Edição de Sábado: Barroso, o iluminista

O alívio inconfesso no plenário lotado do Supremo Tribunal Federal (STF) veio quando a nominata com mais 300 nomes deixou de ser lida. A insuportável lista de autoridades, com certeza, quebraria o encantamento da canção Todo o Sentimento, de Chico Buarque, que havia acabado de ser entoada por Maria Bethânia, acompanhada pelas cordas de João Camarero. O recém-empossado presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, nem teria muita condição de cumprir a formalidade. Ao anunciar a dispensa da leitura dos nomes, quebrando a tradição, ainda enxugava as lágrimas.

Barroso havia encomendado a Bethânia uma linda “canção de amor” para sua posse. No momento em que a cantora disse o “sim, senhor”, atendendo a vontade do ministro, todos já haviam entendido que a dedicatória era para sua mulher, Tereza Cristina Van Brussel Barroso. Ela morreu em janeiro deste ano, por complicações decorrentes de um câncer na cabeça do fêmur. No início do discurso, Barroso já havia embargado a voz ao citá-la.

Ele dividiu sua oração em três capítulos. O primeiro foi de agradecimentos, em que fez questão de se estender na homenagem a Rosa Weber, amiga próxima que o antecedeu naquela cadeira e que agora se aposenta. No segundo, já recomposto do par de vezes em que se emocionou, Barroso se empenhou em descrever o que entende ser sua missão institucional e a função do STF na divisão dos Poderes. Não houve grande ineditismo. Sua maneira de interpretar a Constituição de 1988 e defender uma maior “efetividade” em sua interpretação e aplicação é reiterada em seus votos e em artigos. Muito antes de chegar ao Supremo, como professor de direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Barroso já havia se tornado expoente no Brasil de uma escola de pensamento jurídico que pressupõe o papel de “vanguarda iluminista” do STF.

Foi esse o tom do segundo terço de seu discurso de posse. Esse iluminismo passa, necessariamente, pelos direitos fundamentais e humanos que a Constituição assegura e protege. Foram os iluministas os primeiros a codificar essa noção, que inspira tanto a Declaração de Independência dos Estados Unidos como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa. O mesmo norte está expresso no artigo 1º da nossa Carta Magna, com a dignidade da pessoa humana anotada como basilar para o Estado Democrático de Direito. “Direitos fundamentais são a reserva mínima de justiça de uma sociedade, em termos de liberdade, igualdade e acesso aos bens materiais e espirituais básicos para uma vida digna”, apontou Barroso.

Mas falta distribui-los melhor. E é aí que a sociedade costuma rachar. Barroso defendeu três eixos de sua gestão. O primeiro é o conteúdo, em que se propõe, entre outras coisas, a “avançar a pauta dos direitos fundamentais”. O segundo é a comunicação, para explicar melhor à sociedade as decisões da Corte — fontes do STF ouvidas pelo Meio dizem que a linguagem é uma questão que toca diretamente na credibilidade do Supremo e Barroso compreende isso. E o terceiro é o relacionamento, em que se dispõe a “ouvir o sentimento social”. A ideia é atuar de forma mais política, conversando com setores diversos como o empresarial, sindicatos, e outras entidades civis. É desse diálogo que pode sair o apoio necessário para enfrentar divergências com os demais Poderes, garantiram auxiliares do STF.

Antes, no discurso, Barroso já havia definido que pretende intensificar o diálogo institucional com os outros chefes, mencionando específica e nominalmente os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira, que assentiram com a cabeça. Foram acenos protocolares. As relações entre Legislativo e Judiciário estão conflagradas, especialmente nas pautas de “costumes”. Barroso sabe. Ainda antes de prometer diálogo, o ministro buscou se blindar. “Contrariar interesses e visões de mundo é parte inerente ao nosso papel. Nós sempre estaremos expostos à crítica e à insatisfação. Por isso mesmo, a virtude de um tribunal jamais poderá ser medida em pesquisa de opinião.”

Isso porque uma outra faceta da visão iluminista do que é incumbência do Supremo é a de que, mais do que interpretar e guardar a Constituição, a Corte deve promover avanços com base nela. “Empurrar a história na direção certa”, nas palavras de Barroso. A Justiça, para o novo presidente do STF, tem de produzir evolução. É uma perspectiva kantiana tanto da História quanto da Justiça, de que o destino é o progresso. E esse pensamento se desenvolveu e ganhou força em contraposição a um descrédito da classe política, tomada por alguns setores da sociedade como atrasada, principalmente nos últimos 20 anos.

