Edição de Sábado: IA: manual do usuário

O estudo da inteligência artificial existe desde que há computadores — Alan Turing, o matemático responsável pelo primeiro cérebro eletrônico já se dedicava à questão. Machine learning, ou aprendizado de máquina, a tecnologia que serve de base para boa parte da IA utilizada hoje, foi desenvolvida nos laboratórios da IBM, em Nova York, a partir de 1955. São, portanto, técnicas antigas. Mas nunca foi um desenvolvimento rápido. Por décadas, a capacidade de processamento e de armazenamento dos computadores impuseram limites importantes. E frequentemente limites na maneira como os algoritmos eram concebidos estancavam o avanço. Na história da computação, nenhum braço teve um desenvolvimento tão acidentado, tão interrompido, quanto o da inteligência artificial. Por isso mesmo, sempre que uma barreira ao desenvolvimento aparecia, faltava verba para pesquisa e, junto, incentivo para a formação de especialistas.

Os três homens que ganharam o apelido de padrinhos da inteligência artificial se criaram no último período de escassez, quando nada parecia avançar, entre os anos 1980 e 90. Em 2018, Yoshua Bengio, Geoffrey Hinton e Yann LeCun foram agraciados com o Prêmio Turing, o Nobel da ciência da computação. São, possivelmente, os mais importantes cientistas vivos em toda computação. E, no entanto, as técnicas que eles propuseram conjuntamente só passaram a ser levadas realmente a sério em 2012.

Os seis primeiros verbetes deste Guia Meio para Inteligência Artificial são referentes a eles. Na sequência, vamos listar pessoas, empresas e tecnologias que devem ser acompanhadas para compreender o debate e o avanço da maior revolução que assistimos desde a abertura comercial da internet.

A invenção e os inventores

Aprendizado de Máquina. Tecnologia. Do inglês machine leaning. Desenvolvida por Arthur Samuel nos laboratórios da IBM, em 1955, é uma técnica que permite a um computador aprender. Ao analisar uma grande quantidade de dados a máquina percebe padrões que se repetem e isso lhe permite classificar um conjunto de informações, fazer previsões ou mesmo tomar decisões. É o que possibilita à Netflix, ao avaliar o comportamento de todos seus usuários, recomendar filmes para o gosto específico de cada um. Ou ao TikTok escolher que vídeos curtos vão chamar particular atenção de cada usuário.

Redes neurais. Tecnologia. Do inglês neural network. Em 1957, o psicólogo Frank Rosenblatt, da Universidade de Cornell, sugeriu que seria possível simular, num computador, a maneira como os neurônios se interconectam no cérebro. Sem máquinas poderosas o suficiente, até os anos 1980 foi mais um exercício teórico do que prático. Mas, a partir daí, algoritmos de aprendizado de máquina começaram a ser organizados em diversos nós interconectados em teia como os neurônios se organizam em nossos corpos. Seu objetivo é reproduzir capacidades humanas como a visão ou a audição. Na base, a lógica do aprendizado de máquina é a mesma, porém repetida, e repetida, com as conclusões sendo constantemente cruzadas para serem novamente processadas. A primeira camada de nós em uma rede neural é apresentada a alguma informação para interpretar — por exemplo, a imagem de um gato. Aquela informação vai então descendo, como num rio que flui, para outras camadas de nós. Cada um destes nós procura padrões que se repetem para classificar à sua maneira a informação que recebe e passa suas conclusões adiante para uma nova camada e assim por diante. Em essência, redes neurais têm a capacidade de processar informação de forma muito mais sofisticada do que o aprendizado de máquina simples.

Deep learning. Tecnologia. Habitualmente não traduzido, mas quer dizer aprendizado de máquina profundo. Deep learning é uma rede neural com muitas camadas. Quanto maior o número de camadas de nós, mais poder de processamento da informação.

