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Edição de sábado: COP30, o clima mudou

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

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As furadeiras e as serras tico-tico ainda podiam ser ouvidas quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez seu discurso de abertura na Cúpula de Líderes de governo e Estado que vieram ao Brasil participar da COP30. Pelos corredores dos pavilhões por onde circulavam jornalistas, diplomatas e, volta e meia, algum ministro, operários tentavam, em vão, terminar o serviço para um evento programado há mais de um ano. Na véspera da abertura, na quarta-feira, uma típica chuva tropical caiu sobre Belém, fazendo brotar goteiras em várias partes dos pavilhões onde os líderes mundiais passaram os dois dias seguintes discutindo alternativas para salvar o planeta de uma catástrofe ambiental. Parecia a confirmação dos temores de que a COP30 em Belém seria um fracasso.

Não se pode afirmar isso, claro. Mas nesses dois primeiros dias de trabalho que antecederam a abertura oficial da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, marcada para segunda-feira, muitos dos desafios previstos nos últimos meses mostraram não ser apenas fruto do mau humor de pessimistas. As obras inacabadas pela cidade, os pavilhões ainda recheados de operários e a falta de água nos banheiros acabaram se transformando na imagem de uma cúpula esvaziada, com poucas lideranças e escasso comprometimento efetivo das nações ricas no combate à crise climática, apesar das muitas promessas de que todos estão profundamente empenhados em combater as causas do aquecimento do planeta. São pequenos detalhes que ilustram um momento do mundo em que a ideia de encontrar soluções para os problemas globais por meio de órgãos multilaterais parece mais enfraquecida do que nunca. Os desafios geopolíticos de um planeta cada vez mais polarizado também estão aqui.

Lula abriu seu discurso lembrando a Rio 92. Mas aqui em Belém, mais de 30 anos depois, pouca coisa faz lembrar daquele evento que prometia encontrar uma solução para o aquecimento global em ascensão. O Rio, de certa forma, inaugurou as discussões multilaterais sobre a crise climática em um momento que muitos diplomatas chamam de época de ouro do multilateralismo. Mais de 100 chefes de Estado foram à conferência de 1992, incluindo líderes de visões absolutamente díspares, como George Bush, presidente americano na época, e Fidel Castro, de Cuba.

Superpotências ausentes

Desta vez, a COP no Brasil não conseguiu trazer nem quatro dezenas de chefes de governo ou Estado. Pior, não vieram os presidentes das maiores potências mundiais em armas e poluição: Estados Unidos, China e Rússia. E Belém, Lula ou o Brasil não têm muito a ver com isso. Depois de três décadas de promessas, discussões, acordos e comprometimentos, pouca coisa foi feita efetivamente para reduzir as emissões de gás carbônico a partir da queima de combustíveis fósseis. O negacionismo climático passou a render votos tanto em grandes potências com tradição democrática quanto em países periféricos de tradições autoritárias. Enquanto isso, a exploração de petróleo segue em alta mundo afora, com a abertura de novos poços mesmo nos países que prometem liderar a luta contra o aquecimento global.

Um bom exemplo são Brasil e Noruega, os dois países mais empenhados em colocar de pé o que se espera ser o maior legado desta COP, o Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF, na sigla em inglês). O Brasil prometeu aportar US$ 1 bilhão para iniciar o fundo, e a Noruega outros US$ 3 bilhões. Mas, ao mesmo tempo, os dois países, que estão entre os maiores produtores de petróleo do mundo — Brasil em 6º e Noruega em 11º —, preveem investimentos muito mais vultosos na prospecção e exploração de combustíveis fósseis nos próximos anos. O Brasil vai colocar só nas pesquisas na Margem Equatorial US$ 3 bilhões até 2029, e a Noruega prevê investir em sua indústria petrolífera outros US$ 23 bilhões apenas no ano que vem. Apesar do discurso de que é preciso tempo para realizar uma transição energética que elimine os combustíveis fósseis, a contradição é bastante evidente.

