Edição de Sábado: Joga, bonita

De trás da linha do meio campo, Formiga lança para Tamires na esquerda, numa invertida precisa. A lateral toca, de primeira, para Marta. Ela domina sem tocar na bola. A linha de três da defesa adversária está montada. Marta ergue a cabeça. Enxerga Cristiane invadindo a zona do agrião e apontando para o meio. Marta cruza. A essa altura, já são sete adversárias na área. Cristiane marca. De letra. Go-la-ço. Era o segundo do Brasil, que ganhou de 5 a 1 da Suécia. Esse gol de Cristiane sacramentou o recorde de um atleta, masculino ou feminino, com mais gols em Olimpíadas, até hoje não superado: 14. Quase 23h e o Engenhão estava lotado naquele segundo jogo da Seleção feminina nos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio. “Marta é melhor que Neymar” foi o grito mais entoado pela torcida de mais de 43 mil pagantes. Ela já havia sido eleita a melhor jogadora do mundo cinco vezes. Ele, nenhuma. Nas camisas verde-amarelo dos torcedores, o nome do camisa 10 da Seleção masculina começava a aparecer riscado, dando lugar ao da camisa 10 da feminina. As jogadoras de futebol do Brasil haviam, enfim, conquistado os brasileiros.

Na arquibancada, quem assistia a tudo, maravilhada, era Katia Rubio. Psicóloga e professora da faculdade de educação da Universidade de São Paulo (USP), ela estuda o esporte, os atletas e as torcidas há quase três décadas. Tem 37 livros publicados sobre psicologia do esporte, o imaginário esportivo e a memória olímpica. Sabedora dos vícios das arenas esportivas, Katia se mantém encantada. “É a terceira vez nessa semana que eu respondo por que continuo estudando esporte. Minha resposta: é porque aquilo que o esporte mobiliza em nós não é o resultado de uma disputa. É a condição humana da busca pela transcendência. A nós, que não somos habilidosos como são aqueles que fazem o espetáculo esportivo, eles e elas nos mostram aonde o ser humano é capaz de chegar.”

Mais do que vislumbrar o possível, o cérebro de um torcedor emula os movimentos do atleta. Cerca de um quinto dos neurônios especializados em planejar, selecionar e iniciar movimentos musculares em humanos e macacos, de acordo com pesquisadores italianos, disparam quando um símio ou uma pessoa assiste a um jogo. E, como isso acontece com jogadores de qualquer time, essa empatia realmente transcende o mero sentimento de torcida.

Katia vai descrevendo como nos admiramos ao ver um movimento de braço perfeito numa partida de vôlei. Ou um lance inesperado no basquete. Compara, então, à sensação de se contemplar um Lacroix ou a Divina Comédia, de Dante. Com esses olhos de fascínio, Katia testemunhou aquela vitória fenomenal das jogadoras brasileiras em 2016 e notou que as mulheres, finalmente adoradas, devolviam ao público sentimentos que a seleção masculina já não era capaz de oferecer. Retribuição além de títulos, que permanece e cresce.

Na Copa do Mundo que começou quinta-feira, na Austrália e na Nova Zelândia, as Guerreiras do Brasil, que estreiam na segunda-feira, não chegam como favoritas. Mas estão consolidadas como ídolos. Relevantes. Autora de Mulheres e Esporte no Brasil: muitos papéis, uma única luta, Katia aponta como aquela virada na relação, palpável em 2016, foi resultado da labuta de muitas gerações. E não se deu inicialmente pela aversão à Seleção masculina. Foi pelo caminho da habilidade, do reconhecimento de como aquelas jogadoras eram excepcionais e simplesmente mereciam prestígio. “O respeito à Seleção feminina não é gratuito nem ocasional. Às mulheres, no esporte , nada se dá por concessão. Só por luta. E as mulheres do futebol, mais do que todas as outras, afirmam essa condição.” O futebol para mulheres foi proibido por lei entre 1941 e 1979 no Brasil. A mera prática.

