Edição de sábado: A medicina da obesidade

Houve um tempo em que gordura era vista como sinal de saúde, daí a eterna preocupação das avós com a magreza dos netos. Mas há décadas sabemos que isso não é verdade. O excesso de peso – especialmente a obesidade, quando o Índice de Massa Corporal (IMC) está acima de 30 kg/m2 – está associado a uma série de outras doenças, como diabetes, hipertensão, problemas vasculares etc. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), ela é uma doença em si e não para de se disseminar. Entre os brasileiros, 22,4% têm IMC maior que 30, segundo a pesquisa Vigitel 2021, do Ministério da Saúde. Nos EUA, a situação é ainda pior: 41,9% dos americanos têm obesidade.

Ao mesmo tempo, poucas vezes tivemos tantas ferramentas para combatê-la. Desde a década de 1960, são feitas cirurgias bariátricas no país, com a popularização do procedimento a partir dos anos 1990 – hoje ele é feito pelo SUS ou coberto pela maioria dos planos de saúde. E, em 2017, abriu-se uma nova frente contra o excesso de peso, quando se constatou que o recém-lançado Ozempic, um remédio injetável contra a diabetes, funcionava como poderoso moderador de apetite. O medicamento e os congêneres que vieram depois, chamados análogos de GLP-1, só não prometem uma era de magreza generalizada por conta do preço proibitivo: em torno R$ 1 mil mensais.

Na verdade, o preço da magreza é a eterna vigilância. Essa não é uma afirmação retórica, e cabe aqui um depoimento em primeira pessoa. Tive sobrepeso desde os 8 anos de idade e, após os 30, cheguei ao limiar da obesidade mórbida, com todo o pacote que a acompanha. Em 2007, fui submetido a uma cirurgia bariátrica do tipo bypass ou “Y de Roux”, a mais comum no país. A operação foi um sucesso e, durante alguns anos, vivi a situação até então inusitada de ser “aquele sujeito magro”. Mas bastaram uma série de problemas pessoais e uma boa dose de relaxamento para que obesidade e suas comorbidades reivindicassem o território perdido.

Foi quando descobri que meu caso não era incomum, com cerca de 40% dos bariátricos recuperando em parte ou totalmente o peso anterior. A obesidade é uma doença crônica e, como tal, exige combate constante e, às vezes, um ataque mais radical. No ano passado, fiz uma nova cirurgia, cujos resultados estão sendo igualmente animadores.

Novo entendimento, novas técnicas

Passar por duas cirurgias bariátricas em 16 anos deixa claro o quanto o procedimento evoluiu. No caso da técnica laparoscópica, o paciente que passava quatro noites internado com alimentação intravenosa agora tem alta no dia seguinte à operação e já inicia a dieta líquida ao chegar em casa. A liberação para exercícios físicos, como uma caminhada, também chega mais cedo, acelerando a troca de gordura por massa muscular e o emagrecimento.

Ex-presidente e hoje integrante da Comissão Científica da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica, o médico Maurício Emmanuel explica que, tanto quanto as técnicas cirúrgicas, mudou o próprio entendimento da obesidade enquanto doença e o impacto do procedimento sobre ela. “Nós achávamos que, com essa operação, iríamos resolver a obesidade completamente”, conta. “Hoje, nós sabemos que não. É uma doença crônica e esse paciente vai seguir em tratamento ao longo da vida com uma operação e medicamentos ou mesmo com novos procedimentos cirúrgicos.” Emmanuel revela que cerca de 20% dos pacientes que opera hoje já se submeteram a uma bariátrica anterior.

No progresso dos procedimentos, algumas técnicas ficaram para trás, em especial a banda gástrica ajustável, um anel de silicone colocado pouco abaixo da junção entre o esôfago e o estômago e que isolava uma pequena parte deste, mantendo, porém, toda a estrutura estomacal. Dado o tamanho, o “estômago isolado” se enchia rapidamente, dando a sensação de saciedade.