Muito apoio, pouco dinheiro

Talvez por isso o Brasil encerra a Cúpula dos Líderes com muito menos países comprometidos em participar do fundo do que esperava. Apesar de mais de 50 nações terem endossado o plano e feito elogios rasgados à iniciativa brasileira, apenas quatro países, de fato, prometeram aportar recursos: Brasil, Indonésia, Noruega e França. Juntos, eles colocaram — com algumas condicionantes — um total de US$ 5,5 bilhões. Holanda e Portugal prometeram doar quantias mínimas para manutenção do fundo. Mas o Brasil esperava mais e ficou frustrado pelo fato de Reino Unidos — que descartou fazer qualquer aporte —, China, Japão e União Europeia não terem feito nenhum anúncio, ainda que futuro, de aportes. A Alemanha até ensaiou, mas na última hora afirmou que faria uma contribuição expressiva, sem citar valores. O Brasil esperava anunciar que a meta de arrecadar US$ 25 bilhões até a COP do ano que vem seria alcançada, mas preferiu reduzir as expectativas para US$ 10 bilhões.

Na entrevista coletiva que anunciou a criação do fundo, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, disseram estar muito felizes com o resultado, apesar de a expressão dos dois não demonstrar a empolgação que diziam sentir naquele momento. Responderam a duas perguntas dos jornalistas e saíram afirmando que tinham reuniões agendadas. Haddad disse que os resultados anunciados superavam todas as expectativas iniciais, mas concordou que, ao final, o processo de convencimento dos outros países é lento. “É um processo complexo, muitos países estão tomando conhecimento agora, é normal que haja um tempo de maturação”, disse ele.
Coube ao ministro do Clima e Meio Ambiente da Noruega, Andreas Bjelland Eriksen, a missão de enfrentar os jornalistas enquanto saía da sala de entrevistas, o famoso quebra-queixo no jargão da imprensa.

Ao Meio, Eriksen disse não ver contradição pelo fato de Brasil e Noruega estarem investindo pesado em petróleo ao mesmo tempo que lideram um fundo para salvar as florestas tropicais. “Não posso falar pelo Brasil, mas nós, na Noruega, temos um plano claro de zerar nossas emissões de carbono em um prazo determinado”, disse ele. Na Noruega, a indústria de petróleo e gás responde por 22% do PIB e quase 50% das exportações. O ministro acrescentou que os US$ 3 bilhões só serão liberados em um prazo de 10 anos se o fundo, de fato, conseguir o aporte de US$ 10 bilhões até o fim de 2026. Ou seja, não há nada 100% garantido.

Mas pouca gente duvida que esse valor será alcançado, especialmente após a Alemanha, a maior economia da Zona do Euro, garantir que fará uma contribuição expressiva. “E quando falamos em expressiva, significa que será expressiva”, disse aos jornalistas o chanceler alemão, Friedrich Merz. Com as contribuições da França, da Noruega, as promessas alemãs e o endosso de mais de 50 países, a criação do fundo foi uma vitória brasileira, mas não uma vitória expressiva como Lula e Haddad esperavam.

Fundo exige metas

O TFFF é um mecanismo complexo que foi pensado, estruturado e agora implementado sob a liderança do Brasil, com apoio direto do Banco Mundial. Ele prevê que os países invistam os recursos em um fundo que será remunerado com base nos títulos do Tesouro americano. A ideia é que, após remunerar os investidores, os recursos sejam distribuídos a 73 países em desenvolvimento que abrigam cerca de 1 bilhão de hectares de florestas tropicais e subtropicais úmidas. Os recursos só seriam liberados aos países que cumprissem as metas, que seriam checadas em tempo real por dados de satélite. Na previsão do Banco Mundial, para cada dólar investido por governos, seria possível arrecadar outros US$ 4 com o setor privado. Apesar da boa recepção entre os ambientalistas, houve críticas ao fato de que as florestas, como quase tudo no mundo, irão se transformar em um ativo financeiro.

Apesar das frustrações, ainda que negadas pelo governo, a implementação do fundo, de fato, será um avanço importante mesmo que ele esteja ocorrendo fora da conferência oficial. Será um marco de uma COP que comemora os dez anos do Acordo de Paris, quando também houve a promessa de que uma solução efetiva para a crise climática havia sido encontrada. É mais ou menos como está a estrutura para a COP aqui em Belém: há frustração velada, comemorações públicas e a promessa de que tudo estará pronto para a próxima semana. Muita esperança, nenhuma garantia.

