A “teoria constitucional” do bolsonarismo

Para justificar a expansão das prerrogativas presidenciais, substitui-se a interpretação da lei por uma outra, seletiva, e exploram-se os pontos cegos do sistema para atacar as instituições encarregadas de limitar o arbítrio do Executivo

Como qualquer constitucionalismo autoritário, o constitucionalismo bolsonarista não se orienta pela doutrina do Estado de Direito, que é pautado por princípios como o da legalidade, irretroatividade da lei, publicidade e moralidade administrativa, e caracterizado por uma arquitetura institucional voltada para a contenção do arbítrio governativo, cujos pilares são a separação de poderes, os freios e contrapesos, o federalismo e o controle de constitucionalidade pelo Judiciário. Ao contrário. Herdeiro do absolutismo, o constitucionalismo autoritário se orienta pela velha doutrina da Razão de Estado, que preconiza a possibilidade de desrespeito à lei pelo governante sempre que ameaçado o valor supremo da “segurança nacional”. Naturalmente, é o próprio governante que aí ajuíza do grau de periculosidade da referida ameaça, tendendo invariavelmente a confundir a segurança da nação com a sua própria. Daí a busca incessante por juristas desfrutáveis, capazes de engendrar fórmulas jurídicas que lhes permitam escapar ao império da lei mediante interpretações capciosas e leis de exceção.

Da doutrina da Razão de Estado se extraem duas técnicas de governo. A primeira delas é a do segredo de Estado, que autoriza ao governante suprimir pela imposição do sigilo a publicidade de seus atos ou de seus agentes. A segunda é o golpe de Estado, ação violenta e fulminante destinada a neutralizar os inimigos da segurança nacional (isto é, a sua). Vide a frequente imposição por Bolsonaro do sigilo — às vezes de 100 anos — sobre todos os atos administrativos sobre os quais recaiam suspeitas de práticas não-republicanas e o esvaziamento contínuo das garantias oferecidas pela Lei de Acesso à Informação. A pretexto de assegurar a segurança de Bolsonaro, o governo impôs sigilo no cartão de vacinação do presidente; sobre os dados dos crachás de acesso de seus filhos ao Palácio; sobre o processo disciplinar do ex-ministro Eduardo Pazuello; sobre os encontros do presidente com pastores lobistas envolvidos com corrupção no Ministério da Educação, etc. O sigilo não só visa a garantir a impunidade do agente administrativo que age de forma irregular em benefício do presidente, mas a incentivar que outros façam o mesmo.

O meio pelo qual o constitucionalismo autoritário se viabiliza no cotidiano é um legalismo autocrático que substitui a interpretação da lei conforme valores, princípios e precedentes constitucionais por outra, positivista, formalista e seletiva, voltada para justificar a expansão das prerrogativas presidenciais. Exploram-se os pontos cegos do sistema para aparelhar a administração, atacar as instituições encarregadas de limitar o arbítrio do Executivo e responsabilizá-lo por seus atos. Governa-se por decretos ilegais, aparelham-se os órgãos administrativos, vandalizam-se órgãos públicos transformados em misto de cabide de emprego e depósito de lixo. Banalizam-se as emendas à Constituição para fugir à fiscalização dos tribunais. Neutralizam-se instituições encarregadas de controlar os malfeitos do governo, como o Ministério Público, a Polícia Federal, o Tribunal de Contas e o Poder Judiciário. Todas esses atos são apresentados pelo legalismo autocrático como perfeitamente constitucionais.

É desse ponto de vista que Bolsonaro declara “jogar dentro das quatro linhas” — ainda que com farta distribuição de catimbas, faltas e outras jogadas desleais, sob o olhar complacente de um árbitro por ele designado e devidamente comprado.

