Edição de Sábado: ‘Um pai mais forte’

Aos 66 anos, a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz é autora, já, de muito mais livros do que é possível contar. Todos sobre o Brasil. Professora da USP e de Princeton, ela é também uma simpatia — alguém com quem é sempre um prazer conversar. Mesmo quando discorda, Lilia instiga, sorri, traz um argumento novo. “História procura refletir sobre o que muda e a antropologia discute sobre o que persiste”, ela observa. E o Brasil, que nesta semana que entra encara o primeiro aniversário do levante mais recente contra a democracia, precisa de ambos. Porque levantes contra a democracia, uns de sucesso, outros fracassados, são tão frequentes que somos obrigados a colocá-los na caixa daquilo que persiste. Que não muda — ou, ao menos, ainda não mudou.

Esta entrevista, quase uma conversa, é sobre o que o Brasil é pelo seu olhar. O Brasil no qual um bom pedaço da sociedade ainda busca “um pai mais forte.” Nesta versão por escrito, foi condensada e editada para facilitar a leitura. A íntegra em vídeo está à disposição de todos os assinantes premium do Meio. Basta seguir o link.

Até 2015, talvez 2016, a impressão que tínhamos era de que o Brasil já havia resolvido seu problema militar. Mas o Alto Comando do Exército Brasileiro foi convidado a participar de um golpe de Estado para manter Jair Bolsonaro no poder apenas um ano atrás. Não aceitou. O comandante da Marinha aceitou e sabemos que houve generais tentados. Não há mais ameaça iminente à democracia brasileira. Mas este pesadelo da constante interferência militar, ele não se resolve nunca?

O governo Lula completa um ano com a democracia bastante assegurada. Mas democracia é um projeto inconcluso sempre e vivemos quatro anos de muitos ataques a ela. No Oito de Janeiro, o Brasil teve o seu Capitólio e, no nosso caso, a participação das Forças Armadas foi grande. Na minha opinião, grande e comprovada. Cultivamos essa cultura das Forças Armadas como o fiel da balança da estabilidade do Estado brasileiro. É assim desde a Guerra do Paraguai, quando o Exército era uma instituição de menor importância e projeção simbólica. Desde quando as Forças Armadas se constituíram como instituição assumiram para si essa definição de salvadores da Pátria. Eles estiveram presentes no golpe da República. Com jacobinismo e tudo mais, sabemos o que aconteceu na Revolução de 1930. Como sabemos o que aconteceu com o golpe de 1964, que vai fazer aniversário redondo esse ano.

O Exército sempre deu golpe, nunca foi fiel da balança da democracia. Precisamos questionar essa representação do Exército como força neutra, como força comprometida com o fortalecimento democrático. A história mostra o oposto, mostra comprometimento com uma política de golpes e contragolpes. Não diria de forma determinística que nunca vamos nos livrar, mas é importante que a gente traga a reflexão para dentro. Para nós. Por que será que uma parte significativa da sociedade espera essa participação dos militares? É importante fazer distinção entre o pensamento conservador, constitucional, e essa extrema direita retrógrada cujo discurso cresceu. Isso que me preocupa. Essa visão, depois de tudo que se fez na Ditadura Militar, de saudosismo e nostalgia de um tempo que nunca foi. Daí você puxa uma ideia interessante: talvez não seja um problema do Exército como instituição, mas do seu imaginário na sociedade. Está na maneira como as Forças Armadas são percebidas por um pedaço da sociedade.

Você já estudou um bocado a ideia de autoritarismo dentro da cultura brasileira. O que é constante nessa busca por autoritarismo na sociedade? O que que você percebe que existe hoje e já estava lá atrás?

Sou historiadora e antropóloga. A mistura é boa porque a história procura refletir sobre o que muda e a antropologia discute sobre o que persiste. Existem algumas estruturas da sociedade brasileira que persistem. O autoritarismo é feito de várias camadas.

Estou terminando um livro sobre imagens da Branquitude. Essa ideia não é a autodefinição de nós, pessoas brancas. Mas há um grupo que foi responsável pela colonização, pela máquina que construiu o escravismo na modernidade. É um grupo muito preocupado com a manutenção do seu status, dos seus privilégios e do monopólio do poder. Esse autoritarismo se reveste numa série de outros ismos, como o racismo. Ou seja, é legado da escravidão, embora esse racismo seja construído também no tempo contemporâneo. Mas eu chamaria atenção ainda para misoginia, machismo, que são outros traços marcantes do nosso autoritarismo. Isso vem do período colonial, quando havia uma clara desproporção na divisão de sexo e gênero na política, mas que era também econômica, era social, e se mantém social.

