Edição de Sábado: Impedimento

“É um tema que aconteceu há 37 anos atrás (sic), 1987 (...) Nessa lembrança que eu tenho, eu tinha 23 anos na época, nós iríamos jogar uma partida e subiu uma menina para o quarto, o quarto que eu estava junto com mais três jogadores, um quarto com duas camas de casal, em L, outras duas camas. Essa foi minha participação nesse caso. Eu sou totalmente inocente, eu não fiz nada. As pessoas falam que houve um estupro. Houve, acho, um ato sexual com uma vulnerável. Isso foi a pena que foi dada. A gente vê e ouve um monte de coisas falando inverdades, chegando a ofender. (...) Eu respeitei e respeito todas as mulheres, nunca encostei um dedo indevidamente em nenhuma mulher, em nenhuma mulher ao longo de todos os anos que eu vivo. Na bola, já trabalhei com vocês na imprensa, já tiveram comigo, tive em diversos clubes. Eu tive duas vezes no São Paulo, duas vezes no Palmeiras, duas vezes no Santos, nunca foi me questionado isso em uma coletiva. (...) Nós ficamos lá para averiguação, por três vezes a moça esteve lá na frente. Não é que te reconheceu, é que eu não tava. A vítima não sou eu, é ela. A vítima é a moça. “O rapaz não tá, o rapaz não tá”, se a vítima fala que não tá, e eu juro por Nossa Senhora, que é o que eu mais adoro e amo na vida, que não tava. (...) Mas é isso, tem repórteres e pessoas que eu já discuti com eles. 'Cuca, você deve uma desculpa para a sociedade'. Por que que eu devo uma desculpa para a sociedade? Do que que eu devo uma desculpa para a sociedade se eu não fiz nada? Por que que eu devo uma desculpa para a sociedade? Dois anos e meio depois desse caso eu fui jogar ali do lado, na Espanha. Nunca teve consequência nenhuma.”

Estes são trechos do discurso proferido em 21 de abril por Cuca, em sua apresentação como novo técnico do Corinthians. A menina que subiu ao quarto tinha 13 anos. Era a “vulnerável”. Ao iniciar a coletiva de imprensa, o treinador foi questionado sobre o caso de violência sexual pelo qual foi condenado em 1987. De saída, disse que era um tema “delicado”, “pessoal”, sobre o qual tem lembrança “muito vaga”. Essa névoa nas memórias de Cuca deve ser porque, por décadas, o episódio esteve intocado, confinado no noticiário do caso à época e nos documentos sigilosos da Justiça suíça. Mas não estamos mais na era da opacidade. Em 2023, são poucas as histórias que permanecem sob a bruma do esquecimento ou da ignorância. A de Cuca foi recuperada com toda a força que a mobilização de torcidas, mulheres, imprensa — da sociedade, enfim — pode ter. No dia 26 de abril, sob os gritos de protesto do movimento “Fora Cuca”, ele estava fora do Corinthians.

Cuca, então jogador do Grêmio, e outros três colegas de equipe, Eduardo Hamester, Henrique Etges e Fernando Castoldi, foram detidos em 1987 em Berna, na Suíça, por 30 dias, sob acusação de terem tido relações sexuais com uma garota de 13 anos. Uma investigação da polícia local apontou que a garota pediu autógrafos e camisetas para os jogadores e foi levada por eles para o quarto 2014. Horas depois, ela registrou queixa de que teria sofrido violência sexual. Os jogadores foram enquadrados no artigo 187 do Código Penal da Suíça, que previa uma reclusão de até cinco anos, para quem se envolva em um ato sexual com uma criança menor de 16 anos, ou incite a criança a cometer tal atividade ou envolva uma criança em um ato sexual. Dois anos depois, três atletas foram condenados a 15 meses de prisão (incluindo Cuca) por atentado ao pudor com uso de violência e um, a 3 meses, por ato de violência. Nenhum deles cumpriu pena. E o crime prescreveu em 2004.

