Edição de Sábado: A era do calor que mata começou

Quatrocentas e oitenta e nove mil pessoas morrem por ano por causa do calor; 61 mil no verão passado, só na Europa. A onda de calor de 2021 no noroeste do Pacífico matou 1 bilhão de criaturas marinhas. Os oceanos absorvem, por segundo, o calor equivalente a cinco bombas atômicas. Outra onda de calor, na Antártica, levou os termômetros aos 20ºC. O recorde histórico de alta temperatura do Canadá foi batido em 2021, com 49,6ºC. Da Europa também: 48,8ºC, na Sicília. Há menos de um mês, uma cidade chinesa marcou 52,2º C. Julho de 2023 foi o mês mais quente de que se tem registro. A última vez que o planeta esteve tão quente foi 125 mil anos atrás. O número de dias em que a temperatura passa dos 50ºC em algum canto do mundo dobrou desde a década de 1980. Cerca de 30% da população mundial está exposta a ondas de calor mortíferas mais de 20 dias por ano. Há uma chance de 98% de que ao menos um dos próximos cinco anos seja o mais quente de que se tem notícia. No fim deste século, até 75% dos habitantes da Terra viverão sob risco de morte por causa de eventos climáticos causados pelo calor. Desde a década de 1990, ondas de calor causadas por mudanças climáticas custaram à economia US$ 16 trilhões.

Estamos na era do calor que mata. Num dia tórrido, um trabalhador desprotegido insiste na lida ao ar livre, temendo por seu emprego, e sucumbe. Sob a incandescência do sol, uma família sai com sua bebê e seu cachorro numa caminhada que parecia inocente e seus corpos são encontrados horas depois. Os tetos de zinco que refletem poeticamente a luz do luar em Paris se tornam fornalhas que sufocam idosos. Essa onipresença invisível que é a ardência de um dia extremamente quente está mais comum, mais intensa e mais perigosa do que nunca foi ao ser humano. Nos últimos 250 anos, fomos colocando combustível no forno que, por fim, nos assará. Combustível literal, fóssil, que libera gás carbônico, cujas moléculas vibram com o calor que a Terra absorve e reflete. Quanto mais moléculas de gás carbônico no ar, mais vibração, mais calor. “Precisamos mudar, fundamentalmente, tudo”, diz Jeff Goodell, jornalista que cobre mudanças climáticas há mais de duas décadas, principalmente para a Rolling Stone, em conversa com o Meio. “Nossas velhas ideias sobre como é o clima — o que é o verão, quando começa o inverno —, tudo que sabíamos de mundo climático acabou.”

Goodell é um americano nascido no Vale do Silício, mas que mora no Texas, terra de muito calor. Num dia escaldante, conversava com sua mulher e musa, Simone, e, já tendo escrito livros sobre o aumento do nível do mar, os efeitos da indústria do carvão e outras ameaças climáticas, percebeu que era hora de encarar a força motriz dessas mudanças. The Heat Will Kill You First (O Calor Vai te Matar Primeiro, em tradução livre) é o livro produto dessa apuração, recém-lançado em nove países (ainda não no Brasil). As histórias de morte relatadas ali em cima são algumas das que Goodell compilou em três anos de pesquisa — assim como a certeza inequívoca do título de sua obra. E de que é o CO2 dos combustíveis fósseis o grande responsável. “O fato de estarmos queimando combustíveis fósseis que emitem CO2, e que o CO2 vai para a atmosfera e aquece o planeta, é ciência muito, muito básica. É tão real quanto a gravidade.” Essa habilidade de apontar culpados por eventos climáticos extremos com convicção — e provas — é algo relativamente novo no campo científico. Depois de uma onda de calor que vitimou 70 mil pessoas na Europa vinte anos atrás, pesquisadores perceberam que atribuir responsabilidade clara era chave. Uma nova área, dedicada a isso, se fundou. E hoje pode afirmar, com dados, que uma onda de calor como a que acometeu a China em 2023 pode acontecer até a cada 5 anos se a temperatura continuar subindo — sem a ação direta do homem, esse teria sido um evento de 1 em 250 anos.