Aí entra um traço brasileiro que é procurar por um pai mais forte, seja na figura de um senhor de engenho, de um grande proprietário, do colonizador, seja na figura de um imperador. Na figura do presidente. Não estou querendo falar que tudo é igual, que tudo é o mesmo. Mas esses são traços que se reiteram na política brasileira. Brasileiros selecionam seu presidente recorrentemente na ideia de um pai forte. Bondoso, mas atuante. Como é que se explica?

As Forças Armadas aparecem nessa perspectiva de que existe uma instituição acima de nós. Uma instituição que pode regular o que a sociedade civil não regula. Isto se torna um handicap em relação à sociedade civil. À potencialidade da sociedade civil.

Temos ainda a questão da corrupção. Corrupção tira da sociedade o que ela criou. Pelos dados da Unesco, somos agora o oitavo país mais desigual do mundo. Desigualdade produz autoritarismo. Em que sentido isso não é uma moeda direta? Pessoas acabam priorizando governos de matriz autoritária. Pessoas mais pobres tendem a votar em quem promete emprego, promete dinheiro. Pessoas que detém o poder há tanto tempo se sentem mas seguras com uma espécie de fantoche no poder. Nunca dá certo, não é? Podemos ver o que aconteceu com Jair Bolsonaro. Quando entrou, diziam ‘vai cair em um mês’, ‘vai cair em seis’, e ele ficou e mais forte do que já era. Tanto Bolsonaro quanto o fenômeno do bolsonarismo, que continua muito presente.

Entendo tudo o que você falou. Onde está o lugar do racismo na sociedade brasileira. Onde está a misoginia. São traços claros. Mas as coisas se misturam. O eleitorado de Jair Bolsonaro não é um eleitorado branco. Ninguém se elege no Brasil apenas com voto de pessoas brancas. As periferias urbanas votaram maciçamente em Bolsonaro, também a população evangélica. São pessoas que obviamente estavam procurando uma voz de autoridade, alguém que trouxesse ordem. E são também pessoas que sofrem com a desigualdade. Como é que essas peças se encaixam?

Marcadores sociais da diferença, como são sexo, gênero e raça, mas também geração, também região, classe social e religião funcionam numa outra dinâmica quando interseccionados. O que acontece quando todos esses elementos são interseccionados em contexto eleitoral?

Vamos falar da circunstância. Somos historiadores, eu e você. Não é possível falar do crescimento de Bolsonaro sem falar do crescimento das igrejas evangélicas. Ele fez um movimento na direção das igrejas muito por conta da Michelle. É um eleitorado muito vinculado à agenda conservadora. Esse é um eleitorado, você tem toda razão, negro. E votou maciçamente em Jair Bolsonaro. Agora, se pegarmos os resultados da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva um ano atrás, veremos que ele teve pesado o voto das mulheres negras.

A sociedade brasileira passa por um processo de letramento racial da maior importância. Pelos resultados do censo do IBGE, pela primeira vez a população parda ultrapassou a branca. Não é que houve um crescimento significativo. Houve letramento racial. As pessoas se dizem negras e pardas agora e não se diziam antes. Temos de colocar tudo isso nesse caldeirão para pensar o que era a circunstância de 2018 e o que foi a circunstância de 2022.

Outra face do autoritarismo é de um eleitorado que sempre vota nos outsiders. Bolsonaro não era outsider, mas se apresentou assim. O que ficou claro nesses quatro anos é que ele não era um outsider, que era um racista, que tinha políticas misóginas. Vamos analisar então a circunstância da Covid. A questão da vacina foi uma pedra angular para muitas pessoas mudarem o voto. Os fenômenos de uma eleição não são parados no tempo.

Não se pode esquecer da polarização, que ainda está presente na sociedade e que fez com que o resultado de 2022 fosse tão apertado. Estou aqui jogando vários elementos que são circunstanciais. É o caso do atentado contra Bolsonaro, em 2018. Muitas eleições giram radicalmente a partir de um drama, de uma tragédia que mobiliza o imaginário social. Sociedades imaginam coletivamente e por isso volto tanto a este tema. O imaginário é poderoso. Derruba ou levanta candidatos.