A dimensão política

Um dos desdobramentos dessa concepção de Barroso foi o embarque quase de fé que ele fez na Lava Jato. Ou, organizando cronologicamente, é possível atribuir a Barroso parte da doutrina que norteia uma visão em que o Judiciário, especialmente na aplicação do direito constitucional, “conserta” a República e a livra de males seculares. Ainda na década de 1990, a produção teórica do ministro nesse sentido já dava base, na academia, para o que o cientista político, jurista e historiador Christian Lynch, também professor da Uerj, chamou de “revolução judiciarista”. “Barroso é um caso especial. Pelos propósitos, abrangência e impacto da obra, ele é, talvez, o constitucionalista brasileiro, desde Rui Barbosa, que mais importância teve e tem para o direito constitucional. Foi ele quem mais se comprometeu em fundamentar teoricamente a necessidade de se romper com nosso passado constitucional”, escreveu, em artigo publicado na revista Insight Inteligência.

Esse processo de revitalização da Constituição, em um ângulo, acabou tendo o efeito de legitimar a judicialização da política. Com a explosão popular das Jornadas de Junho de 2013, o anseio de buscar remendar a corrupção epidêmica e a política brasileira foi catalisado na Lava Jato — e chancelado pela Procuradoria-Geral da República e pelo Supremo, quase unanimemente. “Havia a ideia de que a representação política não funcionava mais e, por isso, o Judiciário tinha que ser empoderado. Havia a ideia de que o Judiciário representava a vontade do povo estampada na Constituição”, observa Lynch, colunista do Meio. Barroso, indicado por Dilma Rousseff, a quem agradeceu nominalmente na posse e elogiou por nunca ter pedido, insinuado ou cobrado nada, foi um dos principais lavajatistas da Corte. Acreditava que a operação era um caminho eficaz para investigar e punir a corrupção dos políticos quiçá da mesma forma que são punidos pobres e pretos no Brasil. Fez defesas apaixonadas da força-tarefa em plenário, apoiado principalmente por Edson Fachin e Luiz Fux.

Quando emergiram as mensagens trocadas entre a turma de Curitiba, liderada pelo então procurador Deltan Dallagnol e pelo ex-juiz e hoje senador Sergio Moro, também vieram à tona diálogos que apontavam convites feitos por Barroso ao grupo da força-tarefa, para um “discretíssimo” jantar em sua casa, em Brasília. O ministro foi categórico ao afirmar que “nas conversas privadas, ilicitamente divulgadas, encontraram pecadilhos, fragilidades humanas, e num show de hipocrisia muitos se mostraram horrorizados, gente cuja reputação não resistiria a meia hora de vazamento de suas conversas privadas...” Barroso manteve o apoio à operação quando a suspeição de Moro foi julgada no STF. Ele votou contrário à tese de que o conluio entre a parte acusadora e julgadora colocava toda a investigação a perder. Na época, alegou que a suspeição do juiz não poderia acarretar a anulação do processo. "Se o juiz é incompetente, não se avalia a suspeição. Caso seja reconhecida apenas a suspeição do magistrado, o processo continua a tramitar no mesmo juízo. Se Moro tivesse sido declarado suspeito, o caso continuaria na 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba, com o juiz substituto. Mas se reconhecida a incompetência, o processo deve ser remetido ao órgão competente”, argumentou. Foi voto vencido.

“Para ele, a Lava Jato tinha uma ideia de igualdade perante a lei, um ideal de combate à corrupção e uma luta contra o patrimonialismo”, observa Lynch. “Na época, quem foi lavajatista de boa-fé foi por essa linha.” E esse patrimonialismo é parte do que Barroso entende por atraso no Brasil, inclusive por sua formação. Como FHC e tantos outros políticos dessa geração, Barroso é um liberal-democrata, com viés liberal na economia (seu discurso enalteceu a livre iniciativa e o sucesso empresarial). Mas a origem do pensamento de Barroso é Raymundo Faoro (1925-2003). “É o ídolo dele”, comenta Lynch. Em Os Donos do Poder, Faoro esmiúça a estrutura econômica, social e política brasileira, ancorada nos conceitos patrimonialistas do período colonial brasileiro, importados de Portugal. Dessa estrutura não superada no Brasil, segundo Faoro, é que descendem a imobilidade social e a corrupção. E é com esse passado que Barroso propõe o rompimento e propõe o STF e a Constituição como instrumentos de reconstrução da República.