Geoffrey Hinton. Cientista. n. Inglaterra, 1947. Em 1986, quando lecionava na Universidade de Toronto, desenvolveu pela primeira vez uma rede neural que era capaz de treinar-se a si mesma com sofisticação. Deu, assim, o passo necessário para fazer delas mais do que um exercício teórico. Poderiam, ele demonstrou, resolver problemas do mundo real. Nos anos subsequentes, esteve envolvido na criação de inúmeras outras técnicas para a melhoria de deep learning até que, em 2012, desenvolveu com alunos o primeiro sistema capaz de analisar milhares de fotografias e identificar animais, plantas ou automóveis registrados nelas. A empresa que criou foi adquirida pelo Google em 2013, e ele se dividiu entre a companhia e sua universidade até se demitir da Big Tech, em abril deste ano. Hinton argumenta que o Google vinha desenvolvendo inteligência artificial com a cautela necessária até o ano passado. Então, quando pressionado pelo lançamento do ChatGPT a apresentar o que tinha criado, se juntou numa corrida competitiva que o cientista considera perigosa. “Eu acreditava que esses sistemas demorariam entre 30 e 50 anos para ficarem mais inteligentes do que pessoas”, ele afirmou em entrevista ao New York Times. “Não acho mais isso.” Hinton é tetraneto do lógico-matemático George Boole.

Yann LeCun. Cientista. n. França, 1960. Quando trabalhava no tradicionalíssimo AT&T Bell Labs, em 1988, LeCun criou um tipo específico de rede neural capaz de reconhecer as letras em textos escritos à mão. Seu sistema foi adotado por bancos para leitura automatizada de cheques, na década de 1990. Em 2003, juntou-se à Universidade de Nova York, onde fundou o Centro de Ciência de Dados. E, desde 2013, lidera o departamento de Inteligência Artificial do Facebook, atualmente Meta. Ele é um cético a respeito da possibilidade de ameaça à espécie humana provocada por inteligência artificial. “As pessoas estão projetando a natureza humana nas máquinas” afirmou à BBC. “É como perguntar como fazer aviões a jato seguros em 1930. Aviões a jato não haviam sido inventados em 1930, assim como IA em um nível humano não foi inventada ainda. Hoje aviões a jato são muito seguros e o mesmo ocorrerá com IA.”

Yoshua Bengio. Cientista. n. França, 1964. Nascido em Paris mas criado no Canadá francófilo, Bengio sempre resistiu à vida fora da academia. Desde o início dos anos 1990, seu trabalho no MIT e na Universidade de Montréal, utilizando redes neurais para processamento de linguagem e reconhecimento de fala, demonstrou o potencial de uso da técnica para além do reconhecimento de imagens. Ao simular a organização de neurônios, redes neurais poderiam reproduzir múltiplas habilidades humanas. Faltava, apenas, máquinas poderosas o suficiente. Embora ele próprio nunca tenha sido seduzido pelo mercado privado, criou em 2016 a Element AI, uma incubadora capaz de juntar os talentos formados por sua escola e pela vizinha Universidade McGill para erguer empresas voltadas para inteligência artificial. Como Hinton, ele se preocupa com riscos iminentes causados pela tecnologia. “Minha estimativa é de que temos 95% de chances de desenvolver inteligência artificial superhumana em entre 5 e 20 anos”, escreveu em seu blog. “A magnitude de risco e o fato de que não fomos capazes de prever o rápido progresso das capacidades de IA nos últimos anos me sugerem que prudência é recomendável.”

A indústria nascente

Inteligência artificial entrou em nossas vidas na forma de produtos. Primeiro foram os diversos sistemas de recomendação em serviços de streaming, lojas eletrônicas ou redes sociais. Depois, sistemas de classificação como o Google Photos, capaz de reconhecer nossos rostos, os lugares em que estamos. Aí assistentes digitais no celular, depois em caixinhas de som que se espalharam por nossas casas — Alexa, Google, Siri. Mas, em grande parte, havia uma espécie de pacto não escrito das gigantes da tecnologia de que seguiriam desenvolvendo IA mas soltariam para o público suas descobertas com muita cautela. Em 2022, porém, duas empresas jovens viram no pacto não escrito das Big Techs uma oportunidade para conquistar mercado rapidamente.