Vale então a gente começar uma conversa paralela a respeito do lugar da esquerda. O Centro está comprimido, e não só no Brasil. A esquerda, não. Ela está viva e passa por um embate interno. Há uma esquerda que ainda vê como grande questão a enfrentar a luta de classes. Que enxerga tudo essencialmente como um problema econômico. Mas há uma esquerda nova, que começa a ver a sociedade dividida por outras questões como gênero, como raça. Como você enxerga esse embate hoje? É uma briga que pressiona o governo Lula o tempo todo.

Brasília não é um território da paz e do conforto, não é? Mas você tem toda razão, existem muitas esquerdas. Vamos ficar com esse modelo de duas. Uma mais pressionada pelas questões de desigualdade de classe, que é fundamental, e uma que vem trazendo marcadores de identidade. Penso que classe social não é um marcador diverso de outros. Todos precisam ser interseccionados num país como o Brasil, em que a fome voltou. Nós que achávamos que tínhamos erradicado a fome, esse lado tão perverso da desigualdade.

Lula subiu a rampa no 1º de janeiro acompanhado pelos vários setores. Abraçou a questão da diversidade, da pluralidade social. Ele teve uma plataforma vinculada a essas questões e vai ter de se haver com elas. É o caso da pressão, por exemplo, por uma juíza negra no Supremo Tribunal Federal. Eu fui entre tantos e tantas brasileiros uma pessoa que defendeu e defendo. Mais experiências de mulheres no Supremo são importantes. Mais subjetividades de mulheres negras farão do nosso Supremo mais representativo da população brasileira.

É uma questão forte que o governo Lula não enfrentou e agora precisará lidar com outra, também muito forte. Vimos passar, em 29 de dezembro, a Lei do Não é Não. [Nota: a nova lei dá proteção a mulheres contra o avanço inconveniente de homens que se recusam a aceitar um não.] Os proprietários de lugares de show, de bares, terão de fazer treinamento com seus funcionários, de colocar suas regras nos sanitários, os que tiverem câmaras de vídeo terão de guardar o vídeo. Tudo isso é muito meritório. Mas a lei tem um parágrafo que afirma que ela não vale para as igrejas.

Há dúvidas sobre a constitucionalidade desse trecho. Há margem para ir ao Supremo.

Isso. Tem uma discussão importante aí, se pode excluir certos lugares. Essa discussão será importante para a sociedade brasileira. Ela é um termômetro do que vai acontecendo em Brasília, ou seja, você faz os gesto e recua. Que nem o passo do caranguejo, anda dois e volta um. É importante que a sociedade civil brasileira se manifeste, que vigie. Que elogie o que precisa ser elogiado e que pressione para que não exista exceção.

Deixa eu fazer uma provocação. Existe uma transformação a respeito de qual a ideia que o brasileiro faz de si. Entre os anos 1930 e agora, a gente cultivou muito a ideia freyreana do povo formado por três raças. As pessoas gostam muito de bater no Gilberto Freyre porque ele de fato foi o primeiro cara importante que, depois da Primeira República eugenista, se vira e fala ‘não, espera aí, a gente não é nada disso’. Mas ele não é o único. Tem do outro lado, na esquerda, o Darcy Ribeiro falando essencialmente a mesma coisa, não é? Somos uma sociedade mestiça. O IBGE marca os pardos como a maioria de nós. Mas o pardo é a mistura. Pode ser negro com branco, negro com indígena, branco com indígena. Eu me declarei branco e sei, por documentação, que tenho avós negras nos séculos 18 e 19. Sei, pelo meu código genético, que tenho sangue tupi. Eu sou branco. Mas, como a maioria dos brasileiros, sou mestiço. Precisamos reconhecer que a sociedade é racista, homofóbica, misógina. Precisamos ampliar a representatividade nas diversas estruturas de poder. Mas será que ao reconhecer o fato de que precisamos encarar o problema não estamos criando uma sociedade que se vê cada vez mais dividida, incapaz de perceber o que temos em comum? Havia um valor nessa percepção de que éramos um só povo. Há valor em celebrarmos nossa mestiçagem comum. Não?