Ter essa confiança na ciência por trás de afirmações assustadoras é crucial. Tão devastadoras quanto as ondas de calor são as de negacionismo. Mesmo àqueles que questionam o mais básico dos dados, o de que a indústria de óleo e gás é uma das principais causadoras do aquecimento global, Goodell tem ciência como resposta. “A própria ExxonMobill tem estudos e modelos, da década de 1970, que mostravam com bastante precisão que a queima de combustíveis fósseis esquentaria o planeta. Eles não são ambientalistas liberais de esquerda malucos.” Não são. Mais que isso. Há pesquisas que estimam que a ExxonMobill foi responsável, sozinha, por cerca de 3% do total de emissão de gás carbônico no planeta em cinco décadas. Enquanto seus acionistas seguem se recusando a tomar medidas concretas para diminuir essa “contribuição”, processos e mais processos podem começar a pingar contra a empresa — pedindo 3% de toda a destruição de propriedade, prejuízos e mortes que aconteceram por eventos climáticos nesse período. Isso talvez a force a mudar. Os grandes consumidores de combustível fóssil estão se mexendo. Do Fórum de Sustentabilidade da Boeing, em São Paulo, Pedro de la Fuente, gerente de Sustentabilidade da Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata, na sigla em inglês), disse ao Meio que, na última década, as companhias aéreas já gastaram mais de US$ 1 trilhão em aeronaves mais eficientes e reduziram em 21,5% as emissões de CO2 por assento por quilômetro. “Foram 10 anos de muito trabalho.”

Só que o nível de trabalho que frear o aumento da temperatura requer é imensurável. Sim, frear, porque, a não ser que se invente uma forma de sugar gás carbônico em quantidades colossais, não se reverte o estrago do que foi jogado na atmosfera. No máximo, se freia. Até aqui, nesses mais de dois séculos de queima de óleo e gás, a temperatura do planeta já subiu 1,1ºC comparada aos níveis pré-industriais. A ONU limitou, no Acordo de Paris, a 1,5ºC o tolerável. Na trajetória que estamos de crescimento, até 2100 vamos ficar entre 2,1ºC e 3,9ºC acima dos níveis pré-industriais. A conta não fecha. Na previsão “otimista”, de 2,1ºC, teremos uma temperatura terrestre que não acontece há mais de 2,6 milhões de anos. No piores cenários traçados pelo IPCC, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU, se o planeta bater as temperaturas mais altas projetadas, vamos reverter até 50 milhões de anos mais frios em apenas dois séculos. Por que essa referência à pré-história importa? Porque os cientistas já sabem que as mudanças climáticas, regionais ou globais, foram fundamentais em cada um dos cinco eventos de extinção em massa na história da Terra. E a temperatura no final do século pode ultrapassar os limiares que desencadearam extinções em massa anteriores. O calor pode nos extinguir.

Então, por que não estamos mais assustados?

Uma das razões é a noção de que outros eventos climáticos extremos são mais devastadores. Um furacão ou uma enchente têm a destruição e a morte como cartão de visita, você vê pela janela. Goodell lembra, de saída, que o calor está na formação e nas consequências de muitos desses fenômenos. Até 600 mil pessoas morrem por ano por inalar a fumaça de incêndios florestais. “Furacões nada mais são que motores de calor, que giram com o ar quente e úmido que emerge de oceanos quentes.” E os oceanos, onde se movimentam as correntes que definem a estabilidade do clima, estão mais quentes do que nunca. Mais calor significa, necessariamente, mais eventos extremos de todo tipo.