A devoção de Barroso a Faoro também já se colocou no campo prático. Foi ao seu “ídolo” que Barroso recorreu, no final dos anos de 1970, para evitar que alunos do Centro Acadêmico da UERJ, do qual era diretor, fossem torturados em depoimentos no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), no Rio de Janeiro. Na época, Faoro havia acabado de assumir a seccional da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro (OAB-RJ) e teve força para interceder e garantir a integridade dos estudantes.

Barroso não é mais lavajatista — a entrada de Moro como ministro de Bolsonaro bateu mal. Mas o que fará na era pós-Lava Jato e pós-Bolsonaro, que nas eleições de 2018 angariou o voto da turma anticorrupção, ainda é uma incógnita. “E que agenda ele terá diante de um Congresso cuja metade não gosta do Supremo e que quer impunidade a todo preço, como reação à tragédia que a Lava Jato provocou?” pergunta Lynch. “O que a Lava Jato fez foi uma dedetização malfeita. Daquelas que, no final, as baratas saem mais fortes.”

A dimensão humanista

Não deve estar na pauta anticorrupção, porém, o ponto de maior tensão entre o Supremo e o Congresso. Há um movimento claríssimo de insurgência de parlamentares contra decisões do STF, particularmente nas pautas de direitos humanos e relacionadas ao direito à terra. Coordenadores de 22 frentes parlamentares chegaram a fazer um ato conjunto na quarta-feira, na Câmara dos Deputados, em repúdio à atuação do Supremo. As principais pautas sensíveis são o aborto, a descriminalização do porte de drogas, o casamento homoafetivo e o marco temporal. Alguns parlamentares ameaçaram obstruir votações na Casa enquanto o Supremo não recuar. De concreto, o que já existe são projetos de lei e de emendas à Constituição que ou buscam suplantar decisões já tomadas pelo Supremo ou dão ao Legislativo o poder de desobedecê-las.

É nesse clima que Barroso fala em harmonia, diálogo, e Pacheco e Lira acenam. Na longa carreira de advogado, Barroso atuou nos julgamentos no STF da Lei de Biossegurança, sobre alimentos geneticamente modificados; do reconhecimento das uniões homoafetivas e da defesa da permissão do aborto em caso de anencefalia. Listou, pausadamente, cada avanço que a Corte promoveu, falando de “direitos humanos incorporados à ordem jurídica interna”, ao mencionar conquistas de mulheres, negros, da população LGBTQIA+ e dos direitos dos indígenas às suas terras originárias. Acrescentou, então, que há quem pense que essas causas são progressistas. “Não são. Essas são as causas da humanidade, da dignidade humana, do respeito e consideração por todas as pessoas. Poucas derrotas do espírito são mais tristes do que alguém se achar melhor do que os outros.”

Na maior parte das “pautas divisivas”, como as nomeou Barroso, o Congresso ou não alcançou consenso ou simplesmente deixou de agir, de legislar. Barroso vê essa delonga como omissão e entende que, diante disso, a Corte precisou dar respostas a situações que existem de fato na sociedade. O direito das famílias homoparentais é um caso clássico dessa relação. Elas existem de fato, e precisam ter seus direitos garantidos pelo princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei, mesmo se não há leis que os assegurem. A diferença de interpretação sobre o que é extrapolação de poder ou obrigação constitucional do Supremo é o que está no cerne da disputa. E Barroso deixa claro, em sua carreira e em seu discurso, que entende a Constituição como propulsor para o avanço democrático e de direitos fundamentais. Foi entusiasmadamente endossado pelo decano Gilmar Mendes, com quem já protagonizou uma briga lendária no plenário. Ao lembrar da ameaça democrática que o Brasil e o Supremo enfrentaram nos últimos quatro anos, Gilmar lembrou que “era isso que estava em jogo, e que ainda está: a preservação das decisões fundamentais de uma Assembleia Nacional Constituinte legítima e plural. Ela deu ao País uma Constituição que elevou a dignidade da pessoa humana à condição de pedra angular”. Essa pode não ser a posição unânime da Corte, mas certamente é majoritária hoje.