Já brinquei com você uma vez, tenho quatro horas para responder, né? Olha, essa ideia é muito antiga. Na primeira metade do século 19, o [Carl Friedrich Philipp] von Martius já usou a metáfora do rio que caldeia as três raças. Mas havia uma especificidade. Conforme as águas vinham andando, elas ficavam brancas. Não ficavam mestiças. Ela foi usada pelo Mário de Andrade. O Macunaíma, se você pensar, entrou na poça da pegada do Sumé, que era encantada, e saiu branco, lindo. Seu irmão, como a água estava suja do pretume do herói, saiu da cor do cobre, e o outro só conseguiu lavar as palmas da mão e a sola do pé. O Freyre vem com uma teoria, nos anos 1930, que não é essa que é conhecida, que ele difundiu depois. Já estava em Casa Grande e Senzala. Não é a ideia da mistura de raças que gera o mestiço, é a ideia da mistura que gera o branco. Ele fala do sadismo do colonizador português, mas fala do masoquismo das mulheres indígenas e das mulheres africanas. Olha lá. É isso que define o tempo todo o domínio branco. Nunca foi sobre igualdade. É um modelo que privilegia uma cor.

Mas não citei o Darcy à toa. Ele fala da celebração de sermos mestiços.

Darcy Ribeiro falou que seremos uma Nova Roma. Essa possibilidade está dada na ideia do crescimento da categoria pardo no censo. Isto é algo que o movimento negro fez muito bem politicamente. Racializou o conceito de pardo, decidiu usar os termos do IBGE. Porque aí, se colocarmos juntos pretos e pardos, a população negra compõe a maioria no Brasil. Na minha opinião, este não é mais um projeto como o do Darcy, que é um projeto de mistura. É uma averiguação dos lugares sociais. Por isso Branquitude é uma construção social como Negritude. Só que Negritude virou um conceito de autoelevação e Branquitude virou um conceito de acusação. É o seu exemplo, Pedro. A despeito de você vir de uma família mestiça, você se definiu como branco. Porque no Brasil, como diz [o sociólogo] Oracy Nogueira, branco é uma aspiração social e é uma delimitação externa social. Ou seja, pessoas da elite, como nós, são brancas. No Brasil, como ele diz, cor é uma mistura de fenótipo com origem social. É disso que estou falando. Durante muito tempo, por conta do mito da democracia racial, você não podia fazer ativismo negro. Ativismo indígena também foi muito retardado no país por causa dessa ideologia.

Precisamos menos de rótulos e mais averiguação da realidade. Precisamos de um país em que as maiorias não sejam minorizadas. Nenhum dado mostra que esse país é mestiço para valer quando pensamos em representações políticas. Nós podemos inventar uma miríade de termos, mas a gente precisa lidar com essa desigualdade fundamental do Brasil. Nisso concordo com o movimento negro. É preciso dar letramento racial, sobretudo para as populações brancas.

Deixa eu dar uma última provocada. Última pergunta. Quero insistir no ponto em que concordo com você. Não existe, nas nossas estruturas de poder, seja nas empresas, seja no governo, não existe representatividade do que o brasileiro é. Nem em gênero, nem em raça. Sem política pública para enfrentar isso, não vamos resolver. Então política de cotas, Lei do Não é Não, mais mulheres no Supremo, incluindo mulheres negras, fazem parte do que é necessário. Precisamos ter essas experiências de vida representadas nas instâncias máximas de decisão. Aí concordamos inteiramente. Mas acho que estamos inventando um discurso público no qual perdemos a noção do todo. Do que é o povo brasileiro. Não só na direita, como também na esquerda, estamos tendo dificuldade cada vez maior de nos vermos como um povo que tem algo em comum. Essa divisão por identidades está criando uma divisão que é ideológica. É uma divisão que a gente escolhe ter pela maneira como escolhemos olhar para o mundo.

Os discursos de nacionalismo são também criações. Criações do final do século 19. A noção de povo é uma criação. Que povo é esse?

Claro. Mas esse é o ponto em que quero chegar. A gente escolhe se ver como um povo ou não.