Deixa que eu deixo

Preencher esse vácuo exigiu de mulheres que queriam jogar uma resiliência sobrenatural. Elane, a zagueira que marcou o primeiro gol do Brasil numa Copa feminina, vestiu a verde-amarela pela primeira vez em 1988. Jogou três Copas e uma Olimpíada. Foi capitã e ganhou um bronze no Mundial de 1999. Quando jogava no São Paulo e o clube encerrou as atividades do futebol feminino, Elane virou motorista de ônibus no Rio. Em entrevista à Folha em 2015, ela lamentou: “Passei 12 anos jogando pela Seleção e nunca recebi nenhuma ajuda. Fico triste, pois vejo tantos ex-atletas homens trabalhando como olheiros, dentro dos clubes e federações, e nós fomos esquecidas”. O sacrifício das pioneiras não foi vão. Inspirou a geração seguinte, que levou uma prata nas Olimpíadas de Atenas, em 2004 — com Marta e Cristiane já em campo. O feito se repetiria em 2008. Em 2016, aquela equipe vistosa do jogo contra a Suécia acabou perdendo o bronze nos pênaltis para o Canadá. Ainda assim, saiu, em lágrimas, muito aplaudida de campo. Os rapazes levaram o ouro — e Neymar decretou: "Agora, vão ter que me engolir“.

”As mulheres têm muito mais títulos individuais do que os homens no Brasil. Hoje, elas têm uma técnica que lhes deu autoestima. Embora o renascimento tenha começado com a seleção de prata em 2004, são pelo menos três gerações para se superar o estigma de que você não vale nada“, avalia Katia. Um dos caminhos dessa superação é a postura. As jogadoras, em boa medida (são 7), atuam no Brasil, que tem hoje um campeonato feminino pujante — o que já gera uma proximidade maior com a torcida. Agem com calor, simpatia. Posicionam-se em causas gigantes, como contra a vergonhosa defasagem salarial. ”E não vimos endosso das jogadoras ao fascismo“, acrescenta Katia. ”Não transporto a imagem da Seleção masculina para a feminina, porque o público da feminina foi conquistado. E elas, por sua vez, não desapontaram esse público. Ao contrário, só o multiplicaram, levando inclusive à busca de narradoras, comentaristas mulheres, jornalistas especializadas em futebol feminino.“

Não é só de oposição à masculinidade que se faz o futebol feminino. Na ausência de referências pelos imensos bloqueios sociais, as garotas se espelhavam em Romário, Bebeto. Quando lhes foi ofertado um uniforme exclusivo, optaram por usar o B da seleção dos homens. Agora, elas têm o seu, que não ostenta as cinco estrelas dos Mundiais masculinos. A régua de medida de desempenho era também a deles. Katia lembra que o esporte nasce e se desenvolve dentro de um modelo médico biológico do século 19 da afirmação do poder do homem, num momento em que as mulheres estavam designadas ao ambiente privado. O parâmetro era o homem. Era fácil dizer que as mulheres eram mais fracas. Hoje, várias teorias põem isso por terra. Do ponto de vista técnico, a curva de aquisição de uma habilidade motora é uma ascendente forte e a posterior estabilização. Os homens estão na estabilização faz um tempo. As mulheres continuam numa curva ascendente. A ciência indica que, no auge dessa curva, as mulheres estarão parelhas aos homens. ”Se não for o mesmo nível de explosão muscular, talvez se ganhe habilidades mais finas. Ou mais inteligência."

Toca pra mim

Conforme as mulheres fincaram seus pés nos gramados, meninas de todo canto do país se inspiraram a seguir seus passes. Só habilidade não forma um atleta. “Da mesma forma que a mãe transmite ao bebê os traços de cultura no amamentar, no banhar, no ninar, a pessoa precisa se espelhar em alguém para ser algo no esporte. Toda a construção do desejo é social”, explica Katia. Marta é a imagem onipresente desse espelho. É nela que miram Isadora e Anna Esther.