Desorganização geral

Para alguns, no entanto, as esperanças se foram. Jornalistas internacionais que vieram cobrir a Cúpula de Líderes em Belém se dizem impressionados com a desorganização dos primeiros dias. Mesmo no Centro de Mídia, o local onde se concentram aqueles que dirão coisas boas ou ruins sobre o evento, a situação por muitas vezes parecia caótica. Ao fim do primeiro dia, foi-se a água dos banheiros sem dar sinais de retorno até o fim da cúpula na noite de sexta-feira. Não demorou muito para os vasos sanitários entrarem em colapso. Sem o ar-condicionado potente que faz qualquer um esquecer que está na Amazônia, logo um cheiro nauseante tomou conta dos banheiros. Lenços umedecidos se tornaram itens disputados não só entre jornalistas, mas entre delegados, organizadores e participantes desses dois dias de cúpula. Pequenos potes de álcool em gel passaram a ser colocados na porta dos sanitários como alternativa à água tão abundante na Amazônia, mas tão rara nos pavilhões.

É bem verdade que a ONU ainda não assumiu o controle da organização, o que só acontecerá na segunda-feira, quando o número de participantes pulará de algumas centenas de pessoas para dezenas de milhares. Quem já cobriu muitas conferências do clima diz que Belém, por enquanto, ainda não se provou a mais desorganizada, mas, mesmo que tudo mude, vai ficar bastante da impressão inicial. Até agora, a cidade suportou bem os desafios mais preocupantes. O trânsito não foi o caos que se esperava e, até aqui, pelo menos, não há relatos de participantes sem um quarto para dormir. Mas, segundo a própria organização da COP na sexta-feira, 27 delegações entre os cerca de 190 países que participarão do evento ainda não tinham suas acomodações confirmadas.

Os preços abusivos, outra preocupação, não eram fáceis de serem notados na cidade, que segue com o esgoto correndo nas sarjetas de ruas a poucos quilômetros de onde ocorrerá a COP. Alimentação, transporte e lazer, dizem os belenenses, não mudaram muito na cidade. Os abusos nos preços, ao que parece, estão concentrados exatamente dentro dos pavilhões que receberão a conferência e onde ocorreu a cúpula. Aqui, um salgadinho simples, como uma coxinha, não sai por menos de R$ 30, enquanto uma lata de refrigerante custa R$ 25. A organização tem distribuído água, mas em temperatura ambiente, o que em Belém significa quente, basicamente. Para se refrescar com água gelada, os participantes do evento precisam desembolsar outros R$ 20 por uma latinha de 300 ml.

A Cúpula dos Líderes terminou com o presidente Lula fazendo quase um mea-culpa ao anunciar que o Brasil vai criar um fundo com recursos da exploração do petróleo para financiar a transição energética no país. O anúncio foi feito em um discurso para representantes de mais de 100 países. Sempre ao som das furadeiras e serras tico-tico.

A aldeia mais global, mais rápida e mais rasa

No início dos anos 1960, o teórico da comunicação canadense Marshall McLuhan (1911-1980) cunhou o conceito de “aldeia global”, refinado no livro A Galáxia de Gutenberg: A Formação do Homem Tipográfico, de 1962. Na obra, McLuhan descreve como os meios eletrônicos (especialmente o rádio e a televisão, que se popularizavam) estavam encurtando as distâncias e reconectando as pessoas em uma espécie de “aldeia” planetária — um retorno à comunicação tribal, mas em escala global. “O meio é a mensagem”, escreveu o pensador.

Seis décadas depois, seu neto, Andrew McLuhan, preserva a contribuição do avô para o pensamento da comunicação por meio do Instituto McLuhan, fundado em 2017. Desde então, outros meios eletrônicos, a começar pelas redes sociais, um tanto mais rápidas que o rádio ou a televisão, vêm agindo sobre a sociedade, e ainda não temos uma ideia precisa do impacto da inteligência artificial. Em visita ao Brasil, Andrew McLuhan conversou com o Meio sobre os desafios impostos por essas novas tecnologias à experiência humana.