Então espera aí. Na minha opinião, né? Se você pegar os grandes teóricos dos nacionalismos, eles chamaram atenção sobre como eram discursos de comunidades que se imaginavam. Discursos perigosos, como dizia o [historiador Eric] Hobsbawm. Perigosos por quê? Porque provocaram muita violência. Basta ver como o imperialismo europeu dividiu o mundo à sua imagem. Há uma série de teóricas, como a [pensadora feminista] Anne McClintock, que tem chamado atenção para o fato de que nacionalismo sempre teve gênero e raça. Nacionalismo era o homem, branco, heteronormativo europeu dividindo e legislando sobre o mundo. O que é a nossa História Universal se não a construção de um projeto de predomínio de uma Europa? Europa que foi uma construção do século 18, que foi colocada no centro dos mapas e foi colocada, inclusive, de forma maior do que ela tem de superfície. Essas são operações que têm história, como nossa construção de povo tem história. São questões que foram abafadas, silenciadas, apagadas, camufladas. Questões que vão aparecer e vão doer, porque sempre doeram para as pessoas que não se viam representadas.

Isso está criando divisão nesse mundo, sim. A gente pode lutar por um mundo com mais diálogo, mas um diálogo que não apague, como aconteceu durante muito tempo. As populações brancas, masculinas e heteronormativas onde, imagino, você se coloca, estão numa situação nada confortável, não é? Mas a gente tem que pensar o seguinte: durante muito tempo conforto ontológico era um privilégio da Branquitude. E agora estamos vivendo o que outras populações sofreram também.

A palavra sambada

Uma carta enreda o carnaval que a Portela levará à Marquês de Sapucaí no próximo dia 12 de fevereiro: “Luiza, minha mãe: seu corpo é o meu corpo, sua luta é minha luta, seu sangue é meu sangue, seu verbo é o meu verbo, sua voz é a minha, sua pele é a minha, seu coração é o meu, seu amanhã é o meu, o seu chão é o meu chão”. Teriam sido assim as palavras que o abolicionista Luíz Gama escreveu a sua mãe? No sonho da escola de Oswaldo Cruz e Madureira, sim. A “maior façanha” da negra revolucionária da Revolta dos Malês, no olhar do filho, teria sido sobreviver. “Que Orgulho, Luiza Mahin! A benção minha mãe”, diz o filho, orgulhoso.

O samba da Portela tem como base o livro Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, que alinhava, em ficção, escritos dispersos de Kehinde – personagem ficcional da negra africana nascida no Benin e traficada para o Brasil ainda criança. O tema do enredo é puro afeto de um filho pela mãe. Os carnavalescos André Rodrigues e Antônio Gonzaga imaginaram as palavras que o advogado e poeta certamente teria dito a Luiza Mahin se não tivesse sido separado dela ainda criança. Não se tem a certeza histórica de onde Luiza nasceu. Se veio de Benin escravizada ou se nasceu em Salvador. É certo de que ela pertencia a nação jejê-nagô, da tribo Mahi. Conta-se também que foi princesa. O que a Portela promete trazer é sonho, ficção, uma preciosidade literária que conversa com quem diz: “nasci quilombo e cresci favela”, ponto forte na letra da composição de Rafael Gigante, Vinícius Ferreira, Wanderley Monteiro, Bira, Jefferson Oliveira, Hélio Porto e André do Posto 7.

Essa veia literária será um traço marcante das avenidas, tanto no Rio como em São Paulo. É a volta da palavra ao samba. Um forte retorno do carnaval que conta histórias, após momentos em enredos nos quais predominaram patrocínios de empresas prefeituras, países com regimes autoritários - como foi o caso da Beija Flor que homenageou a Guiné Equatorial com a presença do ditador Teodoro Obiang na avenida, em 2015, e levou o carnaval. “Existe uma virada narrativa em curso e isso é muito bom”, comemora David Butter, jornalista, mestre em Religião na Sociedade Contemporânea, estudioso do carnaval e autor do livro De Sonho e de Desgraça: o Carnaval Carioca de 1919. “É uma volta do Carnaval como uma ópera móvel, ambulante. No final, você está sempre contando uma história que tem afinidade com outras histórias, outros formatos. Essa conexão sempre existiu e está voltando com mais força, o que é muito bom para a festa. É melhor do que enredos que, às vezes, tem-se dificuldade de entender”.

O modelo já deu certo para a Imperatriz Leopoldinense no ano passado. Por meio do cordel, a escola de Ramos venceu o carnaval ao fazer uma releitura do cangaço. Contou a história de forma mais livre, sem o rigor da própria História. Agora, a fórmula se repete no enredo assinado pelo carnavalesco Leandro Vieira. O samba da Imperatriz chega dizendo que a escola está com a “sorte virada pra Lua” e é inspirado na obra O Testamento da  Cigana Esmeralda, do poeta paraibano Leandro Gomes de Barros, um dos maiores nomes da literatura de cordel. O folheto foi escrito há mais de 100 anos. Com ele, a escola deseja evocar suas raízes nordestinas. Zé Katimba, um dos seus fundadores, era de Guarabira, interior da Paraíba.