Assim como fez na coletiva, Cuca sempre negou qualquer envolvimento no caso e se diz inocente mesmo tendo sido condenado. O blog do jornalista Juca Kfouri revelou que o jornal suíço Der Bund noticiou, um dia após a condenação dos quatro jogadores, que “o relatório médico forense mais tarde encontrou vestígios de sêmen dos dois jogadores Alexi e Eduardo no corpo da garota". Alexi Stival é o nome de Cuca. O repórter do UOL Adriano Wilkson entrou em contato com o advogado que representou a vítima, Willi Egloff. Ele afirma que Cuca foi, sim, reconhecido pela menina. "A declaração de Alexi Stival é falsa. A garota o reconheceu como um dos estupradores. Ele foi condenado por relações sexuais com uma menor”, disse o advogado.

No retorno a Porto Alegre, em 1987, os quatro jogadores foram recebidos e ovacionados pela torcida do Grêmio, que os esperava no Aeroporto Internacional Salgado Filho. Retornaram heróis, como definiram as antropólogas Miriam Grossi e Carmen Rial em um artigo publicado, no mesmo ano do acontecimento, na revista feminista Mulherio — possivelmente, o único escrito por mulheres à época. Quase 40 anos depois, o compadrio típico dos vestiários ainda tentou proteger Cuca. No fim de um jogo da Copa do Brasil, em que o Corinthians se classificou nos pênaltis, alguns jogadores correram para abraçar Cuca, numa espécie de escudo em torno do treinador. “Aquele abraço que os jogadores fizeram questão de dar é revelador do que eles pensam. Aquele grupo de homens nega uma sentença judicial. Ele não está sendo acusado, ele foi condenado. Quando você abraça alguém que foi condenado por um crime, você está se revelando. Os homens precisam se colocar no lugar da outra. Se você se coloca no lugar da outra, no caso de uma criança de 13 anos, você não abraça. É uma alienação completa”, aponta o jornalista esportivo Paulo Cesar Vasconcellos. Ao ser questionado pelo apoio a Cuca, o jogador Róger Guedes seguiu o roteiro previsível: atacou a jornalista Ana Thaís Matos. Uma mulher.

É um comportamento que escancara a falta de diálogo dos profissionais do futebol com as discussões que rolam na sociedade, uma desconexão profunda que é tão própria dos campos quanto a bola. E desde sempre. O futebol chegou ao Brasil importado da Inglaterra, no final do século XIX — era uma prática burguesa, de homens brancos e ricos, descendentes da aristocracia da colônia inglesa por aqui. “Esse esporte já não era para todos. Ao longo de seu desenvolvimento, inclusive como uma modalidade de alto rendimento, a gente não vê o embate, as discussões que são inerentes à sociedade. Muito pelo contrário. Clubes, dirigentes e os próprios jogadores e técnicos vão deixando de lado temas que seriam fundamentais de serem discutidos. E esses profissionais são pessoas públicas, com visibilidade, e sua atuação dentro do campo tem uma reverberação do que eles fazem fora do esporte”, destaca a historiadora do esporte Aira Bonfim.

O quarto do grito

Essa segregação do futebol é um elemento fortíssimo no comportamento de profissionais e torcedores. Frequentadora de estádios desde o ano 2000, a diretora de arte Nayara Perone desenha numa analogia o que testemunha nas arquibancadas. “É como se o futebol fosse um quarto à parte do resto da casa, que é o mundo. É o quarto do grito. Você pode ir lá xingar, sair no soco, ser homofóbico.” Mas o mundo está chamando os habitantes do quarto do grito para fora, para a convivência — e para suas regras. “E toda mudança gera esperneio, né?”, pontua Nayara. Ela foi uma das fundadoras do site Dibradoras, em 2015, de cobertura de futebol feminino. Depois de sair da iniciativa, montou a entidade sem fins lucrativos JogaMiga, que ajuda mulheres adultas a iniciar a prática do futebol e a encontrar outras que queiram fazer o mesmo Brasil afora. Nayara é uma corintiana tão ativa nas redes e em sua torcida que quando a ESPN montou blogs de torcedores em seu site, ela era a titular do Timão. E como representante legítima da torcida corintiana, e em especial da torcida feminina, relembra como a pressão pela saída de Cuca se tornou insustentável.

