Edição de Sábado: Apostando a própria vida

É sábado de sol no Rio de Janeiro e, às 10h, o Centro está às moscas. Na Rua Acre, onde casarões da cidade velha se espremem entre prédios comerciais com pichações na fachada, as lojas estão fechadas e os antigos sobrados, vazios. Mas no quarto andar do edifício Jequitibá, número 47, há uma sala tão cheia de gente que faltam cadeiras para todos. Muitos permanecem em pé durante as três horas de reunião dos Jogadores Anônimos (JA). Em silêncio, 64 pessoas ouvem Raíssa. A história dela e de outros membros do grupo (em itálico e com nomes fictícios em respeito ao anonimato) revelam o lado mais obscuro do mundo das apostas online.

“Estou há 12 dias sem jogar. É difícil. Ingressei há um mês, mas tive uma recaída. Pensei em desistir, achei que não teria forças para voltar. Tenho 30 anos de idade, trabalho desde os 15 e as bets levaram tudo o que construí. Perdi mais de R$ 400 mil em dois anos. Tenho uma filha de nove, ao contrário de muitos aqui ainda tenho família, mas perdi a confiança da minha mãe e dos meus amigos. Nesses 12 dias sem jogar, não menti para ninguém, consegui olhar as pessoas nos olhos. Posso não ter um real no bolso, mas sinto uma paz tremenda. Quando acordo, só peço a Deus que me ajude a ficar mais 24 horas sem apostar.” 

Não há quem não os veja. Nas redes sociais de atletas como Neymar e Gabriel Medina, nos perfis de influenciadores sobre quem você nunca ouviu falar, mas que têm milhões de seguidores. Em sites esportivos, em canais do YouTube, nos uniformes de 15 dos 20 times da elite do futebol brasileiro. Os anúncios de apostas esportivas e também de caça-níqueis online, apelidados de “tigrinho” ou “aviãozinho”, estão por todos os lados. Estima-se que existam mais de dois mil slots no Brasil, como esses jogos de azar são conhecidos. As bets são assunto nos bares, no trabalho, nos encontros de família, em grupos virtuais. É uma epidemia. Ou, como chamou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, uma “pandemia”.

“Cheguei há 120 dias, acabado moralmente, com um emprego bom, mas sem conseguir trabalhar e me concentrar por causa das bets. Elas tomaram conta da minha vida de tal forma que eu acordava de madrugada para ver campeonatos russos, campeonatos chineses, com a ilusão de que ganharia alguma coisa. Até ganhei, mas perdi tudo em seguida e, quando vi, tinha perdido meu carro e, o pior, estava perdendo minha família. Procurei tratamento quando minha mulher arrumou uma mala para mim e me mandou embora. Eu não me achava doente, mas quando cheguei no JA, entendi que tenho um problema. A doença é tão forte que, apesar de todo o sofrimento, ainda sinto vontade de jogar. Essa semana pensei em apostar, mas respirei fundo e vim para a reunião. Estamos vivendo um problema de saúde pública, mas aqui no grupo estamos conseguindo. Só por hoje.” 

Em um país onde as pessoas passam em média 9 horas e 32 minutos por dia grudadas em telas, de acordo com um ranking mundial da empresa britânica Proxyrack no qual o Brasil ficou em segundo lugar, seis minutos atrás da África do Sul, as bets descobriram seu Eldorado. Mas as entrevistas indicam que não é apenas o vício em celular que torna os brasileiros tão vulneráveis ao jogo compulsivo: tem a ver com a promessa de dinheiro fácil e esperança de uma renda extra. Depois de jogar, porém, passa a ser visto como a única saída para pagar dívidas criadas pelo próprio vício. Uma pesquisa do Instituto Locomotiva revelou que dos 52 milhões de brasileiros que já fizeram apostas de algum tipo, 83% começaram há menos de dois anos e 40% têm de 18 a 29 anos de idade. A frequência impressiona: 45% jogam ao menos uma vez por semana, sendo que 8% apostam todos os dias.