O calor é ardiloso. No imaginário e na história da evolução, está associado à criação tanto quanto à destruição. O universo nasce de uma explosão. Na Terra, a vida surge em torno do calor dos vulcões. É provável que o calor no solo tenha feito nossa antepassada hominídea, Lucy, se levantar e iniciar uma espécie ereta. A manifestação física primordial do calor costuma ser um belo dia de sol, basicamente a versão romântica de felicidade. Enquanto emoldura a imaginação do que é um momento feliz, o calor que esquenta as águas dos rios em Vancouver leva salmões a descamarem enquanto nadam para procriar. Filhotes de falcão que ainda não aprenderam a voar se jogam de seus ninhos nos parapeitos metálicos de prédios para não fritar. Na última década, algo entre 40% e 70% das 4 mil espécies de animais estudadas por um grupo de cientistas migraram para fugir do calor extremo.

Mas os humanos, em alguma medida, têm feito o movimento oposto. Nos EUA, o censo de 2020 apontou que as pessoas já estão migrando por mudanças climáticas. Elas saem de áreas sujeitas a tempestades (de chuva ou de neve) e procuram lugares mais quentes — entre outras coisas, porque costumam ser mais baratos. Também porque foram acostumadas à ideia de calor como algo saudável. Sexy. Desejável. “Mesmo o termo 'aquecimento global' soa como um clima melhor na praia”, preocupa-se Goodell. Comunicar que o mundo esquentar 2 graus é algo catastrófico é muito difícil. Quem é capaz de perceber a diferença entre 35 e 37 graus? Entre as mudanças radicais que o jornalista propõe, está a da linguagem. A começar por se nomear ondas de calor como se faz com furacões e tempestades. “Ao se ouvir falar da onda Lúcifer ou Diablo, uma pessoa que não está atenta ao assunto ou às formas de se prevenir presta atenção.”

Outro motivo do desprezo pelo tamanho da ameaça é um dos que mais assustam Goodell quando ele tenta ser otimista sobre o futuro. O pouco valor atribuído à vida, especialmente dos mais vulneráveis. Como em toda catástrofe, os mais suscetíveis são os mais pobres. E os idosos. Goodell divide, em seu livro, os que têm mais condições de se salvar (os “cool”) no curto prazo dos basicamente condenados a perecer (os “damned”). O tipo de recurso necessário para se pagar por ar-condicionado, mudar de cidade, lidar com uma disparada de preços nos alimentos por causa do calor extremo é algo restrito a poucos. O tipo de saúde que resiste à insolação, desidratação e exaustão causadas pelo calor certamente não é a da população mais velha. E a pandemia deixou evidente como estamos, enquanto sociedade, prontos a suportar altos níveis de morte de pobres e idosos. Aos milhares por dia. “Temos que a gente se adapte a ver pessoas morrendo de calor, a furacões maiores e mais fortes, à Amazônia queimando, pensando 'ah, é assim que nosso mundo funciona'. Não é. É assim que o mundo que criamos funciona. Mas temos algum controle sobre ele.”

Por acreditar nisso, Goodell está na missão do alerta, do chamado à ação. Não quer ser profeta do caos, da ruína. Já foi chamado até de “otimista ingênuo”, ele esboça um projeto de sorriso pela primeira vez em toda a entrevista. Enquanto é um fato que as cidades, com seu efeito de ilhas de calor, chegando a exibir 15 graus a mais que o entorno rural, são armadilhas mortais, é nelas que têm surgido algumas das inovações e saídas mais auspiciosas. Em contraponto aos edifícios lacrados que dão suporte a sistemas de ar-condicionado (eles próprios grandes emissores de gases do efeito estufa), há cidades se remodelando para ter áreas verdes, de sombra, de circulação de ar — e menos circulação de carro. A humanidade está, em alguns casos, recuperando a memória de construir cidades para o calor, como se fazia na Grécia, no Oriente Médio. Vai ser tarde demais? “Teremos que pensar de forma diferente sobre como obtemos nossa energia, como construímos nossas cidades, de onde obtemos nossa comida. Se olharmos a situação francamente, bem no olho, e começarmos a construir de uma maneira mais inteligente, a tomar as ações que precisamos tomar para lidar com as coisas, podemos usar essa transformação para realmente construir um mundo melhor.” A humanidade simplesmente depende disso.