A saída do treinador do Corinthians começa no Palmeiras e passa pelo Santos. Em 2016, Cuca era treinador do Verdão quando alguns torcedores do Corinthians, para pegar no pé e antagonizar ainda mais com os rivais, começou a investigar a vida do técnico. Nayara estava nesse grupo investigativo, que partiu de uma dica de um amigo gremista sobre o caso de Berna. A turma encontrou reportagens em português  — a maioria com a “lente gaúcha”, como ela aponta — e em alemão. Na década de 1980, a presença feminina nas redações brasileiras era ínfima. Ao noticiar o estupro, as páginas dos jornais imprimiram a visão machista do futebol em suas coberturas. “O fato ocorrido no hotel de Berna é normal em quase todas as excursões, dentro ou fora do país. Se os jogadores tivessem furtado, praticado desordem séria, ou outra atitude demasiadamente desabonadora, eu aconselharia sua eliminação do clube. Mas um deslize de ordem sexual em que, visivelmente, colaborou para sua consumação uma conduta, no mínimo, quase conivente da chamada vítima, não deve servir de amparo para uma decisão drástica. Agora é só torcer — no que acredito — que a Justiça fará justiça. Isto é, que ela realmente encare o fato como foi: uma travessura irresponsável e de total imprevidência dos seus atores quanto a ilicitude e consequências", escreveu o jornalista Paulo Santana no jornal gaúcho Zero Hora.

Tratar homens feitos como meninos é o subterfúgio recorrente. “Foram homens cobrindo um crime praticado por homens. As mulheres estavam presentes nas editorias de jornais, mas no esporte de forma muito tímida. Não cobriram aquela história, não houve um olhar feminino. Houve um olhar masculino com toda toxicidade que o olhar masculino tinha, e tem até hoje”, diz PC Vasconcellos.

A investigação amadora de Nayara e companhia, em 2016, causou algum barulho nas redes sociais, mas não mobilizou a imprensa tradicional e não foi suficiente para “atrapalhar” a carreira do treinador. Só que quatro anos mais tarde, Cuca reincidiu no hábito boleiro de proteger colegas condenados. Em outubro de 2020, o Santos anunciou o retorno de Robinho para sua quarta passagem pelo clube. Cuca era o treinador do Peixe. O atacante havia sido condenado em 2017 pela justiça italiana a nove anos de prisão por um estupro coletivo. Mas o técnico saiu em defesa de Robinho. "Agora não é hora de a gente falar desse tema. Tivemos bastante conversa, com diversas pessoas do clube, em cima dele. Ele, pra mim, é uma pessoa maravilhosa, um exemplo de jogador, sempre foi corretíssimo em todas as atitudes que ele teve. A gente não tem um momento da carreira do Robinho que deva ser denegrido. Tem o episódio fora do campo, que está sub judice, e a gente tem que aguardar. É um tema para falar com mais calma. O que eu puder fazer para ajudar o Robinho em vida eu vou fazer”, disse em uma entrevista coletiva.

O crime de Robinho foi contra uma jovem albanesa de 22 anos em janeiro de 2013, em Milão. Em 2022, Robinho foi condenado pela Corte de Cassação da Itália, a terceira e última instância do país. A sentença é definitiva, não há mais possibilidade de recurso. A Justiça da Itália pediu a extradição do jogador, mas, segundo a Constituição de 1988, o Brasil não extradita cidadãos natos. Robinho começou a jogar no futebol do Santos em 1996, aos 12 anos. Chegou ao time profissional em 2002. Poderia ter aprendido ali algumas noções básicas de respeito a mulheres, de autoestima, de aceitação de colegas homossexuais, etc. "A plataforma de convivência do dia a dia do futebol é estimuladora desse olhar condenável, valoriza esse tipo de postura. Acredito que nenhum clube se preocupa em educá-los de uma outra forma. Eles estão no futebol desde os 12, 13, 14 anos, e será que alguma vez esses temas foram abordados enquanto eles não estavam treinando? Não. O que há é uma conversa que vai se retroalimentando por gerações. Enquanto os clubes de futebol não entenderem que a sociedade mudou e que parte dessa mudança os obriga a conversarem com a sociedade, vamos ter gerações e gerações com o mesmo olhar”, enfatiza PC. Em 2020, Robinho disse ao UOL Esporte que não abusou sexualmente da mulher e que seu único erro foi ter sido infiel à esposa.