OpenAI. Empresa. San Francisco, EUA. 2015. Criada para ser uma instituição privada de pesquisa sem fins lucrativos, teve entre seus fundadores diversos investidores do Vale do Silício como Elon Musk e Peter Thiel, que haviam feito fortuna com o PayPal, e Sam Altman, que presidia a mais influente aceleradora de startups da região, a Y Combinator. A partir de uma lista redigida por Yoshua Bengio, contrataram nove dos maiores especialistas no ramo para desenvolver IA de forma que fosse “segura e benéfica” para a humanidade. Em 2019, por pressão de Altman, a empresa tomou a decisão de migrar para um modelo lucrativo. A competição por cérebros no Vale do Silício é intensa e Google, Meta, Microsoft e outras companhias muito maiores começaram a atrair engenheiros da OpenAI oferecendo, além de salários altos, também ações que representam a possibilidade de enriquecimento. Por uma questão jurídica, para que a transição fosse feita os membros do conselho tiveram de ser proibidos de virar acionistas. Em 2021, a OpenAI tornou público o DALL-E, um serviço capaz de receber descrições de cenas por escrito e que então constrói imagens. Depois, em novembro de 2022, pôs no ar o ChatGPT, um chat que permite aos usuários que interajam com sua inteligência artificial de linguagem. O repentino sucesso do ChatGPT obrigou o Google a correr para lançar produtos similares.

Sam Altman. Executivo. n. EUA, 1985. Como muitos dos rapazes que chegaram jovens ao Vale do Silício em princípios dos anos 2000, Altman lançou uma pequena startup chamada Loopt, que permitia a quem tivesse celulares com GPS compartilhar com amigos sua localização geográfica exata. Sua habilidade com gestão de dinheiro e pessoas logo chamou atenção, num ambiente em que são raras. Trabalha exclusivamente como CEO da OpenAI desde 2020 e foi dele a decisão de levar ao público o ChatGPT. Desde o início do ano, vem falando publicamente em favor de regulação das IAs — mas seu discurso é dúbio. Também já ameaçou a Europa de cessar suas operações no continente caso considere pesadas demais as regras que a UE pretende baixar.

Stability AI. Empresa. Londres, Reino Unido. 2019. Em agosto do ano passado, essa pequena startup inglesa pôs no ar o Stable Diffusion, uma IA para geração de imagens não muito diferente do DALL-E da OpenAI. O que muda, radicalmente, é o modelo de negócios. Enquanto DALL-E e Midjourney, seus dois principais concorrentes, têm muitos filtros para tentar coibir a criação de imagens que possam gerar problemas legais, Stable Diffusion foi distribuído como código aberto. Segundo o modelo de negócios, qualquer um pode baixá-lo, modificá-lo, treiná-lo para usos mais específicos. A condição é que qualquer mudança seja tornada pública para toda a comunidade de usuários. Um dos resultados vem sendo a criação de toda sorte de imagens pornográficas e de violência. Mas este é o lado negativo, porque outros programadores começam a descobrir usos surpreendentes. A empresa conta com um número muito maior de desenvolvedores do que qualquer concorrente, por conta do modelo aberto. Stable Diffusion é o motor por trás de inúmeros apps de celular que criam imagens. A companhia espera fazer dinheiro produzindo versões específicas de IAs para o uso interno em grandes companhias, trabalhando com bancos de dados proprietários, tanto de seu sistema de imagens quanto do de texto.

Mohammad Emad Mostaque. Executivo. n. Jordânia, 1983. Londrino por adoção, de família bangladeshi, Mostaque deixou o mercado de capitais, onde trabalhava com petróleo, por ter sentido na inteligência artificial uma oportunidade de fortuna. Enquanto todos buscam controlar a tecnologia, ele escolheu o caminho contrário — oferece-la gratuitamente para quem quiser mexer no código. “Nós confiamos na comunidade ao invés de ter uma entidade não eleita e centralizadora controlando a tecnologia mais poderosa do mundo”, ele explicou ao New York Times. É uma das figuras mais polarizantes deste mercado nascente — percebido como irresponsável e ingênuo por uns, mas visto como herói em muitos cantos da internet. “Com o Stable Diffusion não há manipulação, você pode ver o código e entender exatamente o que ele faz.”

Midjourney. Empresa. San Francisco, EUA. 2022. Responsável pelo sistema de produção de imagens por IA mais popular entre artistas e designers, Midjourney explodiu faz um ano — em julho de 2022. É também, quando comparado a DALL-E e Stable Diffusion, o capaz de produzir mais estilos gráficos, incluindo realismo fotográfico e hiper-realismo. Tem um modelo de negócios baseado numa assinatura mensal. É preciso pagar para usar.

