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Edição de Sábado: A cabeça de Alexandre

Numa quarta-feira de abril de 2022, a vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, lia as acusações do Ministério Público contra o ex-deputado bolsonarista Daniel Silveira, preso por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, na Ação Penal 1044. Silveira havia incitado apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro a invadir o STF. “É inconcebível no Estado Democrático de Direito que alguém instigue; que nos dizeres do réu diga ‘o povo entre dentro (sic) do STF, agarre o Alexandre de Moraes pelo colarinho dele, sacuda a cabeça de ovo dele e jogue dentro de uma lixeira’”, Lindôra riu e mirou Alexandre. O ministro sorriu, com a mão na boca, erguendo os ombros. Um tanto resignado, um tanto bem humorado — como quem antecipasse algo que poucos enxergavam àquela altura. Lindôra ainda riu mais uma vez, desculpando-se. A deputada Carla Zambelli (PL-SP) também já ironizou a calva do ministro na legenda de uma foto ao lado do hacker Walter Delgatti Neto, da Vaza Jato, que depois seria contratado por ela para desacreditar as urnas eletrônicas. “O homem que hackeou 200 autoridades, entre ministros do Executivo e do Judiciário brasileiro. Muita gente deve realmente ficar de cabelo em pé (os que têm) depois desse encontro fortuito”, postou a deputada. Não são poucas as referências à cabeça de Alexandre. Direta ou indiretamente. Em ameaças ou em citações inusitadas. Todos querem saber o que se passa nela.

Alexandre é percebido no Supremo como calculista e estratégico. Não avança em falso. Cada passo tem objetivo definido, propósito, calço. Ele sempre sabe onde quer chegar e com frequência resgata motivações anteriores, segundo auxiliares mais próximos. Com bastante frieza e uma capacidade rara de tomar decisões rápido. Agora, garante quem o observa de perto, não sossegará até colocar na cadeia o ex-presidente Jair Bolsonaro. “Build the case” é a expressão emprestada do juridiquês americano que mais se adequa a essa construção de um caso consistente, tijolo a tijolo, em torno de um suspeito. Como se cada passo dado tivesse sua ordem específica, cada movimento descortina mais uma parte da trama para quem presta atenção, construindo lentamente o processo até que seu desfecho apareça. Um sobrevoo sobre os inquéritos já públicos demonstra como uma coisa leva à outra. Está tudo encadeado. E Alexandre tem seguido um rito que comprova seu alinhamento com a Polícia Federal: a polícia pede, ele autoriza as operações. A polícia divulga e ele, em seguida, tira o sigilo dos inquéritos, explicitando o caminho que o fez decidir e abastecendo os veículos de comunicação com detalhes saborosos da estrada lógica percorrida.

Essa afinidade com o trabalho policial não é casual. Alexandre iniciou sua carreira na promotoria, tem cabeça de acusador. Foi promotor de Justiça do Estado de São Paulo por 11 anos, de 1991 a 2002. Dali, pulou direto para a carreira política. Primeiro, como secretário de Justiça de São Paulo, quando acumulou também a presidência da antiga Febem. Depois, foi secretário de Segurança Pública de São Paulo. Em seguida, ministro da Justiça e Segurança Pública de Michel Temer. Em todos esses cargos, comandou forças policiais. Entende a lógica investigativa. E se aproximou de pessoas das polícias Civil e da Federal. “Há delegados muito fiéis a ele”, conta uma pessoa próxima. “Alexandre desenvolveu esses laços nos três anos de secretaria e um ano e meio de ministério. É o time que ele montou, tanto no TSE como os delegados, que tocam esse inquérito [das fake news].”

É justamente nessa investigação que se inicia a montagem do caso contra Bolsonaro. Originalmente, eram dois os inquéritos que apuravam os ataques do ex-presidente às instituições e à democracia. Um, o das fake news, aberto de ofício pelo então presidente do STF, Dias Toffoli, em 2019 — e do qual Alexandre era o relator. Outro, o dos atos antidemocráticos, também relatado por Alexandre, foi extinto por ele e juntado ao primeiro em julho de 2021. Esse protagonismo colocou a cabeça de Alexandre a prêmio e sua família na mira. A frieza do ministro foi posta à prova em um episódio limite. Em julho último, de férias, o ministro estava no aeroporto, em Roma, quando foi atacado por brasileiros bolsonaristas, que o chamaram “bandido, comunista e comprado”. Lutador de boxe tailandês, o ministro não reagiu, nem ao ver seu filho levar um empurrão e um tapa no rosto que lhe fez voar os óculos. Pessoas presentes na sala VIP do Aeroporto de Fiumicino contiveram os agressores, segundo as declarações prestadas pelo próprio ministro. Com a família no alvo do bolsonarismo, a filha de Alexandre acabou indo morar fora para estudar. Ele também adotou um estilo de vida ainda mais discreto.