O cirurgião explica que não se conhecia plenamente na época o funcionamento da grelina, o hormônio da fome, produzido por células do próprio estômago e do pâncreas. “Esse paciente tinha uma restrição mecânica à ingestão, mas uma produção normal do hormônio, o que o impulsionava a comer mais”, diz. Pressionado pela ação hormonal, o paciente apelava para porções fracionadas frequentes ou dietas líquidas calóricas. “Passava o dia todo tomando leite condensado, que não era contido pelo anel. O emagrecimento fracassava. Por isso não se usa mais retenção mecânica em cirurgias bariátricas.”

A ‘injeção mágica’

A mais recente revolução do combate à obesidade veio na ponta de uma agulha. Em dezembro de 2017, a Agência de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês), a Anvisa de lá, aprovou a comercialização do Ozempic, um remédio injetável para tratamento de diabetes. Desenvolvido pelo laboratório Novo Nordisk, ele tem como princípio ativo a semaglutida. Não demorou para médicos e pacientes perceberem que as injeções semanais tinham um outro efeito: emagrecimento rápido, com ampliação do tempo de digestão e estímulo à sensação de saciedade.

Logo vieram outras drogas do mesmo tipo, como o Wegovy, do mesmo laboratório, mas voltado especificamente à perda de peso. O Novo Nordisk tem ainda o Saxenda (liraglutida). Já o Eli Lilly lançou o Zepbound para obesidade e o Mounjaro para diabetes, ambos tendo como princípio ativo a tirzepatida. À exceção do Zepbound, que está em análise, todos já passaram pelo crivo da Anvisa.

O Ozempic provocou uma revolução a ponto de se tornar quase um nome geral para esse tipo de medicamento e ainda gerar expressões como “Ozempic face”, quando o emagrecimento rápido faz a pele do rosto “desabar”.

Mas nem tudo são flores, a começar pelo já citado preço. Diferentemente da cirurgia, que promove uma mudança física, o efeito dessas medicações está associado a seu consumo. Um estudo realizado em cinco países com 1.961 adultos de IMC acima de 30 mostrou que, em 68 semanas, a semaglutida proporcionou um perda média de 17,3% do peso corporal dos pacientes. Após esse período, a medicação foi interrompida e, em 120 semanas, as pessoas haviam recuperado 11,6% do peso inicial.

Como lembra a endocrinologista Priscilla Cukier, do Hospital Santa Catarina - Paulista, a obesidade requer vigilância permanente. “A medicação muitas vezes é para o resto da vida”, diz. “Uma vez que se inicia um tratamento para obesidade, ele não deve ser retirado precocemente, deve ser mantido, e há necessidade de um acompanhamento regular.”

Os dois em um pacote

Separadas, a cirurgia bariátrica e as injeções são eficientes, mas podem ser complementares. Segundo Emmanuel, os remédios também fazem parte do arsenal dos cirurgiões, de acordo com o estágio da doença e da recuperação do paciente operado. “Em 15% dos casos, o emagrecimento pós-cirúrgico é muito lento, podendo chegar a um platô, quando a perda de peso estaciona”, explica. “Nessas situações, a semaglutida pode ser usada para retomar o emagrecimento e permitir que o paciente volte a perceber o progresso. Mas isso depende da análise clínica para cada pessoa.”

Essa também é uma tendência nos EUA, onde 16% dos pacientes bariátricos receberam depois da cirurgia a prescrição de algum análogo de GLP-1 em 2023.

As razões do coração

O Ozempic está se tornando uma “arma” no arsenal de médicos das mais variadas especializações, uma vez que os efeitos da obesidade se desdobram sobre praticamente todo o organismo. Um dos casos é a cardiologia. O SELECT, um estudo feito ao longo de cinco anos com 17,6 mil pacientes com mais 45 anos, IMC acima de 27 e histórico de problemas cardíacos, mostrou uma redução de 20% nos chamados desfechos maiores, como morte, infarto e AVC, naqueles que receberam a semaglutida.