Em tempo: esta reportagem foi escrita ao som da trilha sonora de Interstellar, de Hans Zimmer (Spotify).

Cerrado: as curvas de um bioma ameaçado

O Cerrado está esgotado. A estiagem que enxuga as árvores retorcidas e o solo ácido é costumeiramente cruel. Mas é o homem o agente central da aceleração na exaustão da “savana brasileira”. O Cerrado registrou um crescimento de 16,5% no desmatamento entre junho de 2022 e junho de 2023, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Entre janeiro e junho deste ano, o Inpe já registrou aumento de 21% na devastação do Cerrado em relação aos mesmos meses do ano passado. A destruição está em ascendente. Em maio deste ano, desmatou-se 83% a mais que no quinto mês do ano passado.

Talvez pelo cenário de natureza peculiar, de árvores tortuosas e vegetação rasteira, seja difícil para alguns ligar a noção de desmatamento ao Cerrado. Mas ele está lá. Acelerado. O Cerrado é o segundo maior bioma brasileiro, atrás apenas da Amazônia, ocupando 20% do território nacional com seus mais de dois milhões de quilômetros quadrados originais. É uma Europa Ocidental no coração do Brasil. Metade disso (48%) já foi devastada. É — ou era — a parte sul do bioma, que abrange pedaços de Paraná, Minas e São Paulo.

Desde a campanha presidencial, o presidente Lula (PT) tem falado muito de Amazônia. Com a ministra Marina Silva ao lado, prometeu reduzir o desmatamento na região já a partir do primeiro dia de mandato. E tem cumprido. O aumento da devastação no Cerrado destoa das reduções percebidas na Floresta Amazônica, que, em 2023, teve 33% de alertas de desmatamento a menos, segundo o Sistema Deter, do Inpe. Mas o crescimento de um e a diminuição do outro são parte do mesmo fenômeno. Para além das ligações naturais entre dois ecossistemas fronteiriços, o bioma do coração do Brasil virou destino para quem desmatava na região Norte. Sozinhas, entretanto, a estiagem e a migração amazônica não explicam o risco para o Cerrado. 

A resposta está nos grãos, na carne e na posse: cerca de 75% do desmatamento deste ano no bioma foi registrado na região que divide Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, o Matopiba, atualmente a maior fronteira agrícola brasileira. O agronegócio responde por cerca de 97% do desmatamento do ecossistema, numa dinâmica que é basicamente luta por terreno — e terreno para boi dormir. “A gente observa 33 milhões de hectares de pastagens degradadas ou subutilizadas. A Embrapa estima que cada hectare pode receber quatro cabeças de gado; no Cerrado, a média é de apenas uma”, explica Yuri Salmona, pesquisador do Instituto Cerrados. O que completa o tridente de um ecossistema em crise são as escrituras e titulações. Enquanto a Amazônia tem boa parte de seu território como terra pública, o Cerrado, a “savana brasileira”, está em mãos particulares, o que dificulta a ação do Estado e a regulamentação. Hoje, o Cerrado tem apenas 8,3% de sua extensão protegida, seja em áreas demarcadas ou Áreas de Proteção Ambiental (APA), com somente 3% de áreas de proteção integral.

Essas questões mantêm lá em cima a devastação que, historicamente, é muito alta. “Aumentar o desmatamento é ruim por si só, mas aumentar num lugar que já tem 50% do bioma morto é suicídio”, aponta Salmona. “É como se o Cerrado fosse um homem já muito careca que ainda perde muito cabelo.”