Butter acredita que, talvez pela influência do que aconteceu no carnaval passado, com a vitória da Imperatriz, as chaves das narrativas estão indo no sentido de contar uma história na avenida, reimaginando, trazendo elementos de história e da ficção para as lacunas. Além disso, as narrativas que serão levadas aos sambódromos do Rio e de São Paulo não são isentas do caráter político. Só que a política vem em um sentido deslocado da crítica direta que se viu em carnavais passados. Quem não se lembra do vampiro com a faixa presidencial e com um esplendor repleto de dólares que a Paraíso do Tuiuti levou para a Marquês de Sapucaí, alusão à reforma trabalhista encampada pelo governo de Michel Temer? “A política acaba entrando, sempre”, considerou Butter.

Identidade brasileira

“Pelo menos três escolas falam, de alguma forma, de identidade brasileira, de cultura brasileira. Há um componente político nisso. A Grande Rio fala isso por meio da figura da onça, da antropofagia cultural. A Mocidade Independente de Padre Miguel fala do caju, mas como a fruta da Tropicália, em uma forma de trabalhar a cultura brasileira e as influências de fora. A Mocidade Alegre (campeã de São Paulo no ano passado) vem falando de Mário de Andrade. Então eu acho que elas chegam defendendo essa necessidade de se pensar o Brasil e o que é ser brasileiro. O que é identidade brasileira? O que é cultura brasileira? Existe uma cultura brasileira? São várias culturas?”, questiona Butter. “Só que esse componente político é mais difícil, você não carimba imediatamente que é política como ocorreu antes”, observou.

Da mesma forma que a Imperatriz Leopoldinense no Rio, a Mocidade Alegre quer repetir a fórmula literária. A escola do bairro do Limão, na Zona Norte de São Paulo, escolheu o enredo Brasiléia Desvairada: A Busca de Mário de Andrade Por um País. A ideia do samba, assinado pelo carnavalesco Jorge Silveira, é fazer uma viagem pelo Brasil com o modernista Mário de Andrade.

E é na sinopse da Mocidade Alegre que o brasileiro recebe outra carta de Mário de Andrade, adaptações de seus escritos em Turista Aprendiz, publicado em 1929, no qual ele propõe uma viagem pelo Brasil, quase um guia sobre a diversidade das regiões, costumes, tradições e manifestações culturais. “As sinopses já estão se transformando quase em um gênero literário”, comentou Butter, em conversa com o Meio. “A minha ‘Paulicéia’ parecia pequena e provinciana, em um desvario meu seria mesmo uma verdadeira ‘Brasiléia’. Um mosaico arlequinal de tanta gente, tantas vozes, tantos saberes, que se somam e misturam. Que nós, brasileiros, possamos sempre lutar e construir um novo país. Temos que dar uma alma a ele, isso é um sacrifício grandioso e sublime”, destaca a alegoria descrita por Antan.

E a “onça” da Grande Rio vem inspirada no livro Meu Destino é Ser Onça, de Alberto Mussa, publicado em 2008. Na medida em que reúne narrativas sobre o mito tupinambá, até então fragmentadas em várias fontes, o livro restaura esse traço da cultura indígena prevalecente na ocupação da Baía de Guanabara, em 1550. O enredo é dos carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora.

A Acadêmicos do Salgueiro entrará na Marquês de Sapucaí talvez com o enredo mais político, também baseado em uma publicação. A escola já chega avisando: “Eu aprendi o português, a língua do opressor”. Entre “aspas e negritos”, como canta o samba, a escola que nasceu no morro de mesmo nome, no bairro da Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro, quer cantar o “choro” ianomami, povo que nunca teve a palavra lusa como língua-mater. O registro do “grito” indígena está na obra A Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami, do líder indígena Davi Kopenawa e do etnólogo Bruce Albert, publicada originalmente em francês, na coleção Terre Humane, em 2010, e traduzida para o português em 2015, pela Companhia das Letras. O livro é referência indispensável para quem quer entender o contato predador desse povo originário do Norte do Brasil com o homem branco e as constantes ameaças desde os anos 1960.