A disposição de Cuca em defender o jogador é uma prova do quanto o pacto entre os homens do futebol é forte e extrapola o fator geracional. Mas ali começava uma virada que nenhum dos dois antevia. Diante das manifestações da torcida e da pressão de patrocinadores, o Santos encerrou o contrato com Robinho seis dias depois de sua assinatura. Foi exatamente o mesmo prazo entre a assinatura de Cuca com o Corinthians e sua saída do clube.

Elas estão aqui

O futebol tradicionalmente colocava as mulheres como estrangeiras, invisíveis. No futebol masculino, não há treinadoras mulheres; no feminino, dos times grandes, apenas o Atlético Mineiro tem uma mulher a frente da equipe. Somente o Palmeiras é presidido por uma mulher atualmente. Nas arquibancadas, a presença feminina costumava ser acompanhada de assédio, perigos — embora a escala mude dependendo da cultura de cada torcida. “Por muitas décadas, as mulheres não são consideradas protagonistas dessa experiência do futebol. Inclusive da experiência do que é ser um cidadão no mundo, desse lugar público, de quem opina sobre futebol e outros temas”, explica Aira.

A mulher, para os boleiros, sempre teve dois lugares: ou o da santa (mães, esposas e filhas) ou o da “maria chuteira”. "Essa figura da 'maria chuteira' atravessa gerações e desumaniza. Ela não é uma mulher, é uma menina que quer o dinheiro deles em troca de sexo. É tão desumanizado que eu lembro de uma entrevista do goleiro Bruno, antes do assassinato da Eliza Samudio, em que ele perguntava 'quem nunca saiu na mão com a mulher'. Todos riram, inclusive quem estava na coletiva", diz Nayara. Isso foi em 2010. É bem lento o processo de mudança.  Nayara lembra de, em 2008, assistir a uma mulher sozinha dar um soco na boca de um torcedor que lhe falou uma obscenidade. Nenhum outro torcedor defendeu o rapaz. (Nem a moça.) Desde então, ela nota que o ambiente nos estádios vem se tornando mais receptivo a mulheres e famílias. E isso passa também pelo fato de que a torcida do Corinthians é majoritariamente feminina — e tem, proporcionalmente, a maior torcida feminina da série A.

No gramado, mais ainda. A modalidade do futebol feminino do Corinthians foi retomada em 2016 e, até aqui, o time conquistou 14 campeonatos. Em comparação, o time masculino venceu neste mesmo período quatro competições.

(Aqui, vale uma nota: a premiação para o time feminino no Campeonato Brasileiro foi de R$ 1 milhão em 2022. A do campeão brasileiro no masculino, de R$ 33 milhões.)

A força do time das Brabas foi fundamental para a derrota de Cuca. As jogadoras corintianas se juntaram à pressão contra a contratação do treinador. Em uma nota publicada nas redes sociais, as atletas escreveram: "Estar em um clube democrático significa que podemos usar a nossa voz, por vezes de forma pública, por vezes nos bastidores. 'Respeita as Minas' não é uma frase qualquer. É, acima de tudo, um estado de espírito e um compromisso compartilhado”.

A presença de mais mulheres no meio esportivo traz, além de pluralidade no discurso, a vivência do que cada uma enfrenta em uma sociedade machista. O discurso, seja de jogadoras, árbitras, dirigentes, jornalistas esportivas, também é carregado pela violência que esses corpos passaram. “Hoje tem uma sensibilização que envolve essas mulheres, uma vez que elas já vivenciaram situações semelhantes ou estão engajadas com o que está acontecendo na sociedade. Isso transcende, envolve o próprio trabalho delas na reflexão que irão fazer a partir do jogo. Não dá mais para minimizar ou passar pano”, afirma Aira.

Muitos boleiros pensam que estão alheios à sociedade, mas a sociedade mostra que o futebol não está. Que além de o futebol ser um esporte de mobilização social, quem financia, torce e empresta identidade a um clube é sua torcida — e não o contrário.

Eles esqueceram, mas eu não esqueci

Fim de 1999, início do ano 2000. Para mim, parece que foi ontem. Mas já faz um tempo. Último período da faculdade, 22 anos, estagiária. Realizava um verdadeiro sonho. Trabalhava — feliz da vida — na redação com a qual eu mais sonhei: a do icônico Jornal do Brasil, ainda no número 500 da Avenida Brasil, no Rio. Como parte do programa de estágio, havia um rodízio pelas editorias. Estreei na de Internacional. Fluente em vários idiomas e apaixonada pelo assunto, não havia opção melhor. Eu sabia que teria de trocar em algum momento. Criada em um lar onde futebol, automobilismo, tênis e surfe sempre despertaram paixões, pedi para que minha experiência seguinte fosse no Esporte. E consegui.

