalização certamente acontecerá. Vimos que choques recentes, como o Brexit, a Guerra Comercial EUA-China, a pandemia de Covid-19 e as guerras na Ucrânia e Gaza não reverteram a globalização. Portanto, é possível que a globalização prove ser resiliente novamente, independentemente da nova turbulência que surgir no ambiente internacional.”
O caminho do meio de Gonet
Duas realidades antagônicas serão base das críticas e comparações que recairão sobre o procurador-geral da República, Paulo Gonet, nos próximos meses. Uma delas refere-se à inércia da Procuradoria-Geral da República na gestão de Augusto Aras, nomeado por Jair Bolsonaro, e que tratou de engavetar ou não iniciar investigações sobre o ex-presidente. De outro lado, a lembrança da extrema proatividade do parquet nos tempos de Rodrigo Janot, com os atropelos da Lava Jato que fizeram com que as investigações se perdessem depois, com a anulação das provas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Essas realidades pesam justamente sobre Gonet, uma pessoa que, de acordo com amigos muito próximos, é a personificação do equilíbrio. O tipo de gente que vai optar pelo caminho do meio.
Nesta semana, Gonet recebeu as mais de 800 páginas do inquérito sobre o plano de golpe que, de acordo com a Polícia Federal, foi elaborado no Palácio do Planalto, sob a orientação de Bolsonaro e dos militares graduados que o rodeavam, entre eles o general Walter Braga Netto, seu candidato a vice na chapa do PL. Da trama fazia parte o planejamento dos assassinatos do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, do vice, Geraldo Alckmin, e do ministro Alexandre de Moraes, do STF. Também estão em suas mãos outros dois indiciamentos do ex-presidente feitos pela PF: um sobre a fraude em cartões de vacina e outro sobre a venda das joias do acervo presidencial, recebidas em viagens no exterior pelo governo Bolsonaro. Uma possibilidade já aventada é a de que ele pode reunir os três inquéritos em uma só denúncia, caso avalie que provas de determinada investigação corroborem elementos presentes em outra apuração.
Essa não será a primeira vez que Gonet vai se deparar com denúncias envolvendo o ex-presidente. Como vice-procurador-geral eleitoral, foi ele quem analisou o processo que pediu a inelegibilidade de Bolsonaro, tanto na ação que apurava uma reunião no Palácio da Alvorada com embaixadores estrangeiros, realizada em 18 de julho de 2022, quanto a que tratava das comemorações do Bicentenário da Independência, realizadas em 7 de setembro do mesmo ano, em Brasília e no Rio de Janeiro. Em ambos os casos, Gonet manifestou-se favorável à inelegibilidade por abuso de poder político e o uso indevido dos meios de comunicação.
A depender das apostas de pessoas que o conhecem por dentro o Ministério Público, Gonet deve se manter fiel ao seu próprio estilo. “Ele não fará movimentos açodados e a gaveta não será uma opção para ele”, disse o presidente da Associação Nacional de Procuradores Federais (ANPR), Ubiratan Cazetta, que aposta que o inquérito não terá denúncias ofertadas ainda neste ano. “Ele também sabe que esse não é um inquérito comum”, destacou.
‘Professor socrático’
Mas quem é o homem encarregado de oferecer as denúncias contra Bolsonaro e seu grupo? Qual seu posicionamento político? Quais os traços mais marcantes de sua personalidade? Que fama ele construiu desde que entrou para o Ministério Público, em 1987, antes de a Constituição de 1988 redesenhar o órgão, conferindo a ele autonomia perante os Três Poderes? Amigo de Gonet, Cazetta contou que certa vez, ao falar sobre o discreto posicionamento político do amigo, chegou a apostar que ele era um conservador dado à prática da fé católica, outro traço importante na vida de Gonet. “Ele me corrigiu. Disse que era um liberal. Ele recusou a ser classificado como conservador e também não é de esquerda.”
“Eu o vejo como aquele professor socrático, que obedece ao método socrático”, disse Cazzeta, apostando que Gonet vai construir sua síntese após analisar a tese e testar todas as antíteses possíveis. Paulo Gonet sabe, segundo o amigo, que não há frustração maior para um procurador do que ver todo o trabalho de acusação ser anulado diante de vícios no processo. É pior que perder a ação. “Ele vai analisar tudo, vai estudar bem o fato. Se tiver dúvida, vai pedir a busca de provas. Ele sabe que, depois que oferecer a denúncia, ele é que terá que sustentar as acusações perante o STF na fase de julgamento. Essa turma pré-1988 é assim. Ele fará isso sem observar as pressões políticas”, apostou o amigo.