Os Estados Unidos mudaram muito de 2017 para cá. Como o McLuhan Institute tem trabalhado essas mudanças e para onde acha que estamos indo?

Os Estados Unidos são um caso interessante porque são um país, uma sociedade democrática fundada em um momento da História em que a comunicação era lenta. Naquele tempo [o fim do século 18] fazia sentido uma comunidade designar uma pessoa para levar seus interesses até Washington, porque, se você estivesse do outro lado do país, levaria meses para chegar lá. Mas, embora o tempo tenha mudado — e muito —, o estilo da democracia deles mudou muito pouco. Acho que o que vemos agora é uma tensão interessante entre a História e as novas configurações da sociedade: o que era adequado há 250 anos já não é mais. Então há uma certa dissonância na mente das pessoas. E o que é triste, de certa forma, é que muitos ainda agem como se os princípios do passado continuassem valendo.

Pode dar um exemplo?

Na política, costumava-se dar muita atenção às pesquisas de opinião — mas elas estão cada vez menos confiáveis, certo? As pessoas podem dizer que vão fazer algo e, na hora de votar, fazem outra coisa. Outro fator importante é que a razão e a racionalidade não têm mais o mesmo papel que tinham. Acho interessante observar que essa foi a principal diferença entre os partidos Republicano e Democrata na tentativa de vencer as eleições. O Partido Democrata enfatizou muito a ideia de que eles eram a escolha inteligente, lógica — afinal, parecia óbvio que o outro lado era louco, imprevisível e irracional. E eles pensavam: “Como poderíamos perder? Qualquer pessoa razoável vai perceber isso.” Mas o que não entenderam é que as pessoas não tomam mais decisões baseadas apenas em lógica. É mais emocional agora. E as pessoas tendem mais a votar contra alguém do que a favor de alguém. Ou seja, muitas vezes não é votar no Trump, é votar contra o outro partido.

O que provoca esse comportamento?

A política mudou muito à medida que nos afastamos de uma era mais letrada. E acho que a tendência vai continuar nessa direção. Agora, com a chegada da IA, isso se intensifica ainda mais, porque já era difícil distinguir o que é real e o que não é — e agora é quase impossível. E podemos até chegar ao ponto em que não apenas é impossível saber, mas também deixa de importar. Trump gosta de falar em “fake news”. Mas basta dizer que algo é real para que pareça real, ou dizer que é falso para que pareça não ser. Em termos democráticos, isso é extremamente perigoso. E esses elementos não se misturam bem. Não sei muito bem o que fazer com isso, na verdade.

Estamos falando dos EUA, mas tudo isso se aplica também a outros países, não? Inclusive ao Brasil.

Ao Brasil, claro. Essa é a natureza do nosso mundo hoje. Meu avô, Marshall McLuhan, falava sobre a “aldeia global”. Há 300 anos, uma carta levava duas semanas para chegar ao Brasil e mais duas para voltar. Agora, poderíamos estar tendo essa conversa por telefone ou Zoom. O tempo e o espaço se encolheram a ponto de se tornarem quase irrelevantes.

E isso nos dá menos tempo para pensar.

Houve um intelectual francês chamado Alphonse de Lamartine [1790-1869] que, quando o jornal era novidade, dizia que “o livro chega tarde demais”. Ele queria dizer que, no tempo em que se escreve, edita, diagrama e publica um livro, a notícia já aconteceu. Na era dos jornais — e, mais ainda, da internet —, as coisas acontecem em um instante. O livro demora demais. Então, como meio de comunicação “vital”, ele não serve. Mas a força do livro está justamente na lentidão. Por ser um processo demorado, ele exige cuidado, exige certeza — porque você não pode simplesmente “deletar o tweet” ou editar depois. Uma vez impresso, está feito. São dois formatos diferentes: um prioriza a velocidade (não necessariamente a precisão), o outro prioriza a exatidão, mas leva mais tempo. E isso nos obriga a pensar: que tipo de sociedade queremos? Se queremos uma sociedade que valoriza a verdade e o acerto, precisamos repensar a relação com a velocidade.

