Sobre conspirações e antissemitismo

Teorias conspiratórias aparecem para dar falso sentido a momentos de caos. Estamos habituados a olhar para as da direita, mas a esquerda também as tem

A frase do presidente Lula, no relançamento da refinaria de Abreu e Lima, não é nova mas permanece surpreendente. “Tudo que aconteceu neste país foi uma mancomunação entre alguns juízes e procuradores, subordinados ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos, que queriam e nunca aceitaram o Brasil ter uma empresa como a Petrobras.” Foi na quinta-feira. Aí, no domingo, o ex-presidente do PT José Genoíno estava numa live do DCM, um site próximo ao partido. À vontade, em um determinado momento, ele pediu o “boicote de empresas de judeus” por conta do conflito entre Israel e palestinos. As duas histórias podem parecer não relacionadas. Mas são. Dizem muito sobre como o PT constrói sua ideia de como o mundo funciona. E, por isso mesmo, é preocupante.

Teorias conspiratórias não têm uma estrutura característica que se repita de forma que dê para disseca-las assim. Mas sabemos um bocado sobre elas.

Elas aparecem com mais frequência, nas sociedades, perante eventos intensos ou traumáticos. Os últimos dez anos da política brasileira foram exatamente isto: intensos, traumáticos.

Elas se dedicam a dar sentido ao caos. Quando há eventos demais, não necessariamente conectados, que quebram a sensação de que o mundo tem alguma ordem, teorias conspiratórias trazem de volta ao menos a sensação de ordem. Ligam pontos. Para isso tomam toda sorte de liberdade. São histórias muito bem estruturadas que dão conforto. Explicam o que não tem explicação clara.

Elas se ancoram na desconfiança de quem está em posição de autoridade. Põem foco em detalhes que na verdade têm pouca importância. Quem as abraça se torna muito resistente a abandoná-las.

Nos últimos anos pusemos nós muito foco nas teorias conspiratórias que a direita abraça. A esquerda também as tem.

Gente demais no comando do PT, assim como no de partidos próximos como PSOL e PCdoB, têm uma explicação detalhada sobre o que se deu no Brasil entre as Jornadas de Junho de 2013 e a eleição de Jair Bolsonaro. Uma explicação detalhada que não fica de pé.

Toda teoria conspiratória junta informações reais não relacionadas e sua criatividade está na construção de elos. As peças reais que compõem essa história são duas.

Em 2009, juízes federais e procuradores fizeram cursos patrocinados pelo governo americano, que incluíram agentes dos FBI entre os professores, sobre a investigação de crimes de lavagem de dinheiro. Uma das conclusões dos EUA, após os atentados do Onze de Setembro, era de que as rotas internacionais deste tipo de operação financeira foram chaves para viabilizar os ataques. A União Europeia, também vítima do terror islâmico, chegou à mesma conclusão. As políticas externas de ambos, desde então, se mobilizaram contra estes crimes. Mesmo a Suíça, conhecida pela leniência com que abria contas correntes numeradas, apertou seus critérios. A colaboração entre órgãos investigativos de diversos países se ampliou. O juiz Sergio Moro foi um dos que fizeram este curso e se beneficiou desta nova infraestrutura internacional de investigação. Como a lista dos alunos fazia parte de um dos vazamentos do Wikileaks, ali no meio de centenas de milhares de outros documentos diversos, a informação ganhou uma aura de descoberta sensacional. “Wikileaks revela treinamento de Moro nos EUA” é título que se encontra em centenas de páginas da internet.

A outra informação real está no vazamento de documentos da CIA por Edward Snowden, em 2013. Estes, sim, eram secretos. E, entre as revelações, a de que a Agência Central de Inteligência tinha uma escuta do celular da presidente Dilma Rousseff e de que a Petrobras, na época a quarta maior petroleira do mundo, era alvo de espionagem. A notícia é grave, foi encarada com as devidas queixas diplomáticas — mas, de extraordinária, tem pouco. Revela, em essência, que a CIA busca informações sobre como decidem presidentes brasileiros e se interessa pelo negócio do petróleo. Não deveria surpreender ninguém. É exatamente isto que agências de espionagem fazem. E quem tem capacidade de espionar no mundo, espiona. Se o Brasil tivesse este tipo de capacidade, faria o mesmo.

As gigantescas manifestações de 2013, a vitória suada contra Aécio Neves no ano seguinte, as investigações da Lava Jato, as passeatas de 2016, o impeachment de Dilma seguidos da ilegibilidade e prisão de Lula produziram um arco de cinco anos muito, muito intenso e traumático para o PT em particular, para a esquerda em geral. No contexto maior, o colapso econômico de um país que teve a sensação de que estava para decolar. Como toda série de eventos concentrados que envolvem mudanças bruscas de humor da sociedade, entre sociólogos, historiadores e cientistas políticos ainda há extenso debate sobre como dar sentido ao todo. Não há, ainda, uma boa explicação. É sempre assim com história recente.