Hoje com 63 anos, Gonet é graduado em direito pela Universidade de Brasília (UnB) e é professor há mais de 35 anos. Ele se tornou mestre em Direitos Humanos Internacionais pela Universidade de Essex, no Reino Unido, e depois fez seu doutorado em Direito pela Universidade de Brasília. Ele já atuou no STF, entre 1983 a 1987, como auxiliar do então ministro da Corte Francisco Risek. Em 1987 passou em primeiro lugar no concurso para o MPF e chegou ao cargo de subprocurador. Uma de suas publicações, Curso de Direito Constitucional, em coautoria com o ministro Gilmar Mendes, do STF, é leitura obrigatória para estudantes de direito no país e venceu o Prêmio Jabuti, em 2008.
Gonet não chega a ser uma pessoa avessa à política, mas não gosta de manifestações públicas de apoio. Preza em manter seu voto secreto. Após ser indicado para vaga pelo presidente Lula, ele foi sabatinado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ), junto com o ministro Flávio Dino para a vaga no Supremo. Ambos eram indicação de Lula, mas Dino vinha do mundo político e tem personalidade bem mais esfuziante que a de Gonet. O contraste estava de novo se impondo naquela situação de forma bem nítida. Dino, com seu perpasse por todos os Poderes, e Gonet avesso aos gabinetes do poder em Brasília. Sua posição política é tão discreta que, antes de chegar à CCJ, onde foi aprovado com 22 votos favoráveis, e até antes mesmo da decisão de Lula de indicá-lo, seu nome havia sido defendido junto a Bolsonaro pela deputada bolsonarista Bia Kicis (PL-DF). Os dois foram colegas de turma na UnB.
Para oferecer essa denúncia, Gonet conta com o trabalho de mais nove procuradores do Grupo Estratégico de Combate aos Atos Antidemocráticos (GCAA), órgão criado após a invasão das sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 e responsável por analisar os processos abertos contra os envolvidos na tentativa de golpe. Mas é sua a condução. E agora todos esperam Gonet.
Fernanda Torres é o nosso Oscar
Começou em Veneza, há três meses, naqueles dez minutos de aclamação após a estreia no Palazzo del Cinema. Fernanda Torres, de pé e mãos dadas com Walter Salles e Selton Mello, os olhos marejados, encarava seriamente a plateia. Algo começava a mudar em sua vida naquele momento, embora ela não soubesse. Logo após a sessão, sua atuação em Ainda Estou Aqui rompeu a misteriosa barreira que separa o Brasil do mundo e virou assunto em jornais, revistas, sites e emissoras estrangeiros. A revista Variety a definiu como “soberba” e considerou o filme “profundamente pungente”. Elogios ao seu trabalho começaram a se enfileirar: “espetacular” (IndieWire), “extraordinário” (Hollywood Reporter), “incrível” (Guardian), “maravilhoso” (Time Out).
À estreia na Itália seguiu-se o que todos sabem: o filme foi aplaudido com paixão em Toronto, Nova York, Londres, Los Angeles e São Paulo antes de entrar em cartaz em 610 salas de cinema do Brasil inteiro. Número inferior ao de salas de blockbusters como Venom 3 e Gladiador 2 – e, mesmo assim, tornou-se a obra mais vista do país, com dois milhões de espectadores alcançados nesta sexta-feira. Ainda Estou Aqui já é um fenômeno cultural. O livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva que inspirou o filme passou a liderar a lista de mais vendidos da Amazon. Erasmo Carlos, que embala a trilha sonora com É preciso dar um jeito, meu amigo, foi redescoberto – sexto lugar na lista de músicas que viralizaram no Spotify brasileiro e quarto no ranking do aplicativo Shazam. E a peregrinação de Fernanda está longe do fim.