Mas Barroso não é um animal indômito. Ao contrário: não só coloca o diálogo, o afeto e a tolerância como princípios, como se apresenta, da mesma forma como fez em sua sabatina no Senado, como um “equilibrista”. Por isso, ao falar dos consensos que pretende construir, deixou as tais pautas divisivas de fora, com exceção do meio ambiente — embora tenha procurado dar o caráter mais ligado ao desenvolvimento econômico possível a ela. Falou ainda de educação, pobreza, saneamento básico, livre iniciativa. E, assim, encerrou seu discurso na quinta-feira: “Viver é andar na corda bamba. (...) Mas o equilibrista tem de saber que ele está se equilibrando. Porque se ele achar que está voando, ele vai cair. E na vida real não tem rede”.


*Repórter especial do Meio

Cortina de fumaça

Ele está em bares e restaurantes, no transporte público e até mesmo dentro de repartições. Está, também, na moda entre os jovens. Só não está na legislação. Aliás, está, mas apenas em uma norma para citá-lo como produto proibido no país. O cigarro eletrônico está na moda e tem arrebatado consumidores, sobretudo os de menor idade. Na quinta-feira, uma audiência pública na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado debateu, pela primeira vez, a regulamentação do produto. A senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), que propôs a audiência, disse logo na abertura que a Casa não deve fugir à responsabilidade de analisar o tema. “Muito mais perigoso do que regulamentar, é não regulamentar, por não sabermos quais substâncias nossa população está consumindo. Se faz urgente uma proposta regulatória de acordo com a nossa realidade", pontuou.

A reunião juntou apoiadores e críticos dos cigarros eletrônicos no Congresso Nacional. Representantes da indústria tabagista ascenderam ao microfone para defender a inclusão dos vapes, como são conhecidos lá fora, no rol de produtos liberados para uso com restrições (como a gestantes e menores de idade, por exemplo).

Os principais argumentos de Lauro Anhezini Júnior, conselheiro da Associação Brasileira da Indústria de Fumo (Abifumo), passam pela perda de arrecadação, já que sem a regulamentação não são recolhidos impostos sobre os cigarros eletrônicos vendidos no país; e pela possibilidade de reduzir os danos em fumantes de cigarros tradicionais que adotem os eletrônicos. Essa condição é exaltada pelos fabricantes por não haver combustão de nicotina nos Dispositivos Eletrônicos de Fumar (DEFs), os vapes, que simplesmente aquecem um líquido (a essência) ou esquentam barras de tabaco. Nestes, a planta é aquecida a cerca de 300ºC, muito abaixo dos 800ºC registrados na queima do cigarro normal.

O problema para essa teoria está em alguns números. De acordo com o Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas Não Transmissíveis em Tempos de Pandemia (Covitel), de nove mil pessoas entrevistadas, apenas 5,8% respondeu que traga algum DEF para mitigar os efeitos do cigarro tradicional. O principal motivo para experimentar é a curiosidade mesmo, que chega a 20,5% das respostas. Outros 30,5% usam os dispositivos “porque gostam” ou porque “está na moda”. Quase um quarto da juventude brasileira já experimentou um cigarro eletrônico. A maior parte dos consumidores tem idade entre 18 e 24 anos. E 43% dos entrevistados afirmaram comprar o produto em lojas físicas, mesmo com a proibição imposta pela Anvisa. A pesquisa foi realizada em abril deste ano, em parceria com a Universidade Federal de Pelotas, e tem margem de erro de 3 pontos percentuais.

“Vicia”

Esse último dado da pesquisa, que revela a facilidade de se comprar os vapes apesar da proibição, é complementado por um segundo, do Ipec, de que há dois milhões de consumidores desses produtos no Brasil, com cerca de seis milhões de pessoas que já experimentaram ou fazem uso esporádico. Sem qualquer regulamentação que não seja a expressa proibição, registrada na Resolução nº 46 da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa), o cigarro eletrônico é vendido livremente em tabacarias, distribuidoras de bebidas e postos de gasolina. As essências, que dão o sabor às enormes quantidades de fumaça, são ofertadas de forma separada, com variedade que impressiona, ou misturadas entre si, em experiências quase alquímicas para os consumidores. Qualquer comércio desses produtos é classificado como infração às normas sanitárias, que, pela Lei 6.437/77, é passível de advertência, apreensão dos produtos e aplicação de multas que vão de R$ 2 mil a R$ 1,5 milhão, a depender da gravidade.