Como você vê a sociedade de hoje moldada pelas redes sociais e pela IA? Pensamos menos?

Exatamente. Quando meu avô dizia que “o meio é a mensagem”, ele explicava que a mensagem é a mudança de escala, ritmo e padrão que um novo meio introduz em nossas vidas. E, claro, a velocidade é uma dessas mudanças. A escala é outra: em termos da qualidade de vida, do cotidiano, ela importa muito — porque nós, humanos, temos limites físicos, e às vezes esquecemos disso. A internet faz parecer que somos ilimitados, porque podemos “viajar” à velocidade da luz. Mas isso não é o mesmo que estar lá. Há um conceito chamado “número de Dunbar”, que é a quantidade de relacionamentos significativos que uma pessoa consegue manter — algo em torno de 100. Não é muito. Mas quantos “amigos” você tem no Facebook ou no LinkedIn? Centenas, milhares. Há uma espécie de equação nisso: quanto mais rápido você vai, menos profundidade tem. E profundidade significa conexão e significado. Você não pode conhecer mil pessoas da mesma forma que conhece dez. Esse é o impacto das redes sociais: superficialidade. E isso não é sustentável para o ser humano, não é algo que nos nutra. E agora, com a IA, isso está se intensificando. As pessoas estão substituindo amigos por máquinas. Muita gente passa horas conversando com o ChatGPT.

Até fazendo terapia...

“Terapia”, “amizade”. Existe até um novo dispositivo chamado Friend, um pingente com IA que escuta você falar e depois envia mensagens de texto. Isso muda radicalmente as relações humanas, e não tenho certeza de quão saudável isso é. Acho que vamos descobrir.

E em relação à saúde mental? Para onde estamos indo com tudo isso?

É difícil manter os pés no chão quando se está se movendo tão rápido. Eu costumo dar o exemplo: há várias formas de ir de um lugar a outro — a pé, de bicicleta, de carro ou de avião. Cada uma é mais rápida, mas também mais distante da experiência. Eu moro em uma cidade pequena; posso ir a pé ao correio em cinco minutos, ou de carro no mesmo tempo. Mas, andando, sinto o cheiro do café e do pão, encontro pessoas, vejo as árvores... De carro, apenas chego lá. Às vezes o que importa é só “chegar”, mas, na vida, o que realmente nos dá significado são essas experiências sensoriais e relacionais. Mais uma vez: sacrificamos profundidade pela velocidade. E estamos indo tão longe nesse extremo que em algum momento vamos bater numa parede e precisar voltar. Caso contrário, o que significa ser humano?

Você acha que essa “parede” está próxima?

É difícil imaginar que não esteja. Estamos nos afastando tanto da experiência humana tradicional que quase viramos outra coisa. As pessoas passam de 12 a 18 horas por dia olhando para telas. Parece alarmante para mim — talvez não para os mais jovens, que já veem isso como normal. Mas, pense: o que é olhar para uma tela? É basicamente encarar um pedaço de vidro. Há um vídeo viral de uma mulher em uma fila de café “rolando” em um pedaço de plástico transparente no formato de um celular. E o engraçado é que, embora pareça ridículo, não é muito diferente do que já fazemos. Ficou tão natural que é desconfortável não fazer isso. Virou um hábito — muito rápido.

Qual seria a melhor forma de informar as pessoas?

Pergunta difícil! O desafio é alcançar as pessoas onde elas estão — e trabalhar dentro dessas limitações. É difícil, porque às vezes você quer levá-las a outro lugar, mas elas não querem ir. E é sempre mais fácil avançar tecnologicamente do que voltar atrás. Mas talvez haja coisas que possamos fazer — e isso se conecta à saúde mental. Por exemplo, ler no papel é cognitivamente diferente de ler em uma tela. Na tela, a luz vem de dentro; no papel, vem de fora. E isso muda o comportamento dos olhos e da mente. Na tela, pulamos e escaneamos o texto. No papel, seguimos o fluxo. E isso treina a mente a ser mais lógica, lenta e conectada. Eu recomendo aos meus alunos: se estiverem ansiosos ou com dificuldade de concentração, leiam no papel e escrevam à mão. Falar, eu consigo cerca de 120 palavras por minuto; digitar, 80; escrever à mão, 40. E, ao desacelerar a mão, você desacelera a mente. É uma forma de terapia. Quinze minutos por dia escrevendo já fazem diferença em poucas semanas.