Ao mesmo tempo em que sabe conter suas emoções, Alexandre conhece o que é capaz de impactar emocionalmente os investigados. Ele trabalha com o susto, o fator surpresa, calculando aí os efeitos das batidas de porta matinais nas operações de busca e apreensão. Foi assim quando a PF amanheceu no batente de empresários bolsonaristas que fantasiavam um golpe de Estado via WhatsApp. O ministro sabia que aqueles homens, cujos nomes foram divulgados pela coluna de Guilherme Amado, no Metrópoles, haviam financiado os atos grandes em Brasília e São Paulo do Sete de Setembro de 2021. Foi naquele dia, na Avenida Paulista, que Bolsonaro pregou para 125 mil pessoas presentes e outras tantas assistindo por live que desobedeceria decisões judiciais que classificou como “farsas”. Foi além. Desafiou Alexandre: “Quero dizer àqueles que querem me tornar inelegível em Brasília: só Deus me tira de lá. Só saio preso, morto ou com vitória. Quero dizer aos canalhas que eu nunca serei preso.” Os amigos do ministro se impressionaram com sua frieza naquele momento. Inelegível Bolsonaro já está.

Alexandre foi criticado por muitos juristas pela ação contra os empresários pelo uso desmedido de força contra pessoas que, afinal, estavam apenas conversando. Mesmo prevendo as críticas, agiu por considerar que seu intuito era outro e o susto dado pela PF à porta teve efeito. Com a operação contra os grandes financiadores do evento de 2021, o ministro terminou por desmontar a rede de apoio monetário ao Sete de Setembro de 2022 — e ao golpe. E conseguiu. O grupo entendeu que estava sendo monitorado, o que fez minguar recursos para Bolsonaro. Os atos do Bicentenário da Independência foram feitos com menos dinheiro, vindo de empresários mais modestos, sem os pesos-pesados, que acabaram se recolhendo no apoio ao capitão. No 8 de Janeiro, na intentona, o financiamento veio de donos de empresas de ônibus, de frigoríficos, tudo de porte médio, do Centro-Oeste, do Sul e do interior de São Paulo.

Dupla de ataque

Na manhã de quinta-feira, esta semana, o circo estava armado na sala da CPI dos Atos Golpistas. O depoimento do hacker Delgatti envolvia, pela primeira vez, de forma direta o ex-presidente Bolsonaro numa trama para fraudar urnas eletrônicas. Delgatti também deu mais detalhes sobre um grampo no telefone de Alexandre, que Bolsonaro teria pedido que o hacker assumisse. Enquanto isso, o ministro participava de uma sessão morna do TSE, a menos de um quilômetro do Senado, impávido. Na sessão, ele era homenageado por sua atuação em um ano na presidência da Corte Eleitoral. Recebeu elogios da vice-presidente, ministra Cármen Lúcia, e do procurador Paulo Gonet, que hoje é a aposta do meio jurídico para ser o indicado de Lula na sucessão de Augusto Aras na Procuradoria-Geral da República. As honras feitas na sessão foram principalmente ancoradas no trabalho de Alexandre em “benefício da democracia brasileira”. Uma clara referência ao cerco que o ministro vem erguendo em torno do ex-presidente. “A democracia brasileira deve muito ao empenho de Vossa Excelência”, destacou a ministra.

O mandato de Aras termina no dia 26 de setembro. A inércia do atual PGR, uma das justificativas para a abertura do inquérito das fake news, não combina com a de Alexandre, que alimenta a esperança de ter na PGR alguém mais alinhado com seu trabalho. Gonet é um nome palatável. Alexandre sabe que, sem um Ministério Público atuante, todo trabalho de investigação que ele tem feito, alinhado com a Polícia Federal, pode ir por água abaixo. Se não há denúncia, a ser feita pelo PGR, não há processo. E ele não pode abrir um processo, de ofício, contra o ex-presidente da República.