Também embarcou na literatura de cordel a Unidos do Porto da Pedra, escola de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio. O samba Lunário Perpétuo: A Profética do Saber Popular reclama a valorização dos saberes populares e o enredo é baseado um pequeno almanaque Lunário Perpétuo, de 1594, do astrônomo e naturalista espanhol Jerónimo Cortés. Ilustrado com xilogravuras, o livreto reuniu tradições do povo nordestino e foi editado em Valência. O historiador Câmara Cascudo chegou a dizer que esse livreto “foi durante dois séculos o livro mais lido nos sertões do nordeste e informador de ciências complicadas”.

 

As promessas de 2024 em telonas e telinhas

A produção de Hollywood – tanto para longas metragens quanto para séries e programas de TV – foi atropelada no ano passado pelas greves de atores e roteiristas. Títulos aguardados, como Avatar 3, a sequência de Dirty Dancing e a nova temporada The White Lotus, só serão exibidos em 2025. Isso significa que vamos atravessar 2024 em um deserto de lançamentos relevantes? Pelo contrário. Há uma leva de novas atrações dos mais variados gêneros para serem vistas e até jogadas. Ação, intriga, fantasia, ficção científica... Vamos conferir algumas dessas promessas que o ano novo nos apresenta.

 

Eco  (Disney+)

Spin-off com a personagem Maya, de Gavião Arqueiro, Eco chega na noite de 9 de janeiro e traz de volta rostos conhecidos da série Demolidor, da Netflix. Vincent D’Onofrio reprisa seu papel como Rei do Crime e Charlie Cox vive o advogado-herói-cego. Não espere um tom sépia e a diversão familiar típicas da Disney. A narrativa acompanha a estética marcante da série da Netflix: sangrenta, violenta, sombria e pronta para satisfazer os que sentem falta da produção não tão super-heroica da tudum. Eco faz parte de um novo projeto da Disney para expandir a narrativa do MCU sem necessariamente acompanhar todos os personagens.

 

True Detective (HBO Max).

Jodie Foster estrela a quarta temporada de True Detective: Terra Noturna. Com os tradicionais episódios dominicais na HBO a partir de 14 de janeiro, as detetives Liz Danvers (Foster) e Evangeline Navarro (Kali Reis) precisam desvendar o desaparecimento de oito homens em Ennis, no Alasca. Gelo, frio, uma pitada sobrenatural e muito suspense aguardam. Essa é a primeira temporada dirigida e criada pela mexicana Issa López e sem roteiro do Nic Pizzolatto. Segundo as críticas já disponíveis, devemos finalmente ter uma temporada à altura da primeira.

 

Sr. e Sra. Smith (Prime Video)

Inspirada no icônico filme de Brangelina (Brad Pitt e Angelina Jolie para os leigos) de 2005, Sr. e Sra. Smith chega como uma série em 2 de fevereiro. Com roteiristas de Atlanta e atuações de Donald Glover e Maya Erskine, a série, dirigida por Glover e Francesca Sloane, utiliza a trama de espionagem para explorar metáforas sobre relacionamentos reais. Claro, na vida real, sua terapeuta de casal não seria Sarah Paulson – infelizmente. Diferentemente do filme, os personagens sabem que estão entrando num casamento de fachada com missões de alto risco de vida, mas se apaixonam. Uma série sobre trabalho em equipe, sangue, confiança, amor e solidão.

 

Duna Parte 2 (Veja no cinema, hein?)

A saga que Denis Villeneuve teve a coragem de adaptar, e até ganhar seis Oscars, retorna. O livro de Frank Herbert, de 1965, tive duas tentativas de adaptação fracassadas. A de 1970, idealizada pelo franco-chileno Alejandro Jodorowsky, era tão megalomaníaca que foi arquivada após três anos em produção – rendeu, porém, um documentário (trailer). Já em 1984 o notório David Lynch conseguiu lançar sua versão, massacrada pela crítica e um fracasso de bilheteria – embora tenha hoje seus fãs. Felizmente vivemos na mesma época que o grande Villeneuve, em que nem uma greve foi capaz de afetar - tanto - a segunda parte, que chega aos cinemas dia 1º de março, quatro meses após o planejado. O novo filme explora Paul Atreides (Timothée Chalamet) se unindo a Chani (Zendaya) e aos Fremen numa jornada de vingança contra os Harkonnen, que destruíram sua Casa e mataram seu pai, e aqueles que os ajudaram. O filme de proporções épicas conta com novas locações e novos personagens, interpretados por astros como Léa Seydoux, Florence Pugh, Austin Butler e mais.