DeepMind. Empresa. Londres, Reino Unido. 2014. Das principais empresas mergulhadas no uso de redes neurais, nenhuma encontrou usos tão originais para a tecnologia quanto a DeepMind. Seu primeiro produto, AlphaGo, fez para o jogo de tabuleiro chinês o que o DeepBlue da IBM havia feito, em 1997, para o xadrez. Tornou possível bater os melhores jogadores humanos. Adquirida pelo Google em 2016, é a responsável por grande parte dos avanços da companhia na área — incluindo o desenvolvimento do Bard, sua resposta ao ChatGPT. Mas talvez seu sistema de maior impacto seja AlphaFold, um software capaz de desvendar um dos mais complexos problemas da biologia — o enovelamento de proteínas. No papel, evidentemente, uma proteína é uma molécula que reúne alguns componentes químicos. Mas para que ela possa agir, seja no DNA ou em outra função orgânica, ela passa por uma reação que a leva a uma determinada forma tridimensional. Os microscópios que temos, porém, nos permitem enxergar estas moléculas em apenas duas dimensões. Não sabemos como as proteínas se dobram. A especialidade de AlphaFold é descobrir justamente a dobratura como se fossem origamis. A estrutura de 200 milhões de proteínas já foram previstas pelo software, o que inclui a possibilidade de diagnosticar inúmeras doenças do olho com muita antecedência. Com ele abriu-se caminho para vacinas para malária e leishmaniose, além de facilitar o combate à resistência a antibióticos. Existe a expectativa real de avanços para o Mal de Parkinson.

O cético

Gary Marcus. Cientista. n. EUA, 1970. Professor emérito da Universidade de Nova York, Marcus tem uma formação inusitada — ele é simultaneamente neurocientista e especialista em inteligência artificial. A empresa que fundou, Geometric Intelligence, foi adquirida pela Uber. Ele tem sido o principal crítico da onda corrente de inteligência artificial. Não por considera-la um risco — mas por considerar que é um caminho primitivo que não tem qualquer chance de desenvolver inteligência próxima da humana. Segundo Marcus, nossos cérebros trabalham com modelos simbólicos. Somos capazes de reconhecer um gato seja numa escultura, numa caricatura de três ou quatro traços, numa fotografia ou vendo o bicho. Fazemos isso porque temos em nossas mentes o registro simbólico do que um gato é. Não é porque o cérebro está fazendo sequências de contas como redes neurais fazem. Não sabemos, porém, o que em nossos cérebros permite esta manipulação de símbolos. Se é algo inato ou que aprendemos. Redes neurais, ele argumenta, não são capazes de manipulação simbólica e, por isto, jamais terão como se equiparar à inteligência humana. Para ele, falta esta peça.

O debate no entorno da inteligência artificial é de altíssimo nível e está apenas começando.

Expressão da quebrada

Em São Paulo, quem mora no Jardins, área nobre da Zona Oeste, vive até cerca dos 80 anos. Enquanto isso, do lado oposto, a média cai para 59,4 anos na Cidade Tiradentes. É um abismo de diferença de oportunidades. De acesso. É a ampliar esse acesso que se propõe a Perifacon, justamente no bairro periférico da Zona Leste. Ali, desenha-se o futuro da produção geek. Warner, Netflix, Unicef, Globoplay e outras gigantes se misturam a produtores locais, iniciantes, empreendedores, neste domingo, dia 30, na terceira edição da feira, considerada a maior convenção de cultura nerd de favelas. Entre as atrações, o evento oferece painéis, shows e experiências gratuitas (retire seu ingresso aqui). Em entrevista ao Meio, uma das fundadoras da feira, Andreza Delgado, analisou a importância de democratizar o acesso à cultura nerd.

Como está sua expectativa às vésperas do evento?
O coração sempre fica ansioso, mas feliz porque estamos testando novos formatos, ampliando o evento e contando com mais estrutura. Há mais de seis meses trabalhamos nessa edição, que é também uma retomada. A Perifacon 2020 ia acontecer na Cidade Tiradentes, mas, faltando 15 dias, a pandemia chegou e precisamos cancelar. Voltamos à ativa no ano passado com uma edição menor. Recebemos 10 mil pessoas na Brasilândia. Agora, finalmente, retornamos à Cidade Tiradentes com tudo o que temos direito. Por exemplo, em todas as edições tivemos painéis e players. Na questão dos quadrinhos, estamos no terceiro ano consecutivo de parceria com a Chiaroscuro Studios, do Ivan Costa, por meio do qual conseguimos trazer os ilustradores que trabalham na DC e Marvel. Dessa vez, no entanto, teremos ativações — a gente queria isso desde o começo. Contaremos com ativações da Netflix, Warner, Unicef e muitas outras. A perspectiva de expansão é real, oficial, e está acontecendo.