A pequena Isadora Jardim, de 11 anos, esteve na Bolívia a convite da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) para disputar a Liga de Evolução da Conmebol, uma espécie de Sul-Americano sub-12, no início de julho. Alta em relação às colegas de time, mas esguia e veloz, Isadora atua como meio-campista no tapete verde; nas quadras, joga de ala, e foi nesta posição que contribuiu para a conquista do segundo lugar do torneio, inclusive com petardos de perna direita que venciam facilmente as goleiras adversárias. O amor pela bola vem de berço, sempre cercado por presenças masculinas: o avô, Ozias, chegou a ser titular do Atlético Mineiro nos anos 1960, e o pai, Raphael, atuou nas categorias de base do Cruzeiro. Mas a profissional que acendeu a fagulha de uma potencial carreira esportiva para Isadora foi Marta, de quem passa dias a fio vendo vídeos com melhores dribles, passes e gols. “Meu pai fala que eu nasci na época certa para o futebol feminino. Dá uma alegria de ver que ele está crescendo tanto”, comenta a camisa 10. Mas o ritmo é lento. Isadora ainda é escalada para times mistos, com meninos. “Eu consegui me adaptar, [os meninos] são tranquilos. Só que eu, particularmente, prefiro jogar o feminino, fico mais à vontade.”

Anna Ester Barbosa Costa, de 10 anos, camisa 19 da Comunidade Esportiva Schalke 12, vive a expectativa de acompanhar como torcedora sua primeira Copa. Atacante, ela não se lembra bem da Copa na França, de 2019, mas promete vencer o sono para acompanhar ao menos os jogos do Brasil de Marta, “porque ela joga de um jeito bonito, que se destaca”. Ela é tão fã da capitã brasileira que começou a treinar a perna esquerda “para chutar igual a ela”. Foi Marta uma das responsáveis por mostrar a Anna Ester, ainda em tenra idade, que o futebol é coisa de menina, sim. A outra, como bem ilustrou Katia na imagem da criança sendo acalentada, foi sua mãe, Lilian. Flamenguista, a garota confessa não sofrer tanto com as derrotas do time feminino do Urubu, “porque faz parte, né?”. Com a Canarinho, ao contrário, o sentimento é de que dessa vez não tem pra ninguém, “a Copa é nossa”.

Quanto vale o show?

Isadora e Anna Esther estão entre os dois bilhões de pessoas que a Fifa projeta atingir com a Copa deste ano, um recorde de audiência que quase dobraria a da Copa de 2019. É justamente no Brasil que a Fifa percebe o maior entusiasmo com o futebol feminino. O país registrou o maior aumento de audiência entre as Copas de 2015 e 2019, com 81 milhões de espectadores a mais. Esta edição do Mundial, além de ser a primeira com 32 equipes, como a masculina, é também a única na qual a Fifa conseguiu vender todos os pacotes de publicidade. Isso resultou num incremento também da premiação para atletas e confederações. Na primeira fase, todas as jogadoras receberão US$ 30 mil apenas pela participação no torneio. Quem sair do Estádio Olímpico de Sidney com o vice-campeonato contará com US$ 195 mil a mais nas contas, enquanto as campeãs, além da glória, serão premiadas com US$ 270 mil, algo próximo a R$ 1,3 milhão. À confederação campeã, quase US$ 4,3 milhões para teoricamente serem injetados no futebol local. (Em tempo: a confederação campeã do futebol masculino levou US$ 42 milhões na Copa de 2022.)

A Fifa encara a distribuição como uma forma de “inflacionar” os rendimentos das atletas e puxar o valor dos salários nos países onde o futebol feminino já é mais desenvolvido. Nos demais, o que vai garantir a queda do machismo, a resistência desse arrebatamento e a permanência do futebol feminino como relevante para além do discurso politicamente correto da Fifa, das confederações, das emissoras de TV é a continuidade da própria luta. “O esporte acompanha os movimentos sociais”, diz Katia Rubio. Se em alguns países a questão da igualdade de direitos é bem desenvolvida, a prática esportiva acompanha. “A seleção norte-americana feminina não tem mais diferença em relação à premiação dos homens. Mas você não vai ver uma seleção africana ou seleção asiática com grandes performances porque, do ponto de vista social, as mulheres ainda nem saíram de casa.”