Hoje existem no STF contra Bolsonaro cinco inquéritos instaurados com a concordância da PGR. O primeiro é o 4831, que apura a interferência do então presidente na Polícia Federal e trata das suspeitas levantadas pelo na época ministro da Justiça, hoje senador, Sergio Moro, quando rompeu com o ex-capitão e decidiu deixar a pasta. Outro inquérito é o 4874, que mira as milícias digitais. A ele foi apensada a petição 9842, que pede investigação sobre a divulgação de notícias falsas em lives sobre urnas e processo eleitoral. O ex-presidente tem contra si ainda o inquérito 4878, que apura o vazamento, em uma live de agosto de 2021, de documentos de uma investigação sigilosa sobre ataques ao sistema do TSE.

Um quarto inquérito é o 4888, que investiga a atuação de Bolsonaro na pandemia, fatos apurados pela CPI da Covid. O último é o 4921, que apura os atos golpistas de 8 de Janeiro. Ainda existem duas petições de investigação, de caráter sigiloso. Uma delas é sobre o desvio de presentes recebidos no exterior, o caso das joias, e a outra é sobre a falsificação de dados de vacinação, que levaram o ajudante de ordens Mauro Cid à prisão. É outro exemplo, aliás, de como Alexandre atua. A falsificação dos documentos de vacinação poderia servir à prisão, mas com excesso de rigor. O ministro sabia, porém, que Mauro Cid estava envolvido em todo o planejamento dos atos golpistas. Aquela circunstância lhe permitiu isolar Cid e ter acesso às suas comunicações.

Alexandre não contava com o escândalo das joias. Às vezes, ele se surpreende. Os presentes dados ao Estado brasileiro e que Bolsonaro teria tentado vender em benefício próprio não estavam no script — mas entraram na conta assim que surgiram. Com o celular de Cid nas mãos, a PF levantou novas conversas que levaram a investigação das joias a outro nível, permitindo que se apreendessem os celulares de seu pai, o general Mauro Lourena Cid, e quatro celulares do advogado-faz-tudo de Bolsonaro, Frederick Wassef — entre eles, um aparelho usado por Wassef só para falar com Bolsonaro. Wassef é um fio desencapado, incontrolável. Acuado, pode entregar muita coisa. Com cada nova peça, Alexandre se sentiu confiante para autorizar, enfim, o pedido da PF de quebra de sigilo fiscal de Bolsonaro e Michelle, sua mulher. O pânico no bolsonarismo se instalou. O terceiro advogado de Mauro Cid, Cezar Bitencourt, chegou a anunciar na revista Veja a disposição de seu cliente de “confessar” detalhes sobre a venda do relógio Rolex. No dia seguinte, desanunciou. Foi à GloboNews e mal conseguiu formular uma frase com sentido. Negava o que disse à Veja e confirmava tudo, simultaneamente. Tudo enquanto a PF cumpria ordem de Alexandre e prendia a cúpula da Polícia Militar do Distrito Federal.

As frentes do cerco são múltiplas. O foco de Alexandre é único.

Máquina do tempo

Quatro dias antes de o Capitólio ser invadido e depredado por uma turba armada, em 6 de janeiro de 2021, Donald Trump gastou uma hora no telefone com o secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, também republicano. Mesclando ameaça com bajulação, Trump conclamou: “Então, o que vamos fazer, amigos? Eu preciso só de 11 mil votos. Pessoal, eu preciso de 11 mil votos. Dá um tempo”. Raffensperger resistiu. Cortês, disse que a convicção de Trump de que ele havia ganhado no estado era equivocada. No dia 3 de janeiro, o telefonema criminoso foi publicado pelo Washington Post. Mas parte do público americano já estava convencida de que Trump havia sido roubado na eleição perdida para Joe Biden. Ou, pior, independentemente do resultado das urnas, de que Trump merecia e devia permanecer no poder. A tentativa de golpe, então, aconteceu.

É por conta do que aconteceu na Geórgia que Trump foi indiciado criminalmente pela quarta vez em seis meses na terça-feira. A ligação para intimidar o colega de partido é apenas uma das provas estampadas na acusação de 98 páginas apresentada por Fani T. Willis, a promotora estadual encarregada do caso. Ela acusa o ex-presidente de 13 crimes, entre eles o de se envolver em uma conspiração “para mudar ilegalmente o resultado da eleição em favor” — conspiração com outros 18 cúmplices, entre eles Rudy Giuliani. Ao relacionar a atuação do grupo em seu estado com o que aconteceu em outros seis, Willis enquadra a atuação dessa turma na lei Rico, de combate ao crime organizado. Ironicamente, a mesma lei que deu proeminência a Giuliani no combate à máfia na década de 1980, quando ele era titular da procuradoria de Nova York.