Quem vai ao evento já tem algum conhecimento prévio de tecnologia ou está entrando em contato com esse universo ali?
Na Perifacon, a gente trabalha a questão da empregabilidade e, ao mesmo tempo, compreende a importância de apresentar esse universo para quem não conhece. De um lado, conversamos com quem tá produzindo para gerar oportunidades, como com a palestra da SPcine, que abordará de que forma trabalhar com jogos e por onde começar a transição de carreira para o mundo dos games. Na outra ponta, introduzimos novas pessoas ao universo geek. É um pouco de tudo, a começar pelo nosso público.

Como é esse público?
Você vê desde famílias inteiras vestindo camisetas de super-heróis a grupos de amigos. O mais interessante é que, olhando para esses frequentadores, entendemos quando Angela Davis diz que classe e raça andam de mãos dadas. Em sua maioria, é um público negro. Pessoas de várias regiões… tem gente que atravessa a cidade, pega mais de três horas de condução para ir ao evento porque, além de ser um tema que interessa, se sente à vontade, confortável, numa feira pensada e adequada a essa galera — o que não ocorre em eventos de tecnologia, até em termos financeiros. Existem questões que ficam muito latentes. Escolhemos fazer a Perifacon no domingo, o dia em que muito trabalhador tem folga. A Perifacon é de graça e não tem bebida alcóolica. A missão para atingir o pessoal, aliás, começa bem antes. Circulamos material off-line, nos juntamos a movimentos e grupos que atuam nas periferias, rodamos carro de som e até panfletagem. É muito importante que as pessoas atravessem a cidade para ir, mas também que os moradores da própria Cidade Tiradentes consigam frequentar o evento.

Como surgiu a Perifacon?
Se eu disser que a gente sabia o que estava fazendo, estarei mentindo. Desenhamos o evento pensando no que a gente gostaria de ver na nossa quebrada, queríamos uma feira de quadrinhos. Tanto que a primeira edição aconteceu na Zona Sul porque a maioria das pessoas era dali. Eu mesma passei boa parte da minha infância no Capão. Foi basicamente isso. Era uma ideia, não tinha nome, nada. Então, fomos aglutinando gente que pirava nisso, algumas pessoas que já trabalhavam com quadrinhos, fechamos parcerias e, quando vimos, já ocupávamos sete andares da Fábrica de Cultura. Só depois que encerrou a primeira edição entendemos o tamanho da responsabilidade e decidimos que não daria para ser algo que acontece apenas no aqui e agora, que novas edições teriam que nascer. Deu no que deu. Já temos cinco anos de história, muitos erros e acertos. Existem vários desafios e vontades para as próximas edições. Queremos ter uma sede oficial e contar com uma estrutura financeira mais robusta. A Perifacon é um evento que, hoje, para além de alguns patrocínios pontuais, não está dentro de uma estrutura governamental, o que nos dificulta muito.

Como atingir outros públicos e ampliar o vínculo com o mercado sem perder o propósito inicial?
É uma tarefa diária. Nunca podemos deixar de lado a conexão com nossa história. Quando uma marca entra na Perifacon, reforçamos que ela deve se adequar às possibilidades apresentadas no nosso universo. Deixamos claro: ‘você tá entrando num evento de graça que acontece na periferia para as pessoas da periferia’. Por isso, tudo o que fizemos até hoje com marcas está 100% ligado ao que acreditamos. O interessante é que muitas marcas pensam: ‘ah, determinado conteúdo não vai ser legal na Perifacon’, mas às vezes vai ser legal, sim. Isso porque, em última instância, estamos falando de acessos, o que perpassa muita coisa, inclusive acesso à tecnologia. O legal da Perifacon é que ela abre horizontes, dá acesso a debates e mundos que, às vezes, as pessoas não conheciam.