Não lembro ao certo quantos éramos na editoria mais barulhenta e divertida do jornal. Numa época de salários atrasados, mas de redações ainda bem cheias, éramos muitos. Talvez uns dez, 12 ou até mais. Desse total, se a memória não falha, duas mulheres. O que fazíamos? Cobríamos basicamente esporte amador. Naquela época, vôlei, natação, basquete, atletismo eram classificados assim. Futebol — coisa de profissional — era apenas para eles. Era a cultura da época.

Como estagiária, oficialmente, as saídas da redação deveriam ser acompanhadas de um repórter. Na prática, não era sempre assim. Dessa forma, foi possível ver como os coleguinhas atuavam como setoristas dos clubes: como se comportavam, como falavam com os jogadores e técnicos, o que publicavam. Chance de ouro para uma jovem jornalista cheia de disposição aprender com os mais experientes.

Fim de ano, escala especial de Natal e Ano Novo e, em seguida, um inédito Mundial de Clubes no Maracanã. Pronto. Essa era a exceção necessária, o cenário perfeito para que eu pudesse cobrir futebol também. Com alguns dos jornalistas titulares temporariamente fora, a novata entrou em campo. E foi aí que as experiências mostraram o quão masculino e desrespeitoso o ambiente do futebol podia ser.

Os poucos jogadores que entrevistei no curto tempo em que atuei na editoria de esportes certamente não se lembram de mim. Era só mais uma repórter, mais uma mulher. Mas eu não esqueci. Praticamente todas as vezes em que interagi com um atleta ou dirigente do futebol, em algum momento, tive de ouvir uma gracinha. O conteúdo variava: convite para dar um pulo à noite no hotel, questionamento se eu voltaria no dia seguinte para outra matéria, autorização para pisar no gramado, enquanto os demais jornalistas estavam proibidos.

Não foram rudes, não tocaram em mim. Eram situações ou frases que, para eles, deviam soar como naturais ou até mesmo um elogio. Mas, para mim, era prova de que não entenderam que a interação era exclusivamente profissional. Sempre tive o cuidado de trabalhar com roupas não chamativas — calça jeans, camisa com manga. Tudo para evitar qualquer tipo de assédio. É claro que sei que, mesmo se eu estivesse com um vestido decotado e colado no corpo, a linha do respeito profissional jamais deveria ter sido cruzada. Mas, como acho que é melhor prevenir do que remediar, sempre segui o ditado.

Passar quase uma hora conversando com um atleta, fazendo um perfil, abordando seu bom momento profissional, o apoio da família — incluindo mulher e filhos. Essa era a minha tarefa em uma das situações. No fim da entrevista, o que deveria ser apenas um obrigado ou a pergunta sobre quando o texto seria publicado, tive de ouvir se poderia voltar à noite. Minha reação? Em meio a uma risadinha, dizer não educadamente, desconversar e ir embora.

Em outro dia de trabalho, situação semelhante. Bloquinho em mãos, conversa sobre o jogo que viria, perguntas sobre expectativa, adversário, posicionamento. Ao terminar a entrevista, fora do Rio, vem a pergunta: “Amanhã você vai estar aqui também? Eu adoraria”. Mais uma vez, cara de tacho, melhor fingir que não entendi, dar tchau e pronto.

Uma das vezes em que fiquei mais sem graça e com vergonha dos meus colegas homens foi quando um dirigente, que tinha proibido os jornalistas de entrarem no campo para se aproximar dos jogadores e controlava quem podia ou não falar com a imprensa, apontou para mim e, na frente de todos, disse que só eu podia pisar no campo, fazendo comentários inclusive sobre o tamanho dos meus pés. O que fazer? Aos 22, sem a experiência que tenho hoje, como agir? Entrar no campo? Ficar do lado de fora? Só entrar se os outros também entrassem? De novo, sorrisinho sem graça. Fingi que não entendi e segui onde estava.