“Isso é muito significativo”, opina a cardiologista Fernanda Tavares, do Hospital Cardiológico Costantini, em Curitiba (PR). “Foi um estudo ao longo de cinco anos, mas a curva de desfechos maiores entre os pacientes medicados e os que receberam o placebo começou a se separar já com 16 semanas. Não fosse pelo preço, esse tipo de medicamento estaria sendo usado em muito mais larga escala dentro da cardiologia”, diz ela.

A médica ressalta que os efeitos colaterais cardiológicos foram menores nos paciente que receberam o remédio que no grupo do placebo – ao contrário dos efeitos adversos gastrointestinais presentes em 16% dos pacientes com a semaglutida e 8% dos com o placebo.

Alvo de preconceitos

Além dos problemas no organismo, a pessoa com obesidade está sujeita a pressões psicológicas e preconceitos. Há na sociedade uma cobrança por padrões estéticos não raro irreais e uma tentativa de descaracterizar o excesso de peso como uma doença, sob o manto a princípio louvável do combate à gordofobia.

“Tanto o ideal estético como a naturalização da obesidade são formas inflexíveis de pensar a relação que foi estabelecida com a alimentação”, avalia a psicóloga Renata Carbonel, da Clínica Revitalis, no Rio de Janeiro. “Cada uma radical ao seu modo, ocupando polos que inviabilizam outras perspectivas.” Segundo ela, é fundamental que a pessoa entenda o que emagrecer representa e o que se busca nesse processo, que demanda disciplina, dedicação e renúncia.

O preconceito se faz sentir até nas estruturas de saúde. Ainda há uma resistência a se reconhecer o caráter crônico, portanto, passível de reincidência, da obesidade. “Muitas vezes o paciente reincidente não culpa a doença, mas a si mesmo”, diz Emmanuel. “Mas é preciso encarar a obesidade como um câncer. Hoje, o paciente é tratado e ‘curado’, mas, dentro de determinadas condições, vai reaparecer mais na frente. Mas não há uma receptividade, por exemplo, de planos de saúde para esses casos.”

Além disso, ele lembra que não há por parte do poder público o mesmo empenho em campanhas para melhorar a informação sobre os riscos dos alimentos multiprocessados, ao contrário do que acontece com o tabaco.

Mudança de hábito

A informação sobre o que se come, o cuidado com a alimentação e a atividade física, no fim das contas, seguem sendo fundamentais, independentemente do método usado para emagrecer. A nutricionista Ana Paula Cony, da Clínica Neurovida, no Rio, ressalta a necessidade de quebrar o hábito de consumir alimentos ultraprocessados e fast food em geral. E não só por conta da obesidade. “Nós vemos aqui na clínica uma grande quantidade de adolescentes com síndrome de ovário policístico”, diz. “Elas chegam com resistência periférica à insulina, com quadros de pré-diabetes que exigem remédios normalmente prescritos para adultos. Já tivemos até adolescentes com esteatose hepática (gordura infiltrada no fígado).”

A mudança nos hábitos, na forma de pensar e de se relacionar com a comida são a chave para um emagrecimento saudável e duradouro, lembra a nutricionista. “Se não, engorda tudo de novo ou mais, pois não existe milagre”, conclui Ana.

A volta da filha pródiga

Existe uma cena que não sai da cabeça dos petistas. De todos, não só os das tendências do partido mais à esquerda. Foi um golpe difícil para os integrantes da legenda ver a então senadora Marta Suplicy, na época no MDB, entregando um buquê de lírios e rosas para a advogada Janaina Paschoal, em plena sessão do Senado para julgar o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. Com desenvoltura e risos, ela ainda tirou uma rosa do luxuoso ramalhete e ofertou ao advogado Hélio Bicudo, como quem diz: “tem para você também”.