Os segredos da terra

A frase geralmente é usada para o estado de São Paulo, mas Salmona a reivindica para o Cerrado: “Nosso bioma é a locomotiva da nação”, diz ele, que defende um olhar apaixonado para o momento do meio ambiente no país. A centralidade do ecossistema no mapa deveria ser copiada para as ações públicas, como ele diz. Para a política institucional. Já foi, por força de convenção internacional, lá em 2010, pelo Tratado de Aichi. O acordo previa, entre muitas outras medidas, que, até 2020, todos os biomas dos signatários teriam 17% de suas áreas protegidas por Unidades de Conservação. A Comissão Nacional da Biodiversidade (Conabio) foi escalada para acompanhar a evolução das demandas, mas o negócio “não pegou” por aqui. A Conabio foi esvaziada por decreto de Bolsonaro em 2020, justamente no ano de encerramento do prazo para as metas estipuladas. Nem metade da meta de preservação foi cumprida. 

É sobre isso que Yuri fala quando prega que temos de “repensar o país a partir do Cerrado”, ideia que talvez traga outros dividendos. O Cerrado é a marca da resistência. São as árvores que se contorcem sob um sol escaldante e vermelho, é a mata espinhosa e quebradiça, singular. Única. Arranha o corpo e não se deixa passar despercebida. É, em partes, ser mais como Madalena Soares. “Madá” é uma mulher bem tímida. Fala mansa, pausada. Em ritmo de interior, ela conta que não é apenas moradora e agricultora no Cerrado; ela é parte ativa do bioma. No mesmo tom que fala da rotina — que começa às 4h, “antes mesmo do sol” —, ela conta que será palestrante numa universidade particular de Brasília. Madá é bem famosa. 

No movimento Slow Foodvoltado à política alimentar e à agricultura sustentável, ela tem espaço garantido para falar sobre suas práticas. Madá era uma comerciante comum no Ceasa de Brasília até meados de 2014. De lá pra cá, formou-se técnica agropecuária pelo Instituto Federal de Brasília (IFB), aprendeu variações no cultivo e na colheita de frutas nativas e desenvolveu novos produtos a partir do que extrai da terra. Tudo com Madá é assim, utilizado até a última possibilidade, retorcido ao máximo. Como as árvores que a rodeiam. 

Sua farinha de casca de baru é uma das especiarias mais procuradas na feira, e já chamou a atenção de alguns restaurantes da capital, que agora têm nela uma fornecedora dedicada. “Eu louvo tudo. O baru eu cuido do pé à flor, da semente à casquinha.” É com deferência que Madá lida com a terra. “A gente tem que dar valor a cada pezinho de árvore. Pode não dar fruto ainda, mas um dia vai dar.” Madá se aproveita dos segredos soprados que só quem é parte do bioma sabe ouvir. “Quem diz pra mim que tá na colheita do baru é a arara, que voa com ele no bico. A biodiversidade daqui é demais, são mais de três mil frutos. O ser humano aqui destrói pra plantar soja ou para ‘plantar boi’.” 

Não só de frutos se faz a diversidade do Cerrado, que é casa para mais de 11 mil plantas, “podendo chegar a 14 mil”, segundo Salmona. Essa é uma das entradas que o biólogo enxerga para uma economia verde, voltada à exploração sustentável do bioma. Há chances também pelo mercado de carbono. O Cerrado é responsável por reter mais de 13 bilhões de toneladas de dióxido de carbono que iriam à atmosfera. Com um tesouro desses, parece loucura derrubar ou queimar a terra. É loucura. Mas compensa. Algumas missões de pesquisadores mata adentro conseguem perceber que a terra no bioma, hoje, vale mais dinheiro quando devastada. 

O berço das águas

Madá mora e produz numa chácara de 12 hectares no assentamento Veredas II, a meio passo de Padre Bernardo, município goiano no entorno do Distrito Federal. Ela percebe as mudanças nos hábitos mais básicos. No imóvel, onde “jorrava água”, o líquido começou a rarear durante a estiagem. O jeito foi cavar uma cisterna, mas a água continuou a fugir. Ela apelou para um brejo a cerca de dois quilômetros de sua propriedade. E lá foi Madá com picareta, enxada e pá. “Mas ainda periga, viu?”, alerta, em tom grave. 