“Estou há dez dias sem jogar. Cheguei aqui aos pedaços no sábado passado. Minha esposa está grávida de cinco meses da nossa primeira filha depois de muitas tentativas. Ser pai era o meu sonho. Quando engravidamos, pensei: vou dar tudo para a minha filha. E comecei a subir a mão. Em uma noite, perdi R$ 8 mil em duas horas. Eu dizia para minha esposa que precisava de dinheiro para consertar o motor do carro, ela chegou a sacar R$ 10 mil do banco para o conserto, mas o carro não tinha problema nenhum. Eu saía de casa para jogar na rua, dentro do automóvel. Sou bombeiro civil e passava o dia todo apostando. Em janeiro, estávamos de férias na Praia dos Carneiros, em Pernambuco, e não consegui aproveitar porque, ao jogar escondido, perdi uma aposta. Minha esposa se sentia culpada, achava que tinha feito algo de errado. Ela me dizia sorrindo que a bebê estava chutando a barriga e nem isso me deixava feliz. Muitas noites sem dormir, devendo, agiotas me cobrando. Foram mais de R$ 500 mil em apostas. A única coisa que consegui pagar com o pouco que ganhei foi a pintura do quarto da minha filha: dei R$ 1 mil para o pintor. Mas o prejuízo emocional é o maior de todos. Minha esposa me expulsou de casa. Tudo que eu quero é minha família de volta.”

A propaganda funciona. Hugo, o pai da história acima, começou depois de ser alcançado pelo algoritmo das redes sociais e canais do YouTube. Patrícia, também frequentadora do JA e que parou há um mês, começou a apostar ao ver posts e stories no Instagram de uma influenciadora que ela seguia. Assim que começou a jogar, Patrícia transformou R$ 4 em R$ 2 mil. “Parecia que eu tinha ganhado na Mega Sena. Contei para o meu marido, que estava estudando no computador. Ele me disse para parar, que aquilo não daria certo. Eu disse que não jogaria mais. Naquela mesma noite, varei a madrugada”, conta. Mãe de dois filhos, ela conta que nunca foi adicta a nada, nunca teve vícios, sempre foi “certinha”. Professora infantil de crianças de 1 a 5 anos, em pouco tempo passou a ficar ansiosa pela hora do “soninho” na escola, pois jogava sempre que a turma dormia. Hoje, passa boa parte do dia com o celular desligado. É preciso. Para um jogador compulsivo, o celular no bolso equivale a um papelote de cocaína na mão de um viciado em pó.

“Sou Ana Paula e estou há dois anos sem jogar. A gota d’água foi o aniversário de 20 anos da minha filha. Eu estava presente, mas era como se não estivesse. No dia seguinte, peguei o cartão dela emprestado dizendo que compraria um remédio, mas era mentira. Passei muito mal nesse dia, pois junto com a sanidade perdi também minha saúde, fiquei hipertensa e diabética. Estava andando na rua e tentei suicídio* me atirando embaixo de um carro, mas o motorista desviou. Fui parar em um hospital, minha filha chegou me chamando de ladra, dizendo que nunca mais queria saber de mim. Já tinha perdido meu marido, pois arrasei com a vida financeira dele, e estava perdendo meu tesouro. Três dias depois, minha filha voltou para casa dizendo que viu na internet o JA. Liguei para a Linha de Ajuda e me deram o endereço. Fui na reunião com ela, ouvi pela primeira vez que eu era doente, que essa é uma doença incurável e que leva à morte. Fiquei confusa, mas continuei voltando. Eu devia dinheiro a nove agiotas. Ainda devo a três. Trabalho como auxiliar administrativa de uma gráfica, não sei quando vou conseguir pagar tudo, mas o importante é continuar em recuperação. Falar sobre isso me faz bem: faz eu lembrar que não posso ir na primeira aposta.”

Os Jogadores Anônimos surgiram na Califórnia em 1957 tendo como modelo a recuperação de 12 Passos dos Alcoólicos Anônimos, irmandade fundada por Bill W. e Bob S. em 1935 e que revolucionou o tratamento não apenas da dependência do álcool, mas de todas as formas de compulsão e obsessão. As irmandades de autoajuda são independentes, não se envolvem em questões alheias à recuperação, não aceitam apoio ou ajuda financeira externa e são mantidas pelos próprios membros com contribuições voluntárias. Ninguém precisa dizer nem mesmo o nome completo. Para fazer parte do JA, basta o desejo de parar de jogar e encontrar uma nova maneira de viver. No Brasil, tudo começou na Rua Acre em 1993. No início, a reunião era frequentada por “jogadores analógicos”, como define Ubirajara, membro mais antigo que iniciou sua recuperação do vício em jogo do bicho nos Neuróticos Anônimos. Hoje, ele garante que 90% dos novos companheiros são os “jogadores digitais” das bets.