“Hoje estou em São Paulo em uma reunião, gravo dois comerciais, volto para o Rio e embarco para Londres, Paris, Madri e Lisboa antes do Natal. E dia 2 de janeiro já pego um avião para Los Angeles de novo”, disse ao Meio, antes de brincar falando sério. “Minha cabeça está fundindo.” Não é exagero dizer que Ainda Estou Aqui já é um divisor de águas na carreira da atriz que o Brasil viu pela primeira vez aos 13 anos, no dia 30 de julho de 1979, em uma edição do programa Aplauso, que adaptava peças de teatro para a TV Globo. Nanda, como é chamada por amigos, quis ser engenheira, sonhou com medicina, mas acabou “forçada a ser atriz”, como comentou esses dias nos Estados Unidos, pois sua mãe a obrigava a ir ao teatro – o país agradece, Fernanda Montenegro.
Talvez o brasileiro não tivesse a medida exata de sua admiração por Fernanda Torres. Agora está claro: é amor, amor grande. Oscarito disse uma vez que “nunca deixamos de amar quem nos faz rir”. E ela fez este país rir tanto que muitos achavam que ela era humorista. Como Vani, em Os Normais, e Fátima, em Tapas & Beijos, fez sucesso com pessoas de todas as idades e em décadas diferentes, tornando-se um nome popular já na primeira temporada ao lado de Luiz Fernando Guimarães, em 2001. Quem viveu aquela época, sabe: as pessoas combinavam de sair mais tarde às sextas-feiras para não perder a dupla na série escrita por Alexandre Cardoso e Fernanda Young. Antes de provocar risos na TV, criou outras emoções no cinema, como em Eu Sei que Vou te Amar (1986), de Arnaldo Jabor, quando ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes aos 21 anos – glória nunca repetida por uma brasileira. Também emocionou o público nos dois primeiros filmes que fez com Walter Salles – codirigidos por Daniela Thomas –, Terra Estrangeira (1995) e O Primeiro Dia (1998), e também no belo Casa de Areia (2005), de Andrucha Waddington, seu marido.
Dona de uma obra plural como atriz, tornou-se uma usina de memes na internet quando já era também uma escritora consagrada, com mais de 200 mil exemplares vendidos em sete países com seu livro de estreia, Fim, lançado como série de ficção em 2023 pelo Globoplay. Os memes, “forma superior de arte” segundo ela, começaram a surgir tanto por cenas marcantes de suas personagens – como Vani batendo panela e cantando “vou transar, vou transar” – como por frases sacadas num átimo em entrevistas. Um repórter lhe perguntou em dezembro de 2022, após sua participação no festival CCPX: “Como você se sente participando do maior evento de cultura pop do mundo e sendo aclamada assim pelos personagens que você fez?”. A resposta veio na ponta da língua: “Eu me sinto Pikachu”. Também é inesquecível sua participação em um programa do Serginho Groisman cantando Vapor Barato, música da cena mais lembrada de Terra Estrangeira, e os comentários que ouviu no dia seguinte – disseram que ela estava “to-tal-men-te drogada”, embora fosse apenas uma mãe cansada, preocupada com sua cria e com o bondinho do Pão de Açúcar (onde foi a gravação), como contou anos depois, em 2019, ao apresentador Fábio Porchat. Basta digitar seu nome no TikTok ou YouTube e comprovar: é a rainha dos memes.
O encontro desse amor antigo que os brasileiros têm por Fernanda com a interpretação comovente e delicada que ela faz de Eunice Paiva – advogada, defensora dos povos originários, mãe de cinco filhos, esposa de Rubens Paiva, mulher que lutou contra a ditadura militar – fez o país abraçar a missão do filme para chegar ao Oscar. Tarefa que consiste em fazer a obra ser vista em sessões organizadas para pessoas estratégicas – leia-se votantes do maior prêmio do cinema mundial. Em um post no Instagram da Academy Awards, responsável pela premiação, uma foto sua ganhou quase três milhões de curtidas, engajamento centenas de vezes maior que o gerado por imagens de outras estrelas.
Há também um inegável desejo de vingança por sua mãe não ter vencido o prêmio de melhor atriz com Central do Brasil, a obra-prima de Salles que mora no coração do país. Fernanda examina com cuidado o maior anseio da nação no momento: “É preciso reduzir as expectativas e entender que estar lá [ser finalista do Oscar, o que só será descoberto no dia 17 de janeiro] já é uma vitória para um filme falado em português. Isso já é furar uma bolha”, disse em entrevista à repórter Maria Fortuna, do jornal O Globo. “O não é certo. É com ele que eu lido. Se não, depois, um filme maravilhoso que você faz vira uma decepção.” Na mesma conversa, contou que, com tantas viagens e red carpets, ultimamente só pensa em looks. “Meu trabalho virou maquiagem, cabelo e look.” E voltou a falar sobre o Oscar em coletiva recente, arrancando risos para variar: “Pode estourar champanhe, vai pra lá sem expectativa porque não vai levar. Só explicar isso para as pessoas já ficarem contentes.”