Conhecido por “berço das águas” do Brasil, o Cerrado abriga as nascentes de quatro das mais importantes bacias brasileiras: a do Tocantins, afluente do Amazonas; a do próprio Amazonas, por meio do Xingu; a do São Francisco, o icônico “Véio Chico”; e a do Paraná, “o mais fértil e também o mais importante para a geração de energia elétrica no Brasil”, segundo Salmona. Há outras 3.424, mas essas são as de maior destaque. O que nasce no Cerrado, com sua paisagem avessada, é valioso. É  possível destruir o Pantanal e toda sua diversidade sem nem tocar naquela região. Só devastando o Cerrado. Porque saem dali as águas que inundam a floresta pantaneira. 

Em estudo, Salmona analisou as bacias hidrográficas enquadradas no bioma, em registros que vão de 1935 a 2022. O resultado? Houve queda na vazão de todas elas, o que reflete nos rios. Uns mais, outros menos, mas em média 15% da vazão dos cursos d’água que saem do Cerrado foi perdida, graças às mudanças no solo — “leia-se desmatamento”, traduz o pesquisador. Numa projeção feita até 2050, a tendência é que 34% da capacidade hidrológica seja perdida. Isso num cenário otimista, “com políticas públicas contra desmatamento e modelo climático de menor emissão de CO2”.

O timbre tranquilo de Madalena só se altera quando ela fala da destruição de seu lar. A raiva sobe aos olhos e aperta a garganta. Madá chora num misto de dor e ódio, como se houvesse perdido um parente. “Desculpe, filho”, diz ela, envergonhada. “É maldade demais. O Cerrado faz parte de mim, é da minha família.” Mas Madá não arreda o pé. “Eu enfrento esse mato todinho no facão e na enxada, mas não boto fogo. Trabalha eu e Deus.” Ela enxuga os olhos e se reconforta na ideia de um parceiro de batalha. “Eu me sinto o próprio Chico Mendes, como se eu tivesse lutando sozinha.”

A farofa está assando

Pastel e caldo de cana. A combinação é a preferida dos políticos que querem se mostrar do povo, sem luxos, que se satisfazem com coisas mundanas. Quem, durante as campanhas, não se divertiu ao identificar a pouca intimidade de alguns candidatos com a iguaria das feiras? Mas o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ) sempre passeou com propriedade por essa seara — bem como a da farofa cuidadosamente derramada para emular a imagem de gente da gente, simplão. Incorruptível. E, ao sentir o cerco se fechando e seus auxiliares mais próximos tombando em operações da Polícia Federal, lançou mão da dupla da feira para agradecer a alegada vaquinha virtual que rendeu R$ 17 milhões para pagar suas dívidas.

“Criamos em nosso governo o PIX. Muito obrigado a todos aqueles que colaboraram comigo no PIX há poucas semanas”, disse o agora inelegível Bolsonaro. Era um evento do PL Mulher, em Florianópolis, no dia 29 de julho. Bolsonaro seguiu invadindo o discurso da ex-primeira-dama, Michelle. “Mais do que o valor depositado, quase um milhão de pessoas colaboraram, com um centavo, 20 reais, em média. Muito obrigado! Dá para pagar todas as minhas contas e ainda sobra dinheiro aqui pra gente tomar um caldo de cana e comer um pastel com a dona Michelle”. 

Que casal! Na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza. Mais na riqueza, de acordo com as cifras apuradas pela Polícia Federal no esquema de venda de jóias e esculturas recebidas de presente pelo ex-presidente em viagens oficiais. De lucro, as investigações apontam, pelo menos, R$ 1 milhão. Naquele dia, coube à Michelle sorrir, ser abraçada pelo marido e fazer “joinha” para a plateia. Agora, a ex-primeira-dama será chamada a depor no inquérito que apura a venda das joias e presentes. Uma conversa entre Mauro Cid e Marcello Câmara, assessor especial de Bolsonaro, indica que um presente “sumiu” com a “dona Michelle”. Além disso, o inquérito cita uma mala que foi enviada aos Estados Unidos com Marcela Magalhães Braga, então assessora direta de Michelle. 