Marta poderia não ter tripudiado, poderia ter sido discreta em seu voto em favor da condenação da ré, Dilma. Mas não. Diante dos olhares perplexos de vários membros da cúpula do partido que estavam ao lado da presidente naquele 30 de agosto de 2016, a ex-petista optou por explicitar o lado que escolhera. Optou por praticar o máximo de gentileza para com os dois advogados autores do pedido de impeachment. Quis agradar os algozes do governo do seu antigo partido, do qual ela mesmo havia feito parte como ministra da Cultura.

Agora, a volta de Marta ao PT tem gosto daquela famosa frase do tetracampeão Mario Jorge Lobo Zagallo, que morreu na semana passada: “Vocês vão ter que me engolir”. E vão mesmo. Principalmente porque a deglutição vem pelas mãos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que reedita seu velho costume de impor ao partido as costuras políticas de sua imaginação. Sempre foi assim. Agora não será diferente.

Lula se fia no faro político e em pesquisas qualitativas do PSOL que indicam que Marta tem, reconhecidamente, a fama de ter feito a melhor administração de São Paulo. Ela é querida da periferia, dizem as consultas, ainda que existam dúvidas de que essa periferia compareça em votos para a chapa com Boulos devido a presença de Marta como vice. Em 2016, por exemplo, a então candidata pelo MDB à prefeitura terminou em quarto lugar, com 10,14% dos votos válidos. Naquele ano, João Doria venceu a eleição em primeiro turno pelo PSDB.

“Pode ser que a imagem de Marta só funcione atrelada ao PT para esse segmento da população. Os feitos de sua administração para essas áreas também são reconhecidos como feitos do PT. A população percebe, por exemplo, a criação dos CEUs (Centro Educacional Unificado), que é do Haddad. Na época, a população não gostou de Marta concorrendo pelo MDB. Ela tem a marca do partido”, avaliou um interlocutor do presidente, em reservado. Além dos centros de ensino superequipados que Marta cuidou de espalhar em bairros pobres de São Paulo, outra marca que a campanha pretende enfatizar é a integração dos ônibus da cidade por meio do Bilhete Único.

Marta, na opinião de petistas mais ligados a Lula tem a capacidade de dar um ar de maior serenidade a Boulos. “Uma normalidade” perante a setores que ainda enxergam o psolista, ex-líder do Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST), como um integrante da esquerda radical. Ela dará peso político à candidatura e ajudará a combater o “fantasma Boulos”. “Aquele que vai invadir sua casa e levar uma família de sem-teto para morar na sala”, explicou um petista. O eleitor de Boulos é de classe média. Marta teria penetração nas classes baixas e alta. Uma combinação de Lula acredita que pode funcionar.

Traição ou Lealdade?

As razões de Lula incluem, porém, um ingrediente que soa meio afrontoso dentro do partido que a taxa de traidora: Marta é leal. Não ao partido, mas a Lula. “Ela sempre trabalhou na linha de que Lula não era igual ao resto do PT. Ela sempre tratou Lula como uma personalidade e não como um articulador político do partido”, disse ao Meio, também sob reserva, um petista histórico.

Neste contexto é que o entorno do presidente procura rebater internamente as críticas com a ideia de que “Marta já teria sido perdoada”, ou “se redimido” no apoio dado na construção da chapa Lula/Alckmin e durante toda campanha de 2022. Entre muitas participações, algumas discretas, outras nem tanto, Marta e seu marido, o empresário Márcio Toledo estiveram firmes ao lado do petista contra Bolsonaro. Da gestação da união do petista com o ex-tucano até o segundo turno. Foi em um jantar na casa de Marta que também se começou a costurar a aliança com Simone Tebet (MDB), com quem ela já tinha proximidade desde o processo de impeachment de Dilma.