Existe alguma maneira de regular as redes sociais ou a IA sem ferir a liberdade de expressão?

Na verdade, acho que as novas tecnologias podem ser um grande benefício para a democracia. Pense no conceito: “governo do povo”. A democracia representativa — em que elegemos alguém para nos representar — fazia sentido quando distância e velocidade eram fatores importantes. Hoje, não mais. Agora todos podemos expressar nossas opiniões diretamente, quase em tempo real. Isso é, em essência, mais democrático. O problema é outro: liberdade de expressão, anonimato e responsabilidade. O anonimato protege denunciantes, mas também permite comportamentos nocivos sem consequência. Precisamos encontrar o equilíbrio entre proteger e responsabilizar. E ainda não conseguimos.

Como podemos construir um futuro melhor?

A primeira coisa é perguntar: o que você valoriza? Como indivíduo, como família, como empresa. Faça uma lista — de verdade, escreva à mão — e veja se suas tecnologias e seu trabalho estão alinhados com esses valores. Se sim, ótimo. Se não, é hora de repensar. O mesmo vale para novas tecnologias como a IA: antes de adotar, pergunte-se: “isso está de acordo com meus valores? Melhora o que considero importante? Ou atrapalha?” E assim podemos refletir e melhorar.

Sendo bem otimista, talvez as pessoas percebam se estão sendo as mesmas online e offline, porque às vezes alguém é muito gentil pessoalmente, mas horrível nos comentários do YouTube, por exemplo. (Risos)

Mas isso acontece porque o “você” online é só uma fração de quem você é de verdade — e nem sempre a melhor fração. O que valorizamos como humanos é a experiência completa, e isso não acontece na tela do celular que seguramos por dez horas por dia. Se quisermos ser honestos, precisamos reconhecer isso — e, mesmo que não seja o caminho mais fácil, é o mais humano.

O método do discurso

Dois espetáculos que levam a assinatura da atriz, diretora, dramaturga e “transpóloga” Renata Carvalho levam para São Paulo discussões sobre esferas políticas complementares. Antígona Travesti e Diamba propõem encontros de resistência e educação, desafiando a violência estatal e os estigmas sociais.

Segundo Renata, os trabalhos encontram uma intersecção na escolha “de como utilizar essas questões mais sensíveis numa comunicação não violenta, numa não reprodução de estereótipos”. Na prática, ela defende que isso vem da sua maneira de escrever e de como interagir com a plateia. “No Diamba eu estou falando sobre maconha, mas usando da mesma tática e estudo que eu tenho sobre o corpo travesti”, explica. Enquanto Antígona Travesti convoca uma “reunião secreta” para derrubar a tirania, Diamba reconstrói a história do proibicionismo da cannabis no Brasil, desvendando suas origens racistas.

Renata Carvalho emerge no cenário cultural como uma pensadora e ativista cuja “práxis artística é inseparável de um rigoroso projeto intelectual e de uma militância incansável”. Sua autodesignação como “transpóloga”, definida como uma “travesti cientista”, reflete seu papel como sujeito e objeto de pesquisa sobre o corpo trans desde 2007. Ela é fundadora do Movimento Nacional de Artistas Trans (MONART) e do “Manifesto Representatividade Trans”, campanha conta o “transfake” — prática de artistas cisgêneros interpretarem personagens trans.

Seu trabalho ganhou visibilidade nacional com O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, peça em que retratava Jesus trans e sofreu com inúmeros episódios de censura conservadora a partir de 2017. Como costuma acontecer em casos de cerceamento da arte, o tiro acabou saindo pela culatra, e Renata se tornou uma voz crucial tanto na dramaturgia quanto no ativismo, trazendo reconhecimento para seu trabalho dentro e fora do país.

Antígona
Encenada em diferentes palcos da cidade, Antígona Travesti fica em cartaz até 30 de novembro. Como é montada como uma reunião secreta, para saber a data, o horário e o local exato do encontro, os interessados devem escrever diretamente para Antígona no Whatsapp. O número para reservar os ingressos é: 11 94067-3441.