E é exatamente neste tipo de cenário que teorias conspiratórias florescem. Elas dão uma cadeia lógica de acontecimentos capaz de explicar tudo que, simultaneamente, confirma a compreensão de mundo de quem a abraça. Começam, sempre, na busca de quem esteja em posição de autoridade — para a esquerda, os EUA. Assim, o curso de Moro e a espionagem da Petrobras se tornam evidência de planejamento. Este é o salto necessário de ser feito: partir do princípio de que os EUA planejaram o tombo brasileiro e executaram a operação deixando quase nenhuma evidência. Tudo durante o governo de Barack Obama — aquele que chamou Lula de “o cara”.

Pois: o governo americano não queria que o Brasil decolasse. Como a chave para o deslanche econômico era o pré-sal, espionou a Petrobras, de onde extraiu informações que alimentaram a Lava Jato. A espionagem americana está, para os conspiracionistas, por trás da criação de instabilidade em 2013 e coordenou, através de um juiz que era seu agente, a inviabilização do governo Dilma e o bloqueio da eleição de Lula, em 2018.

Quem conversa o suficiente com líderes petistas já ouviu de vários alguma versão desta história. É sempre contada de forma vaga e quem não compra os detalhes é visto com a condescendência dos iluminados que observam os ingênuos. É também uma história que convenientemente exime o partido e seus líderes de responsabilidade tanto pela crise econômica quanto pela corrupção que deixou um rombo de mais de R$ 40 bilhões na Petrobras.

Mas não é apenas uma desculpa ardilosamente construída. Eles acreditam nela. Eles a repetem uns aos outros por vezes o suficiente que saem convencidos todos. O fato de que acreditam nesta história gera duas consequências.

A primeira, e a mais evidente, é o impacto na política externa brasileira. O ex-chanceler, hoje assessor Celso Amorim, já defendia uma estratégia geopolítica Sul-Sul desde o primeiro governo Lula. Mas o discurso, neste terceiro governo, tem um dom mais duro e mais desafiante. A política externa brasileira se tornou ostensivamente antiamericana. É quase como se, perante uma crise internacional qualquer, o Brasil se aliasse imediatamente ao lado oposto das simpatias dos EUA. Mesmo que, no lado oposto, esteja não se indignar com a brutal invasão da Ucrânia pelo governo russo de Vladimir Putin.

A segunda consequência é mais sutil: alimenta o antissemitismo de esquerda.

Antissemitismo não é como racismo contra negros, com o qual estamos mais habituados no Brasil. A história que ancora o racismo contra negros se dá no considerar pessoas de ascendência subsaariana intelectualmente inferiores. Não é assim que o antissemitismo opera.

O antissemita trata o judeu como estrangeiro — é uma pessoa que nunca faz parte do povo de sua terra. Nunca é de todo brasileiro, alemão ou francês. Ele sempre, secretamente, representa algum interesse externo difuso e, claro, ligado ao poder e ao dinheiro.

É exatamente isto que a frase de José Genoíno diz. “A ideia de boicote a determinadas empresas de judeus” mostra que, de alguma forma, ele as vê não como empresas de brasileiros. Mas como representantes, no Brasil, do governo de Benjamin Netanyahu em Israel. Há pouco mais de um ano, durante a transição de governo, o economista Paulo Nogueira Batista Jr havia feito comentário semelhante sobre Ilan Goldfajn, então candidato à presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento. “Ele é essencialmente um financista, ligado ao Tesouro americano e à comunidade judaica.” Foi além. “A comunidade judaica tem muita presença no Tesouro americano, no Fundo Monetário, nos organismos internacionais.”

Em toda história ocidental desde a Idade Média, teorias conspiratórias que apontam uma fonte de poder central, nebulosa, que opera misteriosamente contra um grupo, sempre tem um componente antissemita. Não quer dizer que todos os aderentes àquela teoria sejam antissemitas, mas um subconjunto tenderá a ser.

O PT e a esquerda brasileiros têm sua teoria conspiratória particular. Mas a crença de que os EUA e o mercado financeiro representam juntos uma estrutura centralizada e organizada de poder que opera simultaneamente em todos os países, com objetivos comuns de dominância, aparece com muita frequência em movimentos de esquerda. Na América Latina, na Europa.

Uma das maneiras como crenças deste tipo se mostram é no antissemitismo. Sempre é. Estamos mais habituados com sua versão de direita, mas não é só lá.

Estamos numa armadilha com a qual precisamos ter cautela. Estimulado pela matança produzida pelo governo Netanyahu em Gaza, antissemitas estão mais à vontade de se mostrar. A política ocidental construiu a partir dos anos 1950 um colchão de proteção contra toda sorte de opressões por preconceito — contra negros, contra mulheres, contra a comunidade LGBTQIA+. Os movimentos destes grupos são hoje mais respeitados, têm mais voz e representatividade, e trabalham de forma coordenada para juntar forças.

Esta máquina contra opressão por preconceito não está operando para coibir o antissemitismo. Às vezes, a gente perde noção da escala da história. O antissemitismo foi a forma principal de preconceito contra gente no Ocidente por dois mil anos. Está controlado faz setenta anos. Perante a história, é um hiato. A teoria conspiratória que o sustenta está viva, jamais morreu.

E está voltando a ser alimentada.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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