A resistência no PT, no entanto, ainda existe, mesmo com a consciência de que não adiantará em nada perante a liderança de Lula. A única corrente a marcar posição contrária até o momento foi a Articulação de Esquerda, presidida por Valter Pomar, que defende que o diretório nacional não aceite a volta dela aos quadros do partido. “Para que Marta volte ao PT, não basta o apoio de quem quer que seja, mesmo que esse alguém seja o presidente da República e principal liderança do Partido. Segundo o estatuto do PT, cabe uma decisão formal a respeito, decisão que compete à direção do partido”, escreveu, em seu blog. “O motivo principal é o seguinte: Marta traiu seu eleitorado e seu Partido, ao participar do golpe contra Dilma”, enfatizou Pomar. “Todos pensam o mesmo. Todos estão tristes com a volta dela. A diferença é que nós tornamos a nossa crítica pública, por meio da nota”, disse uma integrante da AE, ao Meio. Já Eduardo Suplicy, ex-marido de Marta, defende que haja prévias para a definição de quem será o vice de Boulos.

E, à revelia de todas essas críticas, Lula já tem o caso como acertado, tanto com o PSOL, quanto internamente. Na sexta-feira (12/1), o presidente cancelou uma agenda que tinha no Rio de Janeiro com militares da Marinha para seguir para São Paulo, sem compromissos públicos. Uma reunião com Marta e Boulos, segundo fontes do PSOL, está marcada para o fim de semana.

Lula decisivo

O quanto o apoio de Marta a Boulos poderá se reverter em votos ainda é uma incógnita. Mas as pesquisas do PSOL indicam que o fiel da balança será Lula no palanque. A coordenação da campanha tem em mãos pesquisas qualitativas que indicam que apenas três nomes seriam capazes de agregar votos em São Paulo em todos os nichos: o principal é Lula, seguido por Fernando Haddad e pelo governador Tarcísio de Freitas (PL) para a direita. “Lula no palanque é mais importante do que qualquer vice que se possa imaginar. Lula é hoje o fator decisivo”, disse um integrante da coordenação da campanha de Boulos.

Quanto a Marta, a campanha psolista avalia, com base nessas consultas, que ela não agrega votos a Boulos nesse momento, mas que não existe nenhum passivo de imagem que possa prejudicar. Além disso, a estratégia de lembrar o legado antigo ao longo de toda propaganda eleitoral, de mais de 20 anos, poderá trazer eleitores. Boulos ainda investirá em ter no palanque todos aqueles do campo progressista que administraram: Haddad, a deputada Luiza Erundina e a própria Marta. Essa reunião tem o objetivo de se contrapor a um ponto negativo identificado pelas avaliações qualitativas: o de que ele não tem experiência administrativa. “Não tem, mas está com quem tem. Essa é a ideia”, disse o um dirigente do PSOL.

Areia Branca, a síntese da transição energética

A vista é de tirar o fôlego. A poucos quilômetros das primeiras casas do município de Areia Branca, no Oeste do Rio Grande do Norte, as imensas construções brancas ganham a paisagem paradisíaca, singrando o horizonte de céu predominantemente azul – um azul forte, quente como o clima na região. São dezenas de torres com cerca de cem metros de altura, tendo hélices pouco menores que mantêm uma rotação constante. Mais de perto, é possível ver as cabines que operam as estruturas, pequenas em meio a tanto aço. Em um dia de sorte e com muito esforço, podemos ainda ver alguns dos trabalhadores do complexo eólico que hoje circunda a cidade. Pendurados a dezenas de metros, parecem formigas escalando o pé de uma cadeira gigante, com as cabeças brilhando por causa dos capacetes fluorescentes que usam. 