Forjar um novo público é rentável para a própria Fifa, evidente. Só que essa pujança esportiva e a conexão entre torcedores e atletas não se constrói artificialmente. Nem do dia para a noite. São décadas de investimento. Um país que fomenta consistentemente a criação de atletas consegue um contingente tão volumoso que passa a multiplicar habilidades. Katia dá um exemplo: “A China tem time A, B e C de tênis de mesa. E coloca esses atletas pelo mundo. Aí, um garoto da República Dominicana, que nunca tinha imaginado o que era uma raquete de tênis de mesa, ao ver aquele chinês, que não fala espanhol, jogar se encanta.” É aquela tal transcendência, que supera inclusive barreiras geográficas e pátrias. A noção de pertencimento que o esporte oferece — e que é tão potente que pode melhorar a saúde mental de um torcedor — é similar à territorial, e anterior aos estados nacionais. Quem tem a força da criação dessa identidade no esporte são os jogos olímpicos. Lá no princípio, não havia a organização dos comitês olímpicos ou seleções nacionais. Tanto que na primeira edição olímpica que teve futebol, em 1900, os times que jogaram em nome dos países não eram seleções.

É quando Katia associa o desejo da transcendência ao contexto social. “Política e esporte não se separam, esse discurso é falacioso e só atende ao interesse de quem tem poder dentro do esporte. Veja que a determinação de participação por nacionalidade nas Olimpíadas vai se dar em 1908. Com o mundo em conflito pré-Primeira Guerra, há essa estruturação e, a partir do período entre guerras e pós-Segunda Guerra, isso se afirma com toda a sua potência.” A decorrência é que as competições esportivas, uma analogia dos enfrentamentos físicos que não podem existir, tornam-se esse espaço de confronto que pertenceria aos exércitos nacionais. E é claro que essa narrativa atende muito bem à publicidade. No momento em que o esporte se comercializa e se torna produto do entretenimento, ele se distancia da busca pela transcendência. “O poder do enfrentamento vai transformando a competição não numa superação de si mesmo, mas na superação do outro.” A Seleção feminina está num estágio anterior. O da coletividade, da aspiração. Do jogo bonito. E encanta.

Meninas veem 'Barbie', meninos veem 'Oppenheimer'

Barbenheimer. O evento cinematográfico do século. Dois blockbusters lançados no mesmo dia, com propostas estéticas, políticas e socioculturais diametralmente opostas. Quem vencerá essa contenda? Spoiler: Barbieganhou. Saindo nos EUA com 4.200 salas contra 3.600 de Oppie, a loirinha de plástico deve faturar neste fim de semana o dobro do filme bombástico de Christopher Nolan, algo ao redor de US$ 100 milhões. Mas a pergunta é: qual assistir?

Se você é mulher, principalmente se for mãe de menina, não tenha dúvida, vá de Barbie com a filha. É uma comédia engraçadíssima, com atores de primeira competindo para ver quem tem o melhor timing e incorpora melhor o personagem. Spoiler: Ryan Gosling ganha de 7 a 1. Mas atenção: a criança precisa saber o significado de patriarcado, senão vai boiar na maioria das piadas do filme. É para rir, mas lágrimas irão correr nos momentos emocionantes e problematizantes sobre a maternidade e o papel da mulher na sociedade moderna.

Barbie é esse paradoxo ambulante: um filme sobre uma boneca que não é infantil. Um comercial de brinquedo anticapitalista de duas horas. Uma história de empoderamento feminino baseada no ícone maior da opressão de um modelo de beleza inalcançável. Greta Gerwig é uma gênia que consegue unir tudo isso em uma direção precisa, diálogos primorosos, metalinguagens e quebras de proscênio. O roteiro é uma salada de Toy Story, com Show de Truman e Pinóquio acompanhada de referências a Proust, Mussolini, Kubrick e Monty Python. Gênia.

Todos os homens do filme são idiotas, brutos ou sem noção. “Ah, é um documentário?” — perguntou a amiga feminista. Mas isso não quer dizer que homens cis não vão curtir, se tiverem senso de humor suficiente para rirem deles mesmos. Pode ir, brou, com a certeza de que vai dar boas risadas. Barbie é a vingança cor de rosa das namoradas que foram obrigadas durante anos pelos respectivos conjes a assistir filmes de hominho. Finalmente, um filme de muierzinha. Para confirmar o viés que este é um filme que merece ser assistido no cinema, a ultra-direita americana (e sua cópia nacional) resolveu boicotá-lo. Garantia de sucesso.