Imagine a mesma situação com um repórter homem. Esses comentários teriam sido feitos? O jogador chamaria o jornalista para passar mais tarde no hotel em que estava hospedado? Diria que adoraria que ele voltasse no dia seguinte para entrevistá-lo de novo? Ele teria sido o único convidado a pisar no campo do clube em detrimento dos demais? Sinceramente, acho que não.

Sei que nas relações sociais o interesse por uma pessoa pode ocorrer. Estamos sujeitos a isso. É totalmente plausível. Mas não dá para admitir que, no meio de uma interação profissional, do meu trabalho, com o crachá do jornal pendurado no pescoço, o cidadão resolva me chamar para passar mais tarde no hotel. Simplesmente não dá.

Pense comigo. Quando você vai ao médico, por exemplo, ele faz um monte de perguntas. Para dar um diagnóstico, precisa conversar com você. No fim do papo, você perguntaria a ele se gostaria de passar na sua casa mais tarde? Essa abordagem faz algum sentido? Não. É uma conversa profissional. Respeito e limites têm de estar presentes nessa interação. Sempre.

Essa experiência serviu de inspiração. A partir do que vivenciei, decidi fazer minha monografia de fim de curso sobre a mulher no jornalismo esportivo. Aprendi muito. Conversei com profissionais que anos antes estiveram no meu lugar. Conheci os desafios que enfrentaram, suas dores. Aos 45 anos, se eu pudesse voltar no tempo, tenho certeza de que minha reação a cada uma das situações teria sido diferente, mais curta e grossa. Hoje, fico feliz em ver que, apesar de todas as dificuldades, a presença feminina na cobertura de esportes é uma realidade, elas estão em todos os jornais, todas as emissoras. Espero que continue assim.

Zé Gotinha vs. bolsonarismo — round 1

Já passava da hora do almoço quando o deputado federal Eduardo Pazuello (PL-RJ) atravessou o plenário da Câmara, pelos fundos, parte mais sombria da sala de votações. Sob a luz, mais a frente e à direita, alguns representantes da turma bolsonarista se revezavam em discursos, em falas ainda desconexas com a grande notícia daquela quarta-feira: a operação da Polícia Federal na casa do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ). O general político passou alheio às tentativas de domínio de narrativas. Logo ele que comandou o Ministério da Saúde entre setembro de 2020 e março de 2021, auge da pandemia, e que, na época, em um vídeo ao lado do então presidente, explicou que “um manda, o outro obedece”, após ser desautorizado na compra de doses da CoronaVac, que já estavam sendo produzidas em São Paulo. Pois na quarta, ao tratar das acusações de falsificação de carteiras de vacinação, Pazuello optou por falar a mais cândida verdade. “Eu não era mais ministro. Na minha época, não havia carteira de vacinação. Não havia nem vacina”, disse a um grupo de jornalistas.

De fato, em agosto de 2021, quando dados supostamente falsos de vacinação de Bolsonaro, e da filha dele, Laura, foram inseridos no sistema do SUS, Pazuello já havia se despedido de sua gestão na pasta, marcada pela lentidão nas negociações para compra dos imunizantes e pelo alinhamento ao negacionismo do chefe. O ex-ministro negou também ter falado com Bolsonaro. “Não liguei. O celular foi apreendido”, justificou. Na conversa, Pazuello até evocou a presunção de inocência em favor de Bolsonaro e seu “faz tudo”, o tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, que havia sido levado pela PF naquela manhã. “É como uma cebola. Existem vários crimes ali colocados, em camadas. Aí você vai tirando as fatias e aí a gente vai ver o que sobra”, filosofou. Não passou disso.

A deserção de Pazuello, no entanto, já apontava o sentimento presente na reunião do PL com Bolsonaro, na sede do partido, logo após a batida da PF: o bolsonarismo estava nas cordas. E era preciso achar explicações imediatas, mesmo sem saber o que estava por vir. A única certeza era de que a polícia e a Justiça haviam puxado um fio da meada que pode desenrolar uma sequência de crimes.