Representante do Instituto Brasileiro do Cérebro, João Alberto Costa e Silva explicou como funciona a formação de uma dependência química no ser humano. “Na hora que se deu a dependência, que o cérebro aprende a fazer uma coisa que dá pra fazer, é irreversível. Quando atinge o cérebro, atinge o corpo inteiro. O sistema imunológico vai pro espaço, o metabolismo some. [A pessoa] começa a ter mil doenças que nem imagina”, citou.

Na mesma audiência, Alcindo Cerci Neto, do Conselho Federal de Medicina, foi na mesma linha sobre a adição. Ele negou que o cigarro eletrônico produza um vapor d’água, como o próprio nome sugere. “A fumaça é combustão de substâncias nocivas. Vicia. Nicotina causa dependência”, pontuou o médico.

Cerci apontou os vapes como uma porta de entrada para outros produtos mais danosos, como o próprio cigarro industrial. De acordo com o médico, a realidade subverte a lógica conclamada pelos defensores dos DEFs, iniciando mais pessoas – jovens, sobretudo – no tabagismo. Outro argumento de Cerci é justamente a falta de informações sobre os produtos, sejam os dispositivos ou as essências, já que “não se controla nos produtos que se compra a quantidade de nicotina”. Ou seja, de acordo com essa visão, cai a premissa de que os e-cigarettes, como são conhecidos lá fora, são menos agressivos nos níveis de nicotina.

É este também o argumento de Mônica Andreis, presidente da Aliança de Controle ao Tabagismo (ACT). Conforme disse no plenário da CAS, a indústria do tabaco se vale de uma dependência química para lucrar. Enfática, Andreis apontou que os e-cigarettes são apenas “uma nova estratégia” para reconquistar o mercado. Cabe lembrar que a indústria do tabaco teve sucessivos baques no Brasil nas duas últimas décadas. A primeira com a proibição de anúncios publicitários que promovam o tabagismo – nem mesmo nas transmissões nacionais de Fórmula 1, onde se consagrou a Marlboro, por exemplo. Outras, como restrições de fumo em lugares públicos e aumento de impostos, têm gerado uma busca por alternativas por parte de gigantes como a Souza Cruz e a Philip Morris. Um dos mais ferrenhos defensores da regulamentação, o senador Eduardo Girão (Novo-CE) disse que, em quase 35 anos, o índice de fumantes de cigarros tradicionais caiu de 34% para 9% da população brasileira. Os vapes seriam uma variante tão boa quanto o nicho dos narguilés, que conquistaram o país de alguns anos para cá, com destaque especial para os jovens.

Quanto vale a baforada?

Um dos pontos altos da reunião foi a fala de Adriano Pereira Subirá, coordenador operacional de fiscalização da Receita Federal. Segundo o servidor, há um descontrole tão grande com os vapes no país que é impossível sequer estimar quanto seria arrecadado com a regulamentação. “Precisamos fortalecer o controle extensivo de nossas fronteiras. A apreensão de cigarro tradicional, mas ilegal, não chega a 10% do mercado paralelo”, explicou. Pereira ainda adiantou que, em caso de regulamentação, pelo modelo atual incidiria um imposto de 6,5% sobre os vapes, que são produtos eletrônicos, enquanto a tributação para o tabaco é de 45% a 50% do valor original.

Mesmo com essa incerteza, há receptividade entre os parlamentares. Thronicke, que presidiu a sessão, é tida como uma das vozes pró-regulamentação do cigarro eletrônico no Congresso Nacional, assim como o senador Dr. Hiran (Progressistas-AM), líder da Frente Parlamentar Mista de Medicina. Diversos outros assinaram requerimentos de informações, enquanto defesas da regulamentação eram feitas seja pelo lado tributário ou pela ótica de saúde pública, com a definição de padrões e controle sobre o público-alvo dos produtos.

No sentido contrário, há o Projeto de Lei Complementar (PLC) 473/18, de autoria do senador Ciro Nogueira (PP/PI), desarquivado em março deste ano, que prevê a proibição de qualquer produto eletrônico que se assemelhe ou seja usado em substituição ao cigarro comum, ou às cigarrilhas, ao charuto, ao cachimbo ou outros produtos fumígenos. A audiência foi só o primeiro round.