A maior parte desses trabalhadores é da cidade. Elevada à categoria de município em 1933, Areia Branca passou um bom bocado da sua história limitada à indústria salineira. O próprio nome da cidade deriva da “Costa Branca”, como é conhecido o litoral oeste potiguar, pelas imensas áreas de extração do condimento. Nos anos 1990 e 2000, porém, a força de trabalho local foi redirecionada à indústria do petróleo. Equipes de campo da Petrobras usavam a estrutura da cidade como base para prospecções no entorno da região, e era comum que os macacões laranja colorissem as ruas do local. Muitos moradores integraram as equipes de campo, que se dividiam em quatro: a turma da frente, que abria picadas na mata para dar entrada às caminhonetes; a turma da sonda, que atuava na perfuração e instalação de dinamites três metros abaixo do solo; a turma da sísmica, que realizava as explosões e analisava os primeiros dados; e a turma da topografia, que fazia as medições e definia a localização para os cavalos de força, as estruturas que bombeiam o petróleo para cima. 

Nivaldo Moura, de 62 anos, fez parte de algumas das primeiras equipes da Petrobras que chegaram ao oeste potiguar, em 1992. “Eu entrei na turma da sonda, a convite de um funcionário. Muita gente entrou, hoje estão quase todos aposentados”, diz o agora chefe de campo para explorações offshore. Além de empregarem a força local, as equipes movimentavam o comércio, os hotéis e os bares. Moura ficou na área fóssil, mas garante que o impacto da eólica é maior. Mais pessoas são envolvidas nos processos estruturais das turbinas, mais capacidade técnica é requerida, e a estrutura para chegar aos parques eólicos precisa ser mais bem construída, pois os equipamentos são mais frágeis que os usados pelos petroleiros. Como as pás e a própria torre de sustentação chegam em imensos caminhões de pelo menos dez eixos, escoltados por dois carros de passeio, as estradas têm de ser melhores, lisas, com manutenção constante. Enquanto as equipes da Petrobras se mantinham na cidade por algumas semanas – meses, no máximo –, o complexo eólico segura o corpo profissional por maiores tempos em suas estruturas, para monitoramento, manutenção e até novas empreitadas. 

‘O trabalho é mais satisfatório’

Não é pouca a importância de Areia Branca para a energia renovável brasileira. Por lá, com os três parques eólicos envolvidos na produção e distribuição de fonte limpa, são gerados cerca de 3 mil MWh por mês, boa fatia dos quase 8 mil gerados pelo Rio Grande do Norte inteiro – sendo o estado o líder em geração de energia eólica no Brasil. A cidade, lar para 24 mil pessoas, já se tornou uma referência em mão de obra especializada. Funcionário do parque eólico em Ponta do Mel, vilarejo litorâneo na circunscrição de areia-branquense, Dennys Nunes, de 46 anos, seguiu as tendências econômicas da região. Trabalhou com sal e petróleo e agora está na energia renovável. 

Como terceirizado a serviço da Petrobras, usou os conhecimentos elétricos para a manutenção dos cavalos de força – as “UBs” – que pipocavam no solo da caatinga potiguar entre Mossoró, a “capital do Oeste”, e Areia Branca. A partir de 2011, com o início dos trabalhos no pré-sal, conta Nunes, a área petrolífera decaiu no Rio Grande do Norte, derrubando também os salários do setor. “Quando começou a eólica, o petróleo estava em decadência por aqui. As empresas foram fechadas, a Petrobras estava desinvestindo. Os salários agora vão de R$ 5,5 mil a R$ 7 mil. Na Petrobras, as terceirizadas pagavam de R$ 1,5 mil e R$ 2 mil”, conta o eletricista. Além da remuneração, há outra vantagem de trabalhar com energia limpa: a versatilidade. Enquanto mexia apenas com a parte elétrica das UBs há cerca de uma década, Nunes hoje trabalha na parte de Operação e Manutenção (O&M) das turbinas, o que, segundo diz, “é um aprendizado maior. Trabalho com mecânica, elétrica, segurança do trabalho. Em O&M, a gente se suja de graxa, sobe na torre, faz tudo. O trabalho é mais satisfatório.”