Observar o que vai acontecer com Trump com lupa, esperando respostas sobre o que pode acontecer no Brasil, é mais que uma tentação pueril. A cronologia dos eventos políticos nos Estados Unidos é assombrosamente parecida com a brasileira — com dois anos (e dois dias) de fast forward. Mas, evidente, há diferenças fundamentais. Uma das mais marcantes é que o cerco jurídico a Trump é descentralizado. Enquanto Willis o indicia no plano estadual, Jack Smith, promotor especial, o acusa no federal. Essencialmente, do mesmo crime: o de atentar contra a democracia ao interferir no processo eleitoral. (Smith também está à frente da acusação de apropriação indevida por Trump de documentos sigilosos. O quarto indiciamento é o do caso de pagamento de suborno à atriz Stormy Daniels. Ao todo, são 91 as acusações nos quatro processos.).

Willis e Smith optaram por estratégias distintas em suas acusações. Willis escolheu desenhar, no detalhe, uma ampla organização criminosa e suas múltiplas ações. Smith reduziu o escopo, acusou somente Trump, sem co-réus, de “apenas” quatro crimes. O que está por trás disso é um outro fator que diferencia os casos contra Bolsonaro: o tempo. Ao contrário do que aconteceu no Brasil, Trump não só permanece elegível como é, disparado, o favorito a ser o candidato republicano em 2024 a voltar a Casa Branca. Coisa de pelo menos 30 pontos percentuais na frente de Ron DeSantis, o adversário mais viável no campo da direita e da extrema direita que o partido se tornou.

Smith propõe que seu caso seja julgado dia 2 de janeiro, duas semanas antes das primárias de Iowa. Mesmo juristas conservadores apoiam essa data, dizendo que o assunto é grave demais para não ser julgado antes da eleição. Os advogados de Trump pediram que o julgamento seja em abril de 2026. O argumento da defesa, por mais que soe pura cara de pau, é o de que nada menos que 11,5 milhões de páginas de documentos foram apresentadas pelo governo como prova contra Trump e que ler tudo até a data proposta por Smith corresponderia a ler Guerra e Paz, de Tolstói, 78 vezes por dia, todo dia, até a seleção dos jurados. O excesso de provas contra Trump pode ser o que, em última instância, o salve de um julgamento ágil. Arrastando os julgamentos por 2025 ou depois, e caso seja eleito (ele está virtualmente empatado com Biden nas pesquisas), Trump pode simplesmente se autoperdoar. Ou, no mínimo, ordenar que o Departamento de Justiça (DOJ) encerre os casos federais. É incerto que ele pudesse frear o caso estadual da Geórgia, mas juristas e o próprio DOJ interpretam que, pela lei americana, um presidente em exercício não pode ser processado criminalmente.

Willis, aparentemente, confia que isso não a alcançaria. Embora ela proponha que seu caso comece a ser julgado no dia 4 de março, na véspera da Superterça das primárias republicanas, a extensão de sua acusação, na visão de especialistas, inviabiliza esse prazo. Só o fato de serem 19 acusados já levanta uma possibilidade monstruosa de recursos e protelações. Há quem aposte que Willis está numa maratona, não num sprint. Os outros dois casos têm julgamentos marcados para começar em 25 de março (suborno) e 20 de maio (documentos sigilosos). Ainda que os casos sejam conduzidos por três promotores diferentes e estejam em jurisdições separadas (Washington, Georgia, Flórida e Nova York), é provável que, em algum momento, haja coordenação entre as frentes. “As quatro acusações podem parecer quatro carros convergindo para um cruzamento sem semáforos ou sinais — mas isso não vai acontecer”, disse Stephen Gillers, professor de ética jurídica da Escola de Direito da Universidade de Nova York, ao New York Times. “Bem antes do cruzamento, os juízes vão resolver [o que fazer].”

Em tempo: ainda que condenado, a Constituição americana permite que Trump se candidate da cadeia.