De que forma a Perifacon movimenta os ecossistemas das periferias?
Tem uma questão de economia criativa absurda que a Perifacon mobiliza. Ali, conseguimos fazer com que as pessoas comprem de pequenos produtores. É uma experiência comercial muito louca. Só no beco dos artistas são mais de 80 artistas, em sua maioria negros. É importante falar isso porque, em contrapartida, o que também é bacana, esse ano teremos o Vassoura Quebrada, um restaurante que não fica em áreas periféricas e que se adaptou para levar sua experiência às pessoas da periferia. Assim, provamos por A + B que existe uma movimentação de compras gigantesca nesses territórios. É, sim, um evento comercial, mas voltado para esse público. Público que está, inclusive, envolvido em toda a montagem do evento… a galera que fez nossa vinheta, por exemplo, é de um estúdio de animação da periferia. É uma feira muito pulsante, que propicia uma gama de conexões e possibilidades. Você pode ir para assistir os painéis, curtir os shows, descolar um job, fazer contatos ou para mergulhar no universo geek. Fico até triste, porque é o evento que eu mais queria ir na vida para curtir, mas tenho que trabalhar nele.

O IBGE e as ideologias

Em 1994, as antenas parabólicas eram objeto de desejo da classe média brasileira. Quem conseguia instalar a parafernália metalizada no quintal ou no telhado de casa tinha a garantia de assistir aos jogos da Seleção na Copa do Mundo dos Estados Unidos, pegando o sinal direto do satélite, sem os chuviscos das retransmissões das TVs.

Só que, além da conquista do tetra, as parabólicas levaram a vários lares brasileiros gafes monumentais, como o flagrante de Galvão Bueno reclamando dos comentários de Pelé nas transmissões da Globo. Outra que entrou para a história econômica do país: o papo (em off) do então ministro da Fazenda, Rubens Ricupero, com o jornalista Carlos Monforte. "Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde", confessava o ministro, descontraído, no diálogo captado e distribuído via satélite. O “vazamento” foi amplamente explorado pelo PT. A conversa se deu em plena campanha presidencial e o antecessor de Ricupero no cargo era Fernando Henrique Cardoso, candidato tucano à Presidência da República. Era antevéspera do lançamento do Plano Real.

Naquela época, já era costume lançar dúvidas sobre os dados compilados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, tal qual se aventa agora, com a polêmica em torno da indicação, determinada pelo presidente Lula, do economista petista Marcio Pochmann para presidir o órgão. Na mesma conversa ao pé do ouvido com Monforte, Ricupero lançava: “Tem um grupo que diz que o IBGE é um covil do PT. Não sei se é verdade, mas o pessoal está convencido disso”.

Quase três décadas depois, a nomeação de Pochmann para o IBGE reacende a briga no universo do “economês”. “Ele vai impor uma visão ideológica desenvolvimentista. É um heterodoxo que acha todo o resto neoliberal. Ele criticou o Pix”... Por aí vai. O embate entre liberais e desenvolvimentistas está de volta ao centro do debate — e, subjacente, há uma importante disputa política.

Lula impôs à ministra do Planejamento, Simone Tebet, o nome do economista do PT na última segunda-feira. Ela queria a permanência de Cimar Azeredo, servidor de carreira desde 1980 no instituto, e se chateou com o atropelo do ministro Paulo Pimenta, da Secretaria de Comunicação do Planalto, que anunciou à imprensa um subordinado a ela. Agora, Simone quer esperar até meados de agosto para ter a primeira conversa com Pochmann. Primeiro, quer fazer com Azeredo uma série de eventos para apresentar resultados do trabalho feito até aqui. Um dos eventos ocorre nos dias 7 e 8 de agosto, em Belém, onde será exposto o Censo Indígena. Interlocutores da ministra argumentam que não tem por que Pochmann anunciar um trabalho que não foi ele que fez e, portanto, dizem que ela só falará com o economista para saber a “proposta de trabalho” dele depois que voltar da capital paraense. Isso se não houver nenhum novo atropelo.