O lado ruim de Barbie? Aparentemente, a Mattel gostou da ideia de brincar de cinema e já tem projetos para transformar mais de cinquenta brinquedinhos em “propriedade intelectual”. E tome filme de Hot Wheels, He-Man, Barney e companhia. Com certeza, vem muita bomba por aí.

Por falar em bomba…

Vamos falar de filme de macho? Guerra! Explosões! Cientistas explicando coisas! Sexo delirante em audiências do senado! Filme de 65 milímetros no IMAX! Oppenheimer tem tudo isso embalado pelo puro creme de Christopher Nolan: fotografia de primeiríssima qualidade, edição com cortes temporais beirando a esquizofrenia, sound design de outro mundo, produção impecável. Tudo tão bem feito, tão técnico, tão profissional que você quase não repara que o roteiro é bem chinfrim.

Biopic, né? Cinebiografias têm esse problema de ter que retratar a realidade, então, não dá para colocar plot twists e McGuffins (© Alfred Hitchcock) ao bel-prazer do roteirista. Nolan faz o que pode, mas ele nunca foi muito bom nisso. Seu forte é o filme-conceito, tipo, “e se a gente contar a história de trás pra frente?”. Ou com duas histórias simultâneas em tempo real? Ou em forma de cebola? Ou rodando o filme ao contrário? Tudo tão escalafobético (e tão bem feito, técnico, profissional, etc.) que você quase não repara no roteiro chinfrim e nos diálogos duros e expositivos.

Metade de Oppenheimer é um filme de tribunal. Perdão, filme de audiência no senado, espécie de CPI dos gringos, filmada em preto e branco, recurso normalmente utilizado para representar coisas no passado, mas que aqui são cenas mais recentes, porque Nolan. Para complicar um pouco mais, tem outras cenas estilo tribunal, entre a história principal e a tal da CPI, filmadas em cor. Porque Nolan. Tem também um Einsten-Ex-Machina que aparece de repente para validar uma importante questão matemático-filosófica e depois volta no final para mais filosofia. Uma importante disputa política foi reduzida a um ciuminho entre dois cientistas de ego inflado. Porque Nolan.

Mas vamos falar de coisa boa. O design de som do filme é primoroso e muito bem utilizado como elemento narrativo. Os atores estão excelentes e “Pronuncia-se Killian” Murphy é um forte candidato ao Oscar reproduzindo todas as nuances do cientista atormentado por suas contradições com seus profundos olhos azuis em closes gigantescos na tela do IMAX, para satisfação do público feminino que foi ver o filme errado. A opção por não usar CGI na hora da bomba atômica é puro fetiche de menino que gosta de explodir coisas, mas o resultado é impactante, mais pelo uso inteligente do som que das imagens mesmo. Tudo muito elegante porque aqui não é Michael Bay.

Vale o ingresso? Claro que vale, principalmente se for no IMAX ou em alguma sala com Dolby Atmos. Mulheres que gostam de física quântica podem preferir Oppenheimer. Ou que adoram filme de tribunal. Ou que consomem tudo da Segunda Guerra. Mas eu curti mais a Barbie.

Para finalizar, um serviço de utilidade pública:

Quer mergulhar ainda mais nas fofocas e prevaricações dos criadores da bomba atômica? Então veja a série Manhattan (Globoplay). Não tem nenhum compromisso com a verdade histórica, mas é bem divertida. Foi abruptamente cancelada na segunda temporada e os fãs (eu!) estão esperando o final até hoje.

Quer entender melhor a tal da física quântica e sua relação com o nazismo? Procure a peça Copenhagen, que explica brilhantemente essas questões em um diálogo entre Niels Bohr e Werner Heisenberg. Infelizmente, não está em cartaz e a versão para a TV da BBC com Daniel Craig como Heisenberg, não está em nenhum serviço de streaming no Brasil.

Quer ver uma bomba atômica explodindo em uma computação gráfica acachapante e imersiva? Veja, no YouTube, essa cena do episódio 8 da terceira temporada de Twin Peaks. Depois me diga se vale a pena empilhar dinamite no deserto só para ser diferentão.