Outro aliado de Bolsonaro recorreu a um termo, em inglês, comumente usado por militares para definir situação de captura, sem saber os reais motivos: “Estamos diante de um ‘fishing’. É quando se joga uma rede e depois vê o que vem. O sistema fez isso com a gente”, reclamou o deputado, em reservado, na tentativa de associar a investigação ordenada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), ao novo governo e às “forças da esquerda”. A ideia da pescaria não ficou circunscrita aos apoiadores de Bolsonaro. Do Senado, Renan Calheiros (MDB-AL) tinha a mesma percepção. “Já há um cardume de peixes pequenos na rede da Justiça e o arrastão cerca os peixes graúdos”, postou o senador.

Era preciso reagir o mais rápido possível, pensavam os bolsonaristas. As menções negativas relacionadas à “falsificação do cartão de vacina” batiam na casa dos 464 mil, até o meio daquela tarde, segundo levantamento feito no Twitter pela empresa de consultoria Quaest — e 81% das postagens eram desfavoráveis a Bolsonaro. Mas como? Tecer um plano eficaz nas plataformas e nos discursos era complicado diante das incertezas provocadas pela busca e apreensão na casa de Bolsonaro, pelo confisco de seu celular, e pela prisão Mauro Cid e Ailton Barros, homens de confiança do ex-presidente. Esses fatos inauguraram um novo patamar de pressão sobre o grupo. Qualquer tese poderia ruir no instante seguinte se confrontadas com as informações que, agora, estavam em poder da polícia e da Justiça.

Moraes decidiu suspender o sigilo sobre a decisão que autorizou a operação. Na medida em que jornalistas e políticos liam a peça jurídica, elos com outros casos investigados iam surgindo, como o assassinato de Marielle Franco e os planos de um golpe de Estado. No dia seguinte, ainda viria a notícia de que o Ministério Público investiga se o vereador Carlos Bolsonaro também tinha um esquema de “rachadinha” para chamar de seu. Mas Bolsonaro já estava ciente de que o cerco contra seu filho está se fechando e vinha dividindo com aliados sua preocupação. Aquele cheirinho de sangue de que o tubarão tanto gosta estava no mar e os governistas perceberam. “Os telefones vão chegar na mão do Xandão”, provocou o vice-líder do PT, Rogério Correia (MG).

No momento em que Pazuello negou conhecimento do esquema investigado, ainda não havia chegado ao Congresso a frágil estratégia de defesa do bolsonarismo. O tom escolhido veio com o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que surgiu no cafezinho do Plenário pelo elevador privativo, minutos depois. Após passadas enérgicas e apressadas, o filho do ex-presidente parou em frente ao balcão e ensaiou um pedido ao garçom. Desistiu logo, ao se ver abordado por jornalistas.

Eduardo se dirigiu ao alto da Mesa Diretora, de onde o aliado evangélico, Gilberto Nascimento (PSC-SP), comandava a sessão. Portador da orientação a ser repassada à turma pequena e barulhenta (cerca de 15 deputados), antes de assumir o microfone, o filho do ex-presidente forçava sorrisos e fazia sinais de positivo com os dedões para um grupo de adolescentes de um colégio adventista de São Paulo, que visitava a Câmara e formava uma claque na galeria. “Vocês são jovens, talvez não tenham visto, mas em um passado recente do Brasil, a Polícia Federal entrava na casa de bandido para pegar milhões em malas de dinheiro, tipo a do Geddel, 50 milhões de reais”, iniciou o parlamentar, referindo-se à apreensão feita pela PF, em 2017, de R$ 51 milhões em dinheiro vivo em um endereço legado ao ex-deputado e ex-ministro Geddel Veira Lima. Trazia nas mãos agitadas um maço de impressões de matérias de jornais que indicavam que seu pai nunca escondeu que era avesso às vacinas, como se esse fosse o motivo da investigação.

Apesar do esforço de parecer que tudo continuava como antes, o discurso foi repleto de sinais de desespero. Ele recorreu à costumeira metáfora de se “olhar o copo meio cheio, em vez do copo meio vazio” — típica de quem está com o copo meio vazio. E buscou pontos que mais tocam na alma do bolsonarismo: chamou o ex-governador de São Paulo João Doria de “calça apertada”, apontou operação da PF como uma “medalha” em honra do pai, colocou o progenitor como vítima de “perseguição vil da esquerda” e lembrou a cena do ex-presidente comendo pizza na rua em Nova York, por não ter sido vacinado. “Me honra ser filho de Jair Bolsonaro”.