 

Princess Peach Showtime (Nintendo Switch)

A Peach não é mais uma dama em perigo, afinal, ela mesma prendeu o Bowser no filme Super Mario Bros. Agora, a narrativa de protagonista da princesa continua no Princess Peach Showtime, que será lançado em 22 de março. Embora já tenha havido um jogo protagonizado por Peach há 20 anos, ele não foi bem recebido, porque os poderes dela estavam vinculados a suas emoções, necessitando que ela chorasse para executar certas ações. O novo jogo promete uma abordagem envolvente e divertida, apresentando a princesa como Peach Kung Fu dando chutes incríveis, empunhando uma espada em pose determinada e no papel de detetive. Como em 20 anos evoluímos, mas não tanto, ela também se transforma na Peach Patisserie para decorar bolos.

 

Fallout (Prime Video)

Fallout é, indiscutivelmente, um dos melhores jogos de RPG criados, com fãs fiéis desde 1997. Para uma adaptação da narrativa apocalíptica funcionar, Jonathan Nolan e Lisa Joy, da magnífica Westworld, da HBO, roteirizam e produzem a série, que estreia em 12 de abril. Fallout se passa anos após uma explosão de uma bomba atômica em 2077, em que o mundo se torna uma distopia radioativa. Los Angeles é agora um deserto com baratas e monstros gigantes, cãozinho companheiro, humanos deteriorados e os clássicos bunkers. O elenco conta com Kyle MacLachlan, Ella Purnell e Walton Goggins.

 

Star Trek: Discovery (Paramount+)

Com dez episódios, a quinta e última temporada de Star Trek: Discovery chega em abril. O final da série acompanha a capitã Michael Burnham e a tripulação da USS Discovery numa aventura épica pela galáxia para encontrar um poder ancião escondido há séculos. A caça ao tesouro traz civilizações e inimigos novos. Assim como nas duas últimas temporadas, a showrunner é Michelle Paradise, que promete uma conclusão digna para os fãs.

 

House of the Dragon (HBO Max)

A aguardada segunda temporada do spin-off da icônica Game of Thrones que trata sobre a queda da casa Targaryen chega no nosso inverno. A continuação da Dança dos Dragões será uma luta sombria e cheia de traições pela sucessão do trono de Westeros. A narrativa gradual da primeira temporada culmina na morte do rei, e o trailer nos confirma o que já sabemos: “Nenhuma guerra é tão sangrenta quanto uma guerra entre dragões.” Com planos para contar toda a história em quatro temporadas, George R.R. Martin admite que precisou cortar alguns detalhes, mas que está feliz com o resultado.

 

Hades II (Steam e Epic Store)

A continuação de Hades, Jogo do Ano de 2020, chega este ano. Enquanto o primeiro acompanhava a jornada de Zagreus, filho de Hades, tentando sair do submundo para chegar a sua mãe, Perséfone, o segundo conta a história de sua irmã. Melinoe precisará enfrentar o sinistro Titã do Tempo, Chronos, que escapou do submundo para iniciar uma guerra contra o Olimpo. Ainda não há uma data definida de lançamento, previsto para o início do segundo semestre.

 

Beetlejuice 2 (Também nos cinemas)

Tim Burton retoma, após 36 anos, a história do fantasma trapaceiro com gosto duvidoso para ternos. Estão de volta Michael Keaton como o personagem título, Winona Ryder como Lydia e Catherine O’Hara como Delia, madrasta dela. Dessa vez, Jenna Ortega participa do elenco como filha de Winona, completando três gerações. Jenna, que já possui um grande portfólio em filmes de terror, trabalhou com Burton em Wandinha, série da Netflix de onde também veio o roteirista Alfred Gough. Beetlejuice 2 estreia em 6 de setembro. Quem sabe, se a regra dos mundos dos mortos de que tudo vem em três for real, não teremos uma trilogia?

O ano começou com os mais diversos assuntos atraindo a atenção dos leitores. Confira os links mais clicados na primeira semana de 2024:

1. BBC Brasil: As incríveis imagens do telescópio James Webb.

2. Ponto de Partida: Choquei, Mynd8 e desinformação.

3. Panelinha: Peixe grelhado com molho de manteiga e limão

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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