O discurso do pastel (de) Bolsonaro foi um claro “sentiu, Galvão”. Mais ou menos na mesma época, nas redes, ele passou a repetir o tipo de postagem que fazia quando ensaiava sua candidatura à Presidência: vídeos curtos mostrando a recepção calorosa de apoiadores em padarias, bares e afins. Enquanto fala da feira da dona Michelle, ele repisa a mensagem de que não vê "maldade" em nada do que faz. Tudo para tentar se humanizar conforme os escândalos emergem — e eles não param de emergir.

Àquela altura, entre os seus, já estavam com tornozeleira eletrônica ou na cadeia o ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, e seu ajudante de ordens, o tenente-coronel Mauro Cid. (Isso sem contar o amigo Ailton Gonçalves Barros, preso em maio por suposta negociação com traficantes do Comando Vermelho para a devolução de 10 fuzis e uma pistola roubados de um quartel da Força, em São Cristóvão, e a dupla Max Guilherme e Sérgio Rodrigues, investigados no esquema de falsificação do comprovante de vacinas de Jair Bolsonaro e de sua filha, Laura, para liberação de entrada nos Estados Unidos.)

No dia do evento do PL Mulher, havia no cenário a perspectiva de depoimento de Anderson Torres à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Atos Golpistas. Mas não estava no horizonte de Bolsonaro a descoberta do conluio do hacker Walter Delgatti Neto, o mesmo que descobriu as mensagens que deram origem à Vaza Jato, com a fiel bolsonarista, a deputada Carla Zambelli. No dia 2 de agosto, o hacker foi preso e a deputada passou a ser investigada por tê-lo contratado para invadir o sistema do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e colocar na lista um mandado de prisão falso do ministro do STF, Alexandre de Moraes.

Bolsonaro também não imaginava que Silvinei Vasques, diretor da Polícia Rodoviária Federal (PRF) em seu governo, amanheceria, na capital catarinense, com a PF em sua porta na última quarta-feira. Toc-toc-toc. A pressão foi tanta que ele chegou a desmaiar em seu depoimento, na quinta. Ele é investigado por determinar as blitze em estradas nordestinas para não deixar potenciais eleitores lulistas chegarem às urnas no segundo turno das eleições. As denúncias contra ele partiram de um servidor do Ministério da Justiça que, a pedido de sua chefia imediata, precisou escrever um relatório apontando as cidades nordestinas nas quais Lula tinha mais de 75% dos votos. Na época, o Ministério da Justiça era chefiado por Anderson Torres. A PF também investiga uma reunião que aconteceu no dia 19 de outubro de 2022, onze dias antes do segundo turno, no Conselho Superior da Polícia Rodoviária Federal. Dessa reunião saiu a “orientação de uma ação ostensiva a ser realizada no dia 30 de outubro”, ordenando a fiscalização em "ônibus que levam passageiros de São Paulo para o Nordeste”. Silvinei também teria se reunido com Torres no mesmo dia para tratar do plano para as eleições.

A trama se adensa

A operação da venda das joias, deflagrada na sexta-feira, teve como alvo Mauro Cesar Lourena Cid, pai de seu ajudante de ordens, Mauro Cid, já preso; o advogado de Bolsonaro, Frederick Wassef; e o tenente do Exército Osmar Crivelatti, também ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. No relatório cuja divulgação foi autorizada por Alexandre de Moraes, o ministro diz que há fortes indícios de que o general de quatro estrelas Lourena Cid “praticou atos de lavagem de capitais, se unindo, em unidade de desígnios, com os demais investigados, com o objetivo de ocultar a origem, localização e propriedade dos recursos financeiros decorrentes da alienação dos bens desviados do acervo público brasileiro”.