'Precisamos ser estratégicos no rap', diz AfroRagga Flowman

Resolver mentalmente operações matemáticas, Sudoku e caça-palavras – fazer disso um hábito diário. São algumas das dicas de composição de rap transmitidas em um vídeo no canal do YouTube da Escola do Flow. Entre uma aula e outra, o projeto foi vencedor na primeira edição do Prêmio YouTube Educação Digital. Ao Meio, AfroRagga FlowMan, criador da metodologia de ensino, explicou a importância de profissionalizar rappers e impulsionar a cena do hip hop no país.

Como funciona a Escola do Flow?
Ela tem sua base no YouTube, uma plataforma acessível que alcança pessoas de várias regiões e condições. Dentro do canal tem, gratuitamente, estudos organizados em playlists e séries. Quem acompanha esses conteúdos consegue também acessar a comunidade no WhatsApp para interagir com outros que estão começando e rappers mais antigos. Dependendo do nível de interação e comprometimento da pessoa no grupo, convidamos para aulas mais profundas, prestamos um auxílio direto em seus projetos pessoais, ajudamos a contatar outros músicos para fazer feat, criamos um senso de colaboração gigante. Funciona como uma bolsa de estudos, esses alunos são os representantes de turma. Além disso, atuamos de forma presencial com um trabalho de base. Aqui no Distrito Federal vamos falar sobre o rap em unidades de internação, escolas e faculdades. Para sobrevivermos, contamos com a parte comercial que oferece aulas particulares, consultoria, produtos, etc. Usamos o rap como ferramenta de educação. Falamos muito sobre a música, mas também a respeito da cultura hip hop. Conversamos até sobre a autoestima do rapper, a importância da conscientização, o mercado musical e todas as outras camadas.

Como surgiu o projeto?
Comecei a dar uma incubada no final de 2016, mas meti as caras mesmo para fazer virar a Escola do Flow no Youtube só em 2017. Acontece que essa história começa antes. Entrei no rap com uns 15 anos e, nessa época, as pessoas que me acolheram eram mais velhas. Ali para 2011, quando surge uma nova cena do rap — digamos, a da minha geração, eu já tinha uns oito anos de experiência. Percebendo isso, a galera sempre me consultava, vinha perguntar o que eu achava das composições, pedia dicas. Fiquei matutando. Troquei ideia com uma amiga sobre organizar o estudo e ensinar o rap de forma profissional. Naquela espécie de aula, coloquei tudo o que eu achava importante para um rapper. Apresentei e foi legal demais, mas pensava: ‘será que tô sendo muito pretensioso, vaidoso, querendo ensinar?’. Chamei uns dez rappers que já estavam há tempos na atividade e fiz uma espécie de sabatina. Eles tiveram uma reação muito positiva. Escolhi o YouTube para divulgar o material. Estava preparado pra tomar paulada, porque ainda não existia essa cultura de gente ensinando rap profissionalmente.

Como era a cena do rap quando você começou?
Sou de uma segunda geração de rappers. Comecei em 2003, quando já tinham uns pioneiros, o pessoal que estruturou a base para o rap acontecer. Era muito preconceito por ser uma música que vem do gueto, além de ter suas origens na cultura urbana que sempre foi recriminada, permeada pelo racismo e a desigualdade social. Depois dessa geração ‘pé na porta’, quando vem a minha época, ainda prevalece o preconceito com a nossa linguagem e o estigma de que rap é ‘coisa de bandido’. Precisávamos ser combativos, quebrar paradigmas. Sou do mesmo período que o Emicida. Estamos falando de quando ocorre o boom da internet e os próprios rappers passam a questionar para onde a música iria, o que era o rap de verdade. ‘Só é rap se continuar na periferia?’, ‘A gente pode ir na televisão?’. E uns MCs passam a ganhar grana. O Emicida foi quem fez essa ruptura e levou a cultura hip hop para a grande massa.