No Nordeste se concentra 90% da energia eólica gerada no país. Outros 8% estão no Sul, e as outras regiões dividem os cerca de 2% restantes. A oferta e a demanda pelos ventos fortes que sopram “onde o vento faz a curva”, já que Areia Branca fica na volta que o continente faz para subir em direção ao Caribe, ajudam a formar uma espécie de hub eólico na Costa Branca. “Muita gente se qualificou na cidade. Hoje você encontra areia-branquenses em qualquer lugar do Brasil, trabalhando como especialista nisso, alguns até fora do país”, aponta Nunes. A exigência de cursos especializados – algo inexistente à época do domínio do petróleo – girou outra roda da economia local, a do conhecimento técnico. Cursos com siglas como NR-10 (uma norma do Ministério do Trabalho sobre segurança em locais elétricos) e GWO (Organização Global dos Ventos, em inglês) específico para profissionais de eólicas, que especializa o profissional para combate a incêndios, primeiros socorros, manuseio e trabalho em grandes alturas, já formaram diversos profissionais na cidade e na região. 

A nova ordem mundial

Em um cenário de aumento da temperatura média do planeta e recordes de calor, a expansão de fontes renováveis de energia é mais que um empreendimento, é uma necessidade – e alguns países tomam a liderança neste movimento. Nesta semana, a Agência Energética Internacional (IEA, na sigla em inglês) divulgou relatório no qual aponta que, entre 2022 e 2023, houve 50% de aumento na produção e na capacidade energética limpa ao redor do mundo. Além de representar o maior crescimento em 20 anos, é um alento quando se observa que o  mundo ficou um pouco mais próximo de atingir a meta estipulada na COP28 de triplicar a produção energética limpa até 2030. Brasil, EUA e a União Europeia, enquanto bloco, registraram aumentos recordes na capacidade energética limpa. Por mais que, por aqui, o incremento seja puxado pelos biocombustíveis – área na qual a Petrobras investe há quase duas décadas –, outras fontes, como a eólica e a solar, contribuem para que o país diversifique sua matriz de geração.

A contribuição do Nordeste catapultou o Brasil como potência eólica. De um 12º lugar em 2012, quando começaram as primeiras obras nos arredores do Oeste potiguar, o país saltou para a sexta posição no ranking global do setor, em 2022. Ainda que não tenha veículos elétricos suficientes para justificar uma mudança na própria cidade, apenas um posto de gasolina sobrevive em Areia Branca. O consumo residencial no município já é feito pelo complexo eólico, que tem capacidade para abastecer cerca de 200 mil pessoas anualmente com sua produção – cuja capacidade máxima foi atingida em 2015, logo no segundo ano de operação. Geradores a diesel, por exemplo, comuns na cidade até a década de 2000, já não são mais vistos, e os frequentes apagões causados pela precariedade da rede de distribuição da eletricidade usual são coisas do passado. Mais simples e mais “leve”, a distribuição das eólicas garantiu até mesmo a autossuficiência do local, agora independente da rede estadual. Ao fim e ao cabo, em um lugar onde a água é recurso raro desde os primórdios do povoamento, não depender de hidrelétricas é um salto para o futuro. No presente.

Semana de quase equilíbrio entre assuntos leves como um inseto bizarro e densos como uma ameaça à democracia. Confira as mais clicadas pelos assinantes do Meio:

1. BBC Brasil: Fotógrafo captura imagens microscópicas de insetos ‘alienígenas’.

2. X: Os momentos hilariantes de Jennifer Lawrence em entregas de prêmios.

3. Panelinha: Quiche de cebola caramelizada com queijo.

4. Meio: Um ano depois, o que o 8 de janeiro causou ao Brasil.

5. Spiegel: O trabalho infantil na coleta do açaí na Amazônia.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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