Enquanto isso, Trump adota seu método preferido de defesa: o grito. No caso, o caps lock, suas ameaças em maiúsculas no Truth Social, a rede em que ele vocifera contra adversários. “VOCÊ VEM ATRÁS DE MIM, EU VOU ATRÁS DE VOCÊ!”, ele postou no dia 4, em clara intimidação contra testemunhas e promotores. E ele vai mesmo. Na pessoa física ou na jurídica, Trump entrou com mais de 1.900 processos contra “inimigos” em três décadas antes de entrar na política. Em uma dessas ocasiões, processou um crítico do Chicago Tribune, pedindo US$ 500 milhões por difamação. O crítico havia descrito a Trump Tower de Nova York como “um ”átrio de compras cafona de extravagância ofuscante“. O processo não prosperou.

Se uma estratégia óbvia de qualquer defesa legal, e particularmente de quem tem dinheiro para isso (tipo ex-presidentes bilionários), é arrastar julgamentos, a demora pode levar Trump a morrer pela boca. Não raro, ao tentar desqualificar seus acusadores, o ex-presidente confessa parte de seus crimes. Dia desses, na Fox News, admitiu que guardava, sim, caixas com documentos sigilosos. Na próxima segunda-feira, Trump promete apresentar 100 páginas do que ele diz ser ”um relatório grande, complexo, detalhado e irrefutável" sobre a suposta fraude na Geórgia. É possível que no meio disso estejam provas contra si mesmo.

Na quarta-feira, vai acontecer o primeiro debate entre pré-candidatos republicanos. Isto é, daqueles que se qualificarem a participar. O Partido Republicano colocou critérios tão difíceis de cumprir para o debate que praticamente excluiu dois dos pré-candidatos mais razoáveis, e os únicos claramente dispostos a admitir que Trump perdeu em 2020. Esse é o nível de poder que Trump, que deve se ausentar do debate para dar uma entrevista a Tucker Carlson no mesmo horário, tem hoje sobre o partido. Mesmo Ron DeSantis está pronto a defendê-lo, de acordo com um roteirinho para o debate que vazou a imprensa. DeSantis não consegue se firmar como candidato sequer no estado que governa, a Flórida, onde empreende uma plataforma de “direitos dos pais” para implementar leis reacionárias e discriminatórias, como aulas sobre os efeitos "benéficos" da escravidão. No rastro da fragilidade de DeSantis, emerge Vivek Ramaswamy, novo favorito da Fox News e de Elon Musk, mas ainda distante de Trump. Aparentemente, os republicanos não estão dispostos a discutir se o cerco a Trump deve levar o partido a questionar a eleição de 2020 de novo e eternamente. E a demora para se construir os casos contra o ex-presidente podem levar a autoproclamada maior democracia do mundo a ter um golpista eleito, democraticamente.

O rei e o príncipe

James Brown já era o rei do soul e tinha sua carreira muito bem pavimentada quando subiu no palco do Beverly Theater, em Los Angeles, naquele 20 de agosto de 1983. Uma plateia animada se reunia para ouvir grandes clássicos, sem saber que presenciaria um dia histórico para a música afro-americana. É que dois dos maiores nomes da música pop daquela década (e das seguintes) estavam na plateia e seriam convidados a dar uma palinha. Somente muitos anos depois as imagens do encontro de Prince e Michael Jackson no palco do cara que mais trabalhou para o showbiz, segundo o próprio Brown costumava dizer, emergiriam. Neste domingo completam-se 40 anos da noite em que Mr. Dinamite interrompeu sua apresentação para avisar que um de seus pupilos estava entre eles e ninguém havia percebido (o que é difícil de acreditar).

Fazia nove meses que Michael Jackson lançara Thriller (Spotify). Cinco meses antes, ele assombrara o mundo com o passo moonwalk, na performance durante a comemoração de 25 anos da gravadora Motown. Levá-lo ao palco era oferecer ao público o jovem artista que já se tornava lenda.

Michael foi breve: em 30 segundos, repetiu por três vezes o verso “I love you”, seguido por um espetacular giro de 1.440 graus e o passo que é sua marca registrada, enquanto o pai do soul ia à loucura no fundo do palco, junto com a plateia. Ao se despedir, é possível ver Michael dizendo alguma coisa no ouvido de Brown. O veterano retomou o microfone e anunciou mais uma surpresa. “E também”, disse Brown à plateia, “dê a ele uma grande salva de palmas porque ele (Michael) apenas insistiu que eu apresentasse: Prince, suba aqui. Prince!”.