E como você enxerga a perspectiva de quem está entrando nesse mundo agora?
Desde 2010, o Brasil vive o que os Estados Unidos fizeram nos anos 2000. Essa parada de o rap começar a falar de maneira comercial, ter letras mais fúteis e músicas vazias para vender, até porque o compromisso do mainstream é manter uma ideia vazia, né? Hoje, nosso rap foi super cooptado pela visão comercial. Um erro que ilustra bem isso é a tentativa de separar o rap do trap, que tá estourado atualmente. Mas não existe essa distinção. É tipo um picolé. O picolé é a base, a base é o rap. E aí existem vários sabores, que são subgêneros do rap, como o trap, o gangsta, lo-fi, crunk e outros. Não se separa o subgênero do gênero. Só que esse descolamento tem acontecido tanto pela ignorância de gerações antigas que falam que o que está sendo feito hoje não é rap de verdade quanto por conta de uma estratégia comercial para separar o rap de seu discurso da contestação, do protesto – que continua sendo relevante.

O rap de contestação está sem espaço?
Quem é rapper, quem faz funk, é da cultura urbana, precisa ficar atento a uma coisa: eles podem enriquecer, comprar camisa da Lacoste, BMW, o que for. Mas para o sistema em que vivemos, essas pessoas ainda não estão à altura. Ser rico é diferente de ter capital social. Então, desde o mano que tá na ostentação ao que tá cantando protesto, o nosso movimento precisa se ver como um só porque quando somos atacados, somos atacados no todo. O Chefin estava gravando um clipe e foi tirado de traficante. De tempos em tempos, o Ret é perseguido pela polícia, assim como o Mc Poze e o Orochi. E olha que eles estão no topo, no auge da carreira. Ou seja, não adianta a nossa comunidade avançar materialmente sem avançar com a consciência política. A grande diferença é que no meu tempo nós estávamos perguntando para onde o rap deveria ir. Hoje o rap escolheu uma direção perigosa. O caminho de apenas ganhar dinheiro e ser famoso aliena nosso povo.

Como fazer um rap que atenda ao pensamento crítico e, ao mesmo tempo, entre no ciclo comercial?
Se a pessoa escolhe fazer música, existem dois caminhos. No primeiro, você se adequa à linguagem comercial para amplificar suas chances, só que mesmo tendo empresário e atingindo a esfera comercial, às vezes não vira porque o próprio sistema é seletivo. Podem existir cinco Drakes com o mesmo talento e aporte financeiro, mas o mainstream só vai escolher um já que precisam ser poucos. O outro caminho é o da organização coletiva, que abarca as várias formas de trabalhar com a música. Para ilustrar essa ideia: o Duck Jam é um rapper que tem um tipo de alcance e visibilidade, é um cara do mainstream. Já o Gigante no Mic é mais alternativo, da rua mesmo. São duas pessoas que fazem o rap acontecer, cada um a sua proporção, mas eles conseguem viver de música. Imagina só se o Djonga, no início da carreira, tivesse chegado no empresário e dito: ‘irmão, vou fazer um som chamado Fogo nos Racistas. Não daria certo. Mas sabe como o Djonga aconteceu? Com o apoio do Froid, outro rapper que já tinha relevância na cena, mas não é tão conhecido. Então, dentro do rap precisamos ser estratégicos.

Mas você sente que os jovens chegam na Escola do Flow com a expectativa de encontrar uma fórmula pronta para fazer rap e estourar?
Quando chega um pessoal assim, orientamos com cautela porque a propaganda sempre vem antes da consciência. Para procurar os estudos sobre música, eles se inspiram em rappers que aparecem com carros bonitos, relógio no pulso… são essas seduções que primeiro alcançam a rapaziada, é normal. Não podemos culpabilizar o indivíduo. Por isso, a Escola do Flow também faz um trabalho de base orientando sobre as ilusões. Tô querendo dizer que esse rapaz nunca vai conseguir ser um Matuê da vida? Não, ele pode, existe a chance. Mas uma carreira artística não é só isso. Se não virar, vai desistir da música? Assim, orientamos no sentido de: você quer viver do rap ou quer ser famoso? Se for pela fama, é melhor ganhar na lotofácil porque o dinheiro compra a fama, mas relevância é construção.

Estava quente por aí? A amostra grátis do apocalipse foi o tema mais clicado da semana pelos leitores:

1. Metrópoles: Todo mundo queria saber quando acabaria o calorão.

2. Panelinha: Pera cozida no micro com mel e canela.

3. YouTube: Ponto de Partida — O erro identitário.

4. YouTube: Conversas com o Meio — Como Isabela Kalil explica o que levou ao 8 de Janeiro.

5. BBC Brasil: A inteligência artificial usada criminosamente.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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