Enquanto Eduardo falava, aliados deixavam transparecer que a cena da PF na casa do ex-presidente gerou traumas. Alguns repetiam que “nada pegaria” em Bolsonaro, a não ser um escândalo de corrupção. Outros recorriam a explicações místicas. “Prefiro ver cada crise como um ponto de retorno para um crescimento. A crise é aquele momento em que você reúne forças para trabalhar com o objetivo de suplantá-la. Você aciona o motor emocional”, disse um aliado. “Basta ver o governo que está aí hoje. Como eles chegaram a essa condição?”. A superação de Lula, aparentemente, é inspiração.

Eduardo chegava da reunião no PL com Bolsonaro, a mesma que condenou Mauro Cid ao silêncio em seu depoimento na PF. Também participaram do encontro o filho senador, Flávio (PL-RJ), o líder do partido na Câmara, deputado Altineu Côrtes (PL-RJ), o ex-ministro João Roma (PL-BA) e o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ). Enquanto o encontro acontecia na sede do PL, na região central da capital federal, o assessor Fabio Wajngarten, que veio às pressas de São Paulo, tratava de comparecer à sede da PF, a menos de um quilômetro dali, para avisar que Bolsonaro não compareceria ao depoimento, marcado para as 10h, alegando não conhecer as acusações contra ele.

A estratégia combinada teve como ponto central isolar Bolsonaro de Cid. Na reunião, Flávio se ocupou de levar a mensagem ao Senado. Naquela tarde, repetiu, na Casa ao lado, o mesmo mantra que o irmão tentava emplacar na Câmara. “Se há uma coisa que é consenso no Brasil hoje é uma tentativa orquestrada e declarada de assassinar a reputação do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro”. Também ficou a cargo de Flávio mais um ponto crucial da estratégia: dar ao preso, Mauro Cid, uma defesa “de confiança”. E nesse contexto entrou em cena o advogado Rodrigo Roca, que defendeu o senador no esquema das “rachadinhas” e, depois, ganhou um cargo de Secretário Nacional do Consumidor (Senacon), no Ministério da Justiça de Bolsonaro.

No dia seguinte, em entrevista à Globonews, o advogado já dava sinais de seu papel, dizendo não ter havido “qualquer intervenção por parte do presidente Bolsonaro” nos episódios de falsificação. Vale lembrar que Roca foi o primeiro advogado do ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, preso sob investigação por ter colaborado com os atos golpistas de 8 de janeiro. Ele deixou a defesa de Torres e não fez segredos diante da bomba armada contra o bolsonarismo: “Eu, em nenhuma hipótese, defenderia um delator”, disse, na época. A ver se está a defender outro.

Fotos de um mundo onde o tempo parou

Considerado o maior fotógrafo de arquitetura de sua geração, o inglês Anthony Kersting (1916-2008) tinha especial paixão pelo Oriente Médio. Na década de 1940, com a Europa em guerra, ele documentou construções e pessoas na Síria, no Iraque e na Turquia. Nesta galeria, publicada pelo Guardian, as imagens captadas por Kersting nos transportam a lugares que parecem congelados na Antiguidade. Muitas desses joias, porém, foram destruídas na década passada pela insanidade fundamentalista do Estado Islâmico.

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Bolsonaro escondidinho? Capivara com mandioca? Não, calma. Esses foram os links mais clicados pelos leitores:

1. Poder360: Os memes da PF na casa de Bolsonaro.

2. YouTube: Ponto de Partida — Bolsonaro, vacina e o PL das fake news entram num bar. (Errata: Diferentemente do que o que é dito no vídeo, o ex-presidente não se vacinou contra Covid. O Ponto de Partida foi gravado na quarta-feira de manhã, quando o noticiário ainda sugeria que Bolsonaro havia tomado a vacina e mandado apagar os registros. Durante a tarde, como informou corretamente a newsletter do Meio de quinta, ficou claro que o ex-presidente não se vacinou. Ele falsificou o registro de vacina para o caso de precisar apresentá-lo para entrar nos EUA.)

3. Panelinha: Galetes de mandioca.

4. Panelinha: Escondidinho de mignon com quinoa.

5. YouTube: Cá entre Nós — A capivara Filó e o PL das fake news.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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