Aliado de tudo que é calibre de Bolsonaro está preso, em medidas restritivas ou sob investigação. É uma estratégia clássica de cerco: começar pelo entorno para se obter confissões, delações, provas. Em última instância, para pressionar os cabeças de uma organização criminosa a, apavorados, cometer erros.

O divertido dessa patacoada toda — lateral à evidente gravidade dos crimes que podem ter sido cometidos — é que não precisa de muita pressão para os erros aparecerem. Mauro Cid, Crivelatti e outros ajudantes apagaram mais de 17 mil e-mails para não deixar rastros de seus malfeitos. Mas não limparam as lixeiras. No WhatsApp, Cid pediu fotos do Rolex a ser vendido e as apagou. Mas mandou as imagens para si mesmo em outra conta. A PF foi juntando tudo. E tem bem desenhadinho o esquema completo.

A investigação tem até diálogo de Fabio Wajngarten, ex-chefe da Secretaria de Comunicação do Planalto, com Mauro Cid, dizendo que era preciso “recomprar” o relógio Rolex. Era a tentativa de prestar contas ao Tribunal de Contas da União (TCU). 

O relógio havia sido vendido por Mauro Cid, nos Estados Unidos, no dia 13 de junho de 2022, por U$ 68 mil, cerca de R$330 mil, segundo cotação de sexta-feira. No mesmo dia, o valor foi depositado na conta do pai do tenente-coronel, o general Lourena Cid. No dia 9 de março deste ano, no calor da repercussão da primeira reportagem do jornal O Estado de S. Paulo sobre as joias, o ministro Augusto Nardes entendeu que Bolsonaro até poderia ficar com o presente, mas que não podia usar, nem vender. Após a divulgação do escândalo e da decisão de Nardes, Wassef, homem de confiança de Bolsonaro, viajou aos Estados Unidos somente para essa recompra, após ser acionado por Wajngarten. A recompra do relógio rolou no dia 14 de março. No dia seguinte, coincidentemente, Nardes mudou seu entendimento, determinou que Bolsonaro devolvesse as joias, no que foi seguido pelo plenário do TCU.

Esse tempo entre o que disse Nardes inicialmente e o que ele desdisse e o TCU acatou foi crucial, como se vê. A peça foi entregue a Mauro Cid no dia 2 de abril, em um encontro em São Paulo. No mesmo dia, Cid repassou a joia a Osmar Crivelatti, que era assessor de Bolsonaro. Advogados de Bolsonaro entregaram o 3º pacote de joias sauditas em uma agência da Caixa no dia 4 de abril deste ano.

Seja qual for a estratégia jurídica, ninguém pode acusar a Polícia Federal de batizar mal suas operações. No “cercadinho” que vigorou no Palácio da Alvorada durante o mandato de Bolsonaro, além de proferir hostilidades diárias contra jornalistas e confinar apoiadores que lhe rendiam vídeos para as redes, o ex-presidente repetia incansavelmente a passagem João 8:32, que diz: “E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará". A resposta da polícia foi bíblica. A operação foi batizada de Lucas 12:2. “Não há nada escondido que não venha a ser descoberto, ou oculto que não venha a ser conhecido”. Na noite de sexta-feira, a Polícia Federal pediu a quebra de sigilo fiscal e bancário de Bolsonaro.

Golpe (de celular), clima, e liberdade preocuparam os leitores. Confira os mais clicados da semana:

1. Estadão: Operadoras criam serviço para você checar se seu CPF está sendo usado em linha pré-paga.

2. Cadastropre: É aqui que checa.

3. YouTube: Ponto de Partida: A maconha é livre?

4. Globo: Entenda o texto final da Cúpula da Amazônia.

5. Panelinha: Um delicioso patê de salmão.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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