A insegurança como poder

Apesar de apontar redução de mortes violentas, os números compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em seu 17º anuário revelam um país desigual e a necessidade de foco em políticas efetivas de segurança. Em conversa com o Meio, Jacqueline Muniz, antropóloga, cientista política, pesquisadora e professora especialista em segurança pública da Universidade Federal Fluminense (UFF) indica a trinca que precisa ser aplicada pelo governo para se obter resultados nessa área. “A segurança precisa de equipe, orçamento e tinta na caneta.” Confira os principais trechos da entrevista.

O Brasil teve uma redução de 2,4% nas mortes violentas intencionais em 2022. Por que esse índice caiu?
Qualquer redução de morte deve ser sempre comemorada. Uma diminuição de 2% a 3 % significa que muita gente deixou de morrer por diversos fatores. Essa queda já vem se apresentando desde 2018. Não existe uma explicação única para que se possa estabelecer relações de causalidade direta. A primeira delas é que, de 2000 para cá, há uma mudança no perfil demográfico da população brasileira, que tem envelhecido. A distribuição etária é um recorte importante para se compreender a dinâmica criminal violenta. Quando se olha as vítimas, quem está morrendo são jovens, pretos, pobres, de periferia, a maioria homens. Só com a mudança demográfica já se teria esse efeito nas taxas de crime. O segundo ponto são as políticas regionais e locais, as que mais diretamente impactam a dinâmica criminal violenta — especialmente quando não se tem uma política nacional de segurança pública, caso do governo Bolsonaro. O que se tinha eram espasmos de liberalismo, uma flexibilização no uso das armas, barateando-se o custo de matar. Vale observar que quem puxou a redução das mortes no Brasil foi o Nordeste. O Nordeste e o Norte seguem com as taxas altas, mas as maiores reduções são as experimentadas no Nordeste. E o terceiro aspecto tem a ver com os rearranjos da economia política criminosa, das disputas entre os grupos criminosos. Depois de um período de matanças para ampliação de território por parte das organizações, tem sempre uma espécie de ‘paz de cemitério’, uma acomodação. Isso tem a ver com uma redefinição das disputas territoriais armadas. Foi sobretudo no Nordeste, migrando para o Norte, que tivemos os últimos embates com matanças em escala nessas disputas. Então, a partir de 2017, houve essa reacomodação.

Mas os índices de homicídio e letalidade policial na Bahia estão altíssimos. E vem de governos de esquerda.
A insegurança é um projeto de poder que dá certo. Ela tem rentabilidade político-eleitoral, com resultado em curto prazo, ou seja, voto. A primeira coisa que se faz é a instrumentalização do medo legítimo da população. Essa política serve à direita, à esquerda, ao centro e ao lado. Quase sempre, governantes se tornam birutas de postos de gasolina, que não sabem explicar o resultado que produzem e ficam todos reféns e dependentes da polícia, de saldos operacionais. E isso se transforma na política de segurança. Só que não há como produzir saldo operacional todo dia, então é preciso fabricar o “kit sucesso”: apreender a mesma arma, a mesma droga 20 vezes. Com isso, é dado um cheque em branco para a polícia. Ora, se o seu vigia fica mais forte que você, ele se senta na sua cadeira e governa em seu lugar. Então, boa parte dos governantes sequer governa a segurança pública. Eles terceirizaram e autonomizaram as polícias. O trabalho de prevenção, por exemplo, é indireto, de baixa visibilidade, com resultados de médio e longo prazo. O trabalho de dissuasão, reverter ou frustrar situações de risco, perigo e incerteza real, é imediato. Mas sua durabilidade é limitada. A única dimensão visível para o cidadão comum são as ações a partir da teatralidade operacional. É por isso que eu chamo de polícia de espetáculo. A direita nunca tem uma agenda de segurança pública porque não interessa. A insegurança dá certo. O discurso da lei e da ordem é uma maravilha porque ele promete uma coisa que nunca vai acontecer. Já os grupos progressistas têm uma dificuldade estrutural de lidar com ferramentas de controle e regulação, com as áreas que envolvem restrição de liberdade: fronteira, migração, refúgio, segurança pública, defesa nacional, receita.