A briga em via pública ocorre em um momento no qual o país começa a ver a economia dar seus primeiros suspiros e apresentar melhoras, chanceladas por duas das principais agências de avaliação de riscos. Nesse contexto, um ingrediente político se coloca como agravante para a emedebista que tinha a intenção de se colocar como uma avalista do governo de Lula para o mercado. Só que esse protagonismo não ficou para ela e, sim, para o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que vem contando a cada dia com maior aceitação. Além de não ter o destaque que queria como avalista do governo, Simone experimenta outra situação de desprestígio, dentro do próprio partido. Depois de encarnar a candidatura presidencial em 2022, deixando a chance de buscar a reeleição como senadora, alas do seu partido não veem mais seu nome como preferido para a disputa presidencial em 2026. Caciques apostam mais na habilidade política do governador do Pará, Helder Barbalho, que espera ter destaque nacional sediando em Belém a Cúpula da Amazônia, um dos eventos testes para a COP 30.

Além da querela que tem Simone como epicentro, há a possibilidade de essa movimentação atendendo à ala desenvolvimentista do PT ser um aceno ao partido em caso de perdas em outros cantos em prol do Centrão.

O ringue econômico

Pochmann presidiu o Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (Ipea) entre 2007 e 2012 e a Fundação Perseu Abramo, instituição de formulação de políticas do PT. Com um pensamento econômico heterodoxo, ele é reprovado pelos liberais que ressuscitam a velha briga, alegando que ele tem um perfil intervencionista demais para comandar o órgão responsável pelos dados estatísticos brasileiros. Quando presidia o Ipea, Pochmann foi bastante criticado ao defender, em uma possível reforma tributária, a elevação da alíquota do imposto de renda para os mais ricos. Ele também demitiu dois grandes economistas do órgão: Regis Bonelli e Armando Castelar. Críticos dizem que ele os dispensou porque não se enquadraram na sua forma de pensar. Outro ponto polêmico foi a defesa de uma jornada de trabalho reduzida, em abril de 2007, antes de entrar para o governo, ainda como professor do Instituto de Economia (IE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Colega de Ricupero na formulação do Plano Real, o economista e ex-presidente do IBGE Edmar Bacha rasgou o verbo: “É um perigo para as estatísticas”, disse Bacha à CNN. A economista Elena Landau, responsável pela política econômica da candidatura de Tebet à presidência, não descarta que a experiência argentina de manipulação de dados seja reproduzida aqui. “Pode acontecer aqui a mesma coisa que aconteceu com o Indec na Argentina, que perdeu a credibilidade. Isso pode acontecer com indicadores importantes, como o IPCA e o PIB.”

O péssimo exemplo da Argentina, com quase dez anos de dados maquiados pelo Instituto Nacional de Estadística y Censos (Indec), é argumento recorrente entre os liberais para criticar Pochmann. De 2007 a 2016, Néstor e Cristina Kirchner determinaram que os números oficiais do país fossem maquiados para manter a inflação anual em até 10%. O PIB e os índices de pobreza também foram falseados. Tudo começou em janeiro de 2007. Dias antes da divulgação oficial da inflação, representantes do governo ligaram para o Indec e informaram a taxa que deveria ficar entre 0,9%, mas se contentaram com 1,1%. O dado era menor que o 1,5% efetivamente apurado. Técnicos do instituto renunciaram como forma de denunciar a intervenção política. “Quando as estatísticas de custo de vida perdem credibilidade, as de pobreza, de indigência e de distribuição de renda também perdem valor”, afirmou, em fevereiro de 2007, Roberto Lavagna, que entre 2002 e 2005 foi ministro da Economia de Néstor Kirchner. Segundo o Indec, a inflação argentina fechou em 2007 em 8,7%, menor patamar em quatro anos. A distância da realidade levou ao surgimento de números alternativos, que indicaram um índice entre 22% e 26% naquele ano. O governo ameaçou multar quem produzisse dados paralelos. Em 2008, foi a vez de o PIB começar a ser manipulado para mostrar que a economia crescia no mesmo ritmo dos primeiros anos do kirchnerismo e que a inflação não era um problema.