Prince havia lançado seu aclamado álbum 1999 (Spotify) um mês antes de Michael lançar Thriller e já tinha uma carreira sólida. Suas performances ao vivo eram conhecidas. Mas algo estava fora do lugar naquela noite. Carregado nas costas por seu segurança, Prince subiu ao palco. Não fez mais que alguns riffs e um solo básico para acompanhar o soul mais acelerado com que Michael havia acabado de encantar os presentes. Após simular uma certa emoção enquanto tocava, o multi-instrumentista largou a guitarra, tirou o blazer que usava e empunhou o microfone. Não cantou nada. Fez alguns grunhidos e sons estranhos. Ameaçou mostrar na dança como James Brown o influenciou, levando a plateia a uma certa euforia. Mas logo perceberam que nem isso seria feito. O homem que no ano seguinte chegaria ao ápice da carreira com Purple Rain (Spotify) saiu pelo canto do palco. Não sem antes quase cair ao se apoiar em um poste cenográfico, derrubando-o em cima do público. O próprio Brown foi devolver a peça de roupa deixada por Prince durante a encenação.

Segundo o livro Your Favorite Band Is Killing Me: What Pop Music Rivalries Reveal About the Meaning of Life, de Steven Hyder, os membros da banda de Prince que estiveram presentes estavam convencidos de que Michael pediu que Prince fosse chamado ao palco para ser humilhado em público. De acordo com relatos de quem viu a performance, o baixinho invocado de Minneapolis saiu do teatro desejando ter algo como aquela arma dos Homens de Preto, capaz de apagar memórias. Ele exigiu que as filmagens de sua apresentação fossem retiradas do material gravado pela equipe de James Brown. Mas não só. Os boatos mais apimentados dão conta de que Prince ainda esperou a saída de Michael Jackson, agitador da performance, para atropelá-lo com sua limusine.

O próprio Michael teria contado essa tentativa de homicídio a seu produtor musical na época, o lendário Quincy Jones, que relembrou o caso em uma entrevista para a GQ. “Ele [Michael] disse que essa era a intenção dele [Prince]”. O ácido Jones não poupou sua opinião sobre o que aconteceu naquela noite. “Isso é pesado. Ele fez papel de idiota, não foi?”.

Who's bad?

Acredita-se que o evento marcou o início de uma rivalidade entre o rei e o príncipe do pop. Quincy Jones bem que quis aproveitar do embate midiático para lançar um dueto. Mas a ideia não prosperou. Prince não aceitou os termos da parceria. A canção era Bad, faixa do álbum homônimo (Spotify) de Michael. Prince disse ter se sentido desconfortável logo no primeiro verso da música, que diz: “Your Butt Is Mine” (algo como “sua bunda é minha”). “Quem vai cantar isso para quem?”, Prince teria perguntado a Michael. “Porque você com certeza não está cantando para mim, e eu com certeza não estou cantando para você. Então, temos aí um problema.”

O certo é que Prince não queria ser apenas um coadjuvante em uma faixa do concorrente. Ele chegou a sugerir uma outra música para Michael, que também não foi adiante. Uma última tentativa ainda foi feita para unir os dois gigantes no curta-metragem Bad, dirigido por Martin Scorsese. “Sabe aquele personagem que Wesley Snipes fez? Era para ser eu”, contou Prince em entrevista.

Em sua autobiografia Ted Templeman: A Platinum Producer's Life in Music, o produtor Ted Templeman conta que Prince teria lhe pedido alguns conselhos para superar o sucesso de Thriller. “Tenho que encontrar uma maneira de tirar Michael do primeiro lugar.” O cantor não gostou da sugestão de Templeman, que recomendou procurar Quincy Jones para produzir seu novo disco. “Seus olhos se arregalaram, seu rosto ficou vermelho”, relembrou. “Ele pulou de seu assento e, por um segundo, pensei que poderia me bater.” Prince, então, saiu gritando que ele mesmo produzia seus discos.

I am the world

Um outro indício da rivalidade foi a negativa de Prince em participar da gravação de We Are The World (YouTube), canção composta por Lionel Richie e Michael Jackson para o projeto USA For Africa, com objetivo de arrecadar fundos para combater a fome e doenças no continente africano, em 1985. Richie disse em entrevista que o maior erro foi ter dito a Prince que Michael estaria do seu lado durante a gravação. O artista — até então conhecido como Prince — disse que apenas enviaria um solo de guitarra. Quincy Jones, produtor da música, ficou fulo e recusou a oferta. Naquele dia, 45 artistas aproveitaram que estavam em Los Angeles para o American Music Awards para gravar a faixa, que era o assunto mais comentado entre os astros da música.