Lula lançou o Programa de Ação de Segurança (PAS), enrijecendo controle de armas. Também lançou o Pronasci 2. Como a senhora vê as ações do novo governo na área de segurança?
O governo Lula está estruturando um plano. É o que nós esperamos. Mas como será feita a repressão no governo Lula? Será como a repressão de direita? É óbvio que se tem uma equipe e um ministro qualificados, mas é preciso se ter uma política. Se não tiver uma política vai cair nas armadilhas. É bom lembrar que a segurança faz ganhar eleição, mas também faz perder. É uma questão decisiva. O Pronsaci precisa de foco e precisa estar dentro do SUSP (Sistema Nacional de Segurança Pública), porque é a única condição de ele ter uma lógica federativa e chegar na esquina. Segundo ponto: tem que ter equipe especializada e tem que ter tinta na caneta. Hoje, o Pronasci está no gabinete do ministro e isso é uma sinalização da importância do programa. Mas está faltando que a coordenação geral do Pronasci tenha uma equipe própria. Outra coisa importante é não confundir políticas sociais de redução da violência com políticas sociais universais. Não se pode brincar de assistencialismo barato, disputando com outros ministérios. Assim você não faz política de segurança, com controle da polícia e tudo mais. Não há como cultura, educação e atendimento à saúde prevalecer em territórios onde a população está sujeitada a domínios armados criminosos, seja milícias ou tráfico. Por isso o posto de saúde fecha, a escola fecha. O Rio de Janeiro é o Estado que mais tem perdas de aulas e a escola se torna espaço de risco, as crianças morrem dentro da sala de aula, protegidas por seus professores.

Os números revelaram que as mulheres foram um alvo prioritário da violência. Como enfrentar essa situação?
No caso do feminicídio, os números aumentaram e a realidade pode ser até pior do que a registrada. O primeiro desafio é o da classificação. Tem homicídios dolosos contra as mulheres e o feminicídio, que para ser registrado como tal, tem que ter a motivação de gênero. Acontece que isso é uma decisão discricionária, das forças de segurança. Muitas vezes, sequer o status de feminicídio essa mulher tem. O estupro também é muito subnotificado. As mulheres não denunciam por medo, por não terem meios de como fazer e garantias de integridade. Muitas vezes, o relato do estupro pode implicar em outra vitimização, que pode conduzir à morte, à tortura. Se ela tem filhos, está na periferia e é negra, a situação fica pior. Principalmente em espaços com domínios armados ou em disputa territorial, com milícias e consórcios entre setores do Estado e do crime. Essas mulheres não vão à delegacia porque serão consideradas delatoras, X9. Como elas podem ir à delegacia se setores da polícia estão mancomunados com o crime? O traficante pode dizer que ela está indo lá para dedurar. Ela vai ter que esperar que o tribunal do crime dê um jeito no agressor. Acontece que esse tribunal é machista. Além do sub-relato, tem ainda o sub-registro, que é quando a pessoa consegue vencer todos os obstáculos, chega na delegacia e uma pessoa fala que esse não é problema dele e que ele tem é que cuidar de bandido.

A pandemia também teve um papel nesse aumento?
Sim. Durante a pandemia, os serviços de atendimento à mulher também estavam precarizados. Elas não encontravam uma estrutura de apoio. A Casa da Mulher Brasileira foi destruída. Nem todo mundo voltou a trabalhar e os serviços não tinham a capacidade de acolhimento de antes. Sem contar que se teve uma política com uma ministra cuja razão de ser era culpabilizar crianças sem calcinha pela sua exploração sexual. Esse índice também cresceu no país. Um crescimento vertiginoso da violência sexual contra crianças e adolescentes.

Assista à aula inaugural, com Pedro Doria, ao vivo

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Enquanto o molho à bolonhesa curte, dá uma olhada nos mais clicados pelos leitores na semana:

1. Panelinha: Um bom molho à bolonhesa.

2. g1: Como você está se sentindo nesse 2023?

3. Estadão: Os supersalários de 25 mil servidores públicos.

4. YouTube: Ponto de Partida — Reforma ministerial e o brasileiro que sabe votar.

5. Globo: João Donato e Jards Macalé pelados.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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