A pressão do FMI, que a partir de 2012 ameaçou retaliar a Argentina, ajudou a mudar esse cenário. Mas não de forma imediata. Em 2013, o Fundo aprovou um voto de sanção ao país por “mentir e falsificar” as estatísticas oficiais. Na ocasião, o Brasil foi um dos poucos a apoiar o vizinho, assim como fizeram Venezuela, Chile, Rússia e China. Só em 2016, já sob o governo de centro-direita de Mauricio Macri, que assumiu em dezembro de 2015, o Indec refez sua metodologia para seguir normas internacionais. No último dia 13, o instituto argentino anunciou que a inflação acumulada em 12 meses até junho chegou a 115,6% em junho, maior nível desde agosto de 1991.

A ideologização ou a manipulação de dados, no entanto, não é algo esperado pelo Sindicato Nacional dos Trabalhadores do IBGE (ASSIBGE). Elvis Vitoriano da Silva, diretor da Executiva Nacional, afirma que a própria estatística tem protocolos internacionais e metodologias que acabam impedindo ou dificultando interferências governamentais. Além disso, o IBGE tem um corpo técnico muito sólido. “Nós conseguimos sobreviver ao governo Bolsonaro sem uma interferência na questão técnica. Foi um dos períodos mais complicados que a gente viveu. Mas a casa, os técnicos, conseguiram blindar. Não é o presidente que chega e altera. Há pesos e contrapesos que fazem com que qualquer mudança precise passar por comitê, por avaliações do corpo técnico, o que não é tão simples assim”, disse. Foi sob Paulo Guedes e Jair Bolsonaro que o IBGE se viu sob forte corte orçamentário, o que levou ao atraso no Censo de 2020 e à beira de um apagão de dados.

O líder sindical destaca também que Pochmann é um pesquisador, uma pessoa que utiliza os dados do IBGE, que tem livros publicados, um professor universitário. “Ele vem de uma tradição de uso e respeito aos dados estatísticos. Nesse sentido, analisando o currículo, a gente acha pouco provável que isso aconteça.” Assim que o nome de Pochmann começou a circular, o sindicato do IBGE consultou a diretoria da AFIPEA, que representa os servidores do Ipea. “A informação que a gente tem é que a gestão dele foi positiva, com inovações para o órgão, ampliação e diversificação do plano de trabalho. Agora, como uma pessoa que faz muita coisa, existe uma situação ou outra de divergência interna e isso é normal. Mas nada perto da tônica de interferência política no órgão.”

O economista e ex-presidente do IBGE Sérgio Besserman Vianna também não vê possibilidade de interferência política ou ideológica no instituto. “Não sou um correligionário dele [Pochmann]. O ponto é que o IBGE está isento e protegido de intervenções por fatores estruturais relevantes”, avaliou em entrevista à Folha. “O IBGE foi criado um ano antes do Estado Novo [em 1936], passou por todo o regime ditatorial militar. Não houve interferência.” A Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde Pochmann se formou, em 1984, saiu em defesa do economista. “Reconhecemos nele um profissional competente, cujos serviços prestados à academia e à gestão pública merecem o nosso mais elevado respeito. Desejamos a ele sorte e sucesso em todas as suas atividades profissionais.”

Pochmann vai assumir um IBGE com alguns desafios: recomposição de verbas, aumento do corpo funcional, elevação do salário dos trabalhadores temporários e mudanças na carreira para atrair mais mão de obra ainda mais qualificada. O órgão tem hoje cerca de 3.900 servidores, sendo que quase 900 já podem se aposentar. Já o total de temporários supera os 6 mil, com contrato mensal e remuneração muito baixa, próxima ao salário mínimo. Em 2010, o quadro era bem diferente: havia 7.435 trabalhadores efetivos. O IBGE é responsável por recolher, analisar e divulgar dados sobre PIB, inflação, população, emprego, indústria, comércio, serviços, construção. Tem a missão de “retratar o Brasil com informações necessárias ao conhecimento de sua realidade e ao exercício da cidadania”. Seja quem for seu presidente.

Você conhece o curso do Meio? Teve aula inaugural com Pedro Doria essa semana e ela ficou entre os mais clicados da semana. Confira:

1. g1: O X do Twitter — e os memes.

2. Panelinha: Macarrão à putanesca para um.

3. Jornal Nacional: Mulher de Ronnie Lessa deixa marido sem álibi.

4. Meio: A aula inaugural do curso “O Fim da Nova República?”

5. YouTube: Ponto de Partida — Pochmann fará mal a Lula.

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Toda quarta, um artigo que tenta explicar o inexplicável: a política brasileira e mundial.


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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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