Em entrevista à MTV, Prince disse que não foi à gravação por não se sentir confortável com todos aqueles artistas no estúdio. “Sou mais forte quando estou rodeado de pessoas que conheço”, disse. “É melhor eu ter feito dessa maneira do que descer lá e participar.”

Uma comemoração dos 10 anos de We Are The World no mesmo AMA, em 1995, trouxe uma nova situação constrangedora para o então Artista anteriormente conhecido como Prince. Todos os cantores que estavam na plateia foram convidados a subir ao palco para para participar da celebração, incluindo o homem de Purple Rain, que ficou o tempo todo chupando um pirulito, enquanto se recusava mais uma vez a cantar. Quincy resolveu provocar Prince colocando o microfone em sua boca, quando o cantor respondeu colocando seu pirulito na frente do produtor. Ficou por isso mesmo.

Mais que amigos, friends

Apesar da famosa competição na realeza do pop, Prince negava que tivesse qualquer antagonismo com Michael. Em entrevista ao comediante Chris Rock, em 1997, ele disse que nunca competiu com qualquer artista e responsabilizou a imprensa pela criação do duelo entre eles.

Mais: pessoas próximas dos dois disseram que Prince e Michael eram amigos. Não era incomum Prince frequentar a casa de Michael e vice-versa. O mesmo acontecia com os shows. Em diferentes oportunidades, os artistas prestigiaram a apresentação um do outro. “Pessoas pensam que eles eram realmente inimigos, mas eles eram bons amigos”, afirma Cat Glover, ex-dançarina e backing vocal de Prince. Ela conta que foi a um show da turnê de Michael Jackson em Minneapolis com Prince e Sheila E. Eles se encontraram antes do show e conversaram por um tempo.

Prince pregava peças em Michael, conta Cat. Ele usou uma pulseira de espelho em formato de coração que costumava usar para refletir a luz do palco nos olhos de Michael Jackson durante a performance. “Não estou brincando, ele realmente fez”, disse aos risos. Quando Michael adorou um casaco que Prince usava, com o ano 1988, nas costas, Prince se ofereceu para fazer um personalizado para Michael com o ano de lançamento do álbum Off The Wall. “Porque foi a última vez que você teve um hit”, disse, em tom provocativo.

Entre brincadeiras e pegadinhas, eles se respeitavam. Nos ensaios para a turnê This Is It, que nunca aconteceu por conta da morte de Michael Jackson, o diretor Kenny Ortega estava preocupado com a saúde de Michael, que não parava para descansar. “Mas, Kenny, Deus canaliza isso através de mim à noite. Não consigo dormir porque estou supercarregado”, dizia o astro. “Michael, temos que terminar. Deus não pode tirar férias?”, questionou o diretor. “Você não entende. Se eu não estiver lá para receber essas ideias, Deus pode dá-las para o Prince”, Michael respondeu rindo.

Depois que Michael morreu, Prince sempre fazia uma homenagem nos shows, com a banda tocando uma das músicas do rei. Ele quase nunca cantava. Ficava a cargo das backing vocals que, segundo ele, tinham um timbre mais próximo do cantor original. Tavis Smiley, amigo de Prince, estava com ele quando souberam da morte de Michael. Prince estava ensaiando em Paisley Park, sua casa em Minneapolis, para o Montreux Jazz Festival. “Prince cancelou os ensaios, mandou a banda para casa e por dias se trancou em seu quarto. Não queria sair e não falava com as pessoas”, conta Smiley. Ao ser questionado pelo jornal francês Le Monde como se sentiu com a morte de Michael, Prince se limitou a dizer: “É sempre triste perder alguém que amamos”.

Parece que faz um ano, mas teve um apagão na terça-feira. Aqui estão os mais clicados pelos leitores nessa atribulada semana:

1. g1: Os memes do apagão.

2. Panelinha: Gravlax de salmão.

3. Panelinha: Ovos quentes com temperos mediterrâneos.

4. YouTube: Ponto de Partida — Como o Brasil funciona (vale ouvir Marx).

5. YouTube: CyberDog 2, o cão-robô da Xiaomi.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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