A releitura da tragédia grega vai além do texto de Sófocles, e na sua concepção são utilizados também a peça Gota D’Água, escrita por Chico Buarque e Paulo Pontes, e os romances O Parque das Irmãs Magníficas, da argentina Camila Sosa Villada, e Mau Hábito, da espanhola Alana S. Portero.

A trama se passa na megalópole Tebas, onde a protagonista Antígona — “uma traviarca afetuosa e protetora” — cuida de uma ONG para pessoas trans. Após o assassinato brutal de sua filha, Polinice, uma travesti de 23 anos, no centro da cidade, Antígona se revolta contra o decreto do tirano Creonte que proíbe o sepultamento da jovem com suas roupas femininas e seu nome na lápide. A peça se configura como uma “célula de resistência, um espaço de luta contra a tirania de Creonte, um governante religioso de extrema direita”.

Na visão de Renata, Creonte é um “espelho da extrema direita e da violência de Estado”. O próprio Estado de Tebas foi construído para ser qualquer Estado extremista, com Creonte ostentando várias nomeações como presidente, bispo, ditador e general. O texto insere críticas diretas ao discurso conservador brasileiro, com falas como “Tebas acima de tudo, Deus acima de todos”.

Apesar de partir de duas violências, a do próprio assassinato e a da retirada de direitos da população trans, Renata diz optar por uma dramaturgia positiva, recusando a morte como destino final. “A Antígona não morre. Eu não queria mais falar de morte, né? Até troco uma fala por: ‘Eles escolheram a morte, nós a vida. Lutemos por ela com dignidade’”.

Diamba
A segunda peça fica em cartaz até dezembro na Casa Farofa. É inspirada na HQ documental Diamba, Histórias do Proibicionismo no Brasil, de Daniel Paiva. O espetáculo, que conta com Luis Navarro no argumento e no elenco, aborda a história da proibição da maconha no Brasil. A direção de Renata Carvalho tem foco “na positividade e na liberdade individual”.

A escolha estética central foi evitar a reprodução de violências, racismo e prisões, mesmo sabendo que o tema está intrinsecamente ligado a esses fatos. Renata enfatiza que não queria reforçar esse imaginário, “porque a gente só fica reproduzindo essa semiótica perversa e racista, que, de tanto ser reproduzida, vira verdade”. Para exemplificar, ela diz que optou, por exemplo, por não retratar homens negros sendo presos.

A peça atua como uma maneira de reforçar a ideia de que o proibicionismo é uma “grande mentira” ou, em termos atuais, “fake news”. Além da narrativa da proibição em si, Diamba informa sobre a história da planta e seus benefícios, incluindo sua conexão com os povos negro e originários. A trilha original, com elementos de música negra e dos rituais de matriz africana, ajuda a conduzir a narrativa.

Outro elemento central da experiência é o debate pós-espetáculo, “Sempre a gente conta com a presença de um especialista, um médico, um advogado ou um cientista para conversar com a plateia. E tem ainda uma parceria com a VerdeVida Associação, que permite ao público tirar dúvidas e talvez ter acesso ao óleo medicinal se precisar”.

Transversal aos dois trabalhos é o conceito de travaturgia. Uma mescla de estética e militância, definida por Renata como um “olhar de ‘travesti cientista’ sobre a escrita”. Ela o compara à “escrevivência” e diz que ele propõe “um novo olhar, uma nova escrita, um novo jeito de falar sobre nós”. A artista utiliza essa ferramenta para responder artisticamente às questões de sua época, “recorrendo ao teatro, aos clássicos”, mas sempre buscando “mudar as perguntas”.

Seu objetivo estético e político não é apenas a denúncia, mas a transformação do imaginário através de uma abordagem “empática, ética, responsável”. Ao evitar a reprodução da violência e focar na vida em suas peças, Carvalho tem um desejo de ampliar a humanidade para além do palco. E entende sua atuação como esforço para a mudança social, inspirando “vontade de luta, não de morte”. O que não é pouco no país que mais mata pessoas trans.

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