No dia em que assisti ao filme no Cine Odeon, na Cinelândia, Rio de Janeiro – um cinema longe de casa porque todos os mais próximos não tinham mais ingressos –, fiquei emocionado em muitas cenas. É um filme que se divide em dois momentos: o primeiro de luz e alegria, de uma casa à beira-mar sempre aberta e reluzente; o segundo, radicalmente oposto, é de silêncio, ausência e escuridão, que tem como cena-símbolo as janelas da casa sendo fechadas por agentes da repressão, após Rubens Paiva ser levado para sempre. O som das cortinas é cortante como uma faca afiada. Muda diante do terror, Fernanda diz tudo com o olhar – a emoção contida elevada a uma altíssima potência. A cena da foto, em que Eunice/Fernanda diz para seus filhos sorrirem – quando o fotógrafo da Manchete queria uma imagem mais triste –, foi construída por ela. O roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega indicava que a personagem já chegava para a foto decidida a sorrir.
Estranho sair do Odeon após a sessão na Cinelândia noturna e nublada. Aquela praça histórica no Centro do Rio foi palco de muitas dores nos anos de chumbo, como o velório do estudante Edson Luís, em 1968, assassinado ali perto, no Calabouço. Cinquenta anos depois, em 2018, a vereadora Marielle Franco foi velada no mesmo prédio, sede do parlamento municipal, após ser executada por matadores de aluguel em um crime encomendado, pelo que indica a investigação da Polícia Federal, por dois políticos e um delegado. O Brasil que hoje abraça Ainda Estou Aqui é o mesmo que, no ano em que Marielle foi morta, elegeu um presidente um fã de torturadores. Mesmo país que, há apenas dois anos, quase sofreu um novo golpe militar, com detalhes revelados há poucos dias. Walter Salles demorou 12 anos para voltar a dirigir um filme de ficção, mas o timing do projeto escolhido não poderia ter sido mais exato.
O Oscar será entregue no dia 2 de março de 2025. Nada menos que um domingo de Carnaval. Ainda Estou Aqui está inscrito em oito categorias, entre elas melhor filme estrangeiro, melhor diretor e, claro, melhor atriz. Se o sonho brasileiro se realizar, os blocos de rua tocarão Tremendão. Beberemos até o amanhecer e brindaremos, to-tal-mente drogados, o cinema nacional do qual Fernanda, Walter e Selton são parte tão importante. Sentiremos alguma justiça nas leis do universo, saudaremos Xangô por ela e Exu pelos caminhos abertos. Buscaremos Nanda no aeroporto e a levaremos nos ombros, em um cortejo desvairado do Galeão à sua casa, na Lagoa Rodrigo de Freitas. Cantaremos alto que “é preciso dar um jeito, meu amigo” em homenagem a Eunice, Rubens e cada um dos 434 mortos e desaparecidos na ditadura, e aos milhares de torturados com suas cicatrizes visíveis e invisíveis. E se a estatueta de 34 centímetros não vier, pouco importa. Fernanda Torres é nossa.
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A política deu o tom nesta semana, e nada capturou mais a atenção dos leitores do que os Pontos de Partida e o inquérito do golpe. Chegando perto, dois momentos de felicidade: a dança da vitória de Pepe Mujica e uma receita deliciosa da Panelinha.
1. Meio: No Ponto de Partida, Pedro Doria chama os bolsonaristas para uma conversa, não para que mudem de opinião, mas para mostrar que o diálogo pode ser mais poderoso que a polarização.
2. Meio: Pedro Doria explica como a coragem de cinco generais e a covardia de Jair Bolsonaro salvaram o Brasil do golpe.
3. g1: Infográfico que mostra como se formou a teia do golpe que Jair Bolsonaro planejou, segundo a Polícia Federal.
4. X: O ex-presidente uruguaio José Pepe Mujica, no fechamento da campanha presidencial, dançando ao som da música de seu amigo Rubén Rada.
5. Panelinha: O delicioso bolo de milho de caneca, sem glúten e sem lactose.