A pedra de toque do constitucionalismo autoritário bolsonarista que justifica o legalismo autocrático reside na tese de que o art. 142 da Constituição, segundo a qual ele teria conferido ao presidente da República, na condição de comandante-em-chefe das Forças Armadas, um “poder moderador” que lhe permitiria em caso de crise impor sua vontade sobre o Legislativo e o Judiciário, na qualidade de “guardião da Constituição”. Como se sabe, o Poder Moderador foi um quarto poder atribuído ao Imperador pelo art. 98 da Constituição do Império para que velasse pela “manutenção da independência, equilíbrio, e harmonia dos mais poderes políticos”. Embora a república tenha extinguido o quarto poder, juristas e militares vieram desde então reivindicando sua herança. A doutrina judiciarista do “cidadão togado”, que encarregava o STF de defender e efetivar os valores da Constituição, foi mobilizada desde Rui Barbosa para combater as veleidades autoritárias do Poder Executivo. Doutrina consagrada na Constituição de 1988, cujo art. 102 da Constituição atribuiu ao Supremo “precipuamente, a guarda da Constituição”.

Contra o “judiciarismo” progressista, Bolsonaro e seus militares desenterraram a doutrina militarista do “cidadão fardado”, que conferira às Forças Armadas o papel de defender a segurança nacional que precederia qualquer ordem constitucional para ameaçar descumprir decisões “ativistas” do Supremo. Mas Bolsonaro introduziu uma novidade, ancorada mais uma vez em Carl Schmitt, príncipe dos juristas autoritários e pai da “democracia iliberal”: a de que, em vez de um tribunal constitucional a guarda da Constituição cabia ao presidente da República, autoridade eleita pelo povo alemão para representar imparcialmente a unidade e a totalidade indivisíveis de sua identidade nacional. Do casamento espúrio das duas doutrinas, surgiu a interpretação absurda de que, na qualidade de comandante-em-chefe das Forças Armadas, seria o próprio presidente o titular do suposto “poder moderador” que lhe permitiria impor-se contra os demais poderes em caso de impasse de vontades, impondo a sua própria.

Durante uma manifestação golpista, Bolsonaro sintetizou de modo admirável o ponto de vista do constitucionalismo autoritário: “Eu sou, realmente, a Constituição”.

Crendo-se o depositário único e verdadeiro da soberania popular, Bolsonaro se escora no suposto apoio da classe militar para, na condição de poder supremo da República, intimidar os outros poderes no livre exercício de suas competências e impor suas vontades, contra o princípio da separação de poderes. É assim que ele ameaça, braço armado, descumprir as decisões indesejáveis do Supremo a respeito de sua família; resistir à eventual abertura do processo de impeachment deflagrado pelo Congresso ou aceitar a cassação de sua chapa eleitoral pelo Tribunal Eleitoral. E é assim que Bolsonaro tem tentado sistematicamente desestimular, na base do grito, qualquer veleidade de contê-lo. E é preciso reconhecer que ele até agora tem logrado um êxito verdadeiramente notável, provando ser possível ao governante levar tudo no grito, se tiverem medo dele. Que aquilo que ele não ganhar no grito, pode ser comprado. E que quem não se deixa comprar, nem ficar quieto, pode levar uns tiros de presente no dia de seu aniversário.

De repente, não mais que de repente.


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24/04/24 • 11:00

Em seu café da manhã com jornalistas, na terça-feira desta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que a extrema direita nasceu, no Brasil, em 2013. Ele vê nas Jornadas de Junho daquele ano a explosão do caos em que o país foi mergulhado a partir dali. Mais de dez anos passados, Lula ainda não compreendeu que não era o bolsonarismo que estava nas ruas brasileiras naquele momento. E, no entanto, seu diagnóstico não está de todo errado. Porque algo aconteceu, sim, em 2013. O que aconteceu está diretamente ligado ao caos em que o Brasil mergulhou e explica muito do desacerto político que vivemos não só em Brasília mas em toda a sociedade. Em 2013, Twitter e Facebook instalaram algoritmos para determinar o que vemos ao entrar nas duas redes sociais.

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