“Meu nome é Ademir, estou há 38 dias sem apostar. Estou mais tranquilo, estou bem com a minha família. Voltei a dormir. Estou melhorando. Só isso, obrigado.”

O número de ingressantes não para de aumentar – são mais de 50 por mês nos 11 grupos presenciais do Rio e também no grupo virtual. Em todo o Brasil, o JA tem hoje 39 grupos espalhados por 25 cidades das cinco regiões, mais o Distrito Federal. “São muitos grupos, muitas reuniões. Só neste ano, chegamos a mais nove cidades do país”, afirma Ubirajara. Na manhã daquele sábado, 21 de setembro, havia um companheiro completando 28 anos sem jogar. Mas havia também dois homens assistindo a uma reunião pela primeira vez. “Vocês são as pessoas mais importantes aqui hoje. Estávamos esperando vocês”, eles ouviram. Escutaram também 20 perguntas, do servidor voluntário responsável por aquele dia, como “você já sentiu remorso após jogar” e “já pediu dinheiro emprestado para financiar seu jogo?”. A literatura da irmandade diz que jogadores compulsivos respondem “sim” a pelo menos sete perguntas – um deles respondeu a 13, o outro a 14. Os dois ingressaram, foram aplaudidos, receberam abraços. Mesmo para os mais antigos, não há emoção maior. A porta está aberta e as cadeiras arrumadas para esse momento.

“Não sei direito o que é bet, só sei pelos anúncios, sou das antigas. Sei que tem esse tigrinho, mas os bichos que conheço são do jogo do bicho. Virei as costas pra isso há muito tempo. Eu me aposentei, adquiri minha casa própria, criei meus filhos em recuperação. Jogador compulsivo que não para de jogar não consegue isso, ele se mata – se não embaixo de um carro, ele se mata para a vida. Há jogadores compulsivos que viraram mendigos, que não tiveram a oportunidade de conhecer essa sala. Eu poderia ser um deles, mas estou aqui.”

Muitos companheiros do JA conhecem histórias de pessoas que se mataram ou foram mortas por dívidas não pagas. Um caso recente é o do mecânico Marcos Roberto Machado, de 52 anos. Seu corpo foi encontrado em julho após dois meses de desaparecimento. Estava em seu carro capotado fora de uma rodovia perto de Nova Mutum, no Mato Grosso. Sua filha contou às autoridades que o pai tinha dívidas com um agiota no valor de R$ 200 mil, perdidos para o “jogo do tigrinho”. Segundo a polícia, o caso segue em investigação. Há também relatos de pessoas que tiveram que fugir para sobreviver. Embora trabalhe no setor de compliance, um funcionário de uma das maiores bets do país ouvido pelo Meio diz que uma de suas atribuições é levantar o histórico de clientes que processam a casa de apostas após terem perdas. Ele conta que uma mulher de Vitória, no Espírito Santo, precisou se esconder de um agiota na periferia de São Paulo por uma dívida impagável. Ele não se arrisca no jogo e torce para que as plataformas sejam regulamentadas. “Só isso poderia impor às plataformas um limite de apostas por cada pessoa”, analisa.

“Sou Miguel, tenho 34 anos, estou vindo pela primeira vez. Cheguei a um ponto em que, em três anos, perdi R$ 200 mil. Perdi amigos e me afastei da minha família. Mudei meu comportamento, passei a ficar distante de todos. Meu filho é o maior presente da minha vida, ele é diabético e depende muito de mim, toma insulina em todas as refeições. Minha mulher continua do meu lado, foi ela quem achou o JA na internet e conversou comigo ontem. Decidi vir hoje para ter a minha vida de volta. Por mim, por ela, pelo meu filho.”

Nesta semana, foram divulgados os primeiros dados oficiais do Banco Central sobre o mundo das bets no Brasil. Segundo o BC – que entregou os números após solicitação do senador Omar Aziz (PSD), do Amazonas –, os brasileiros apostaram este ano entre R$ 18 bilhões e R$ 21 bilhões por mês. Mas esse valor está subestimado, pois considera apenas as transações via Pix, ignorando aquelas que são feitas por TED ou cartão de crédito. Em junho, um relatório da XP Investimentos informou que as apostas brasileiras movimentam 1% do PIB do país e comprometem até 20% do orçamento livre dos mais pobres. É um mercado em ascensão não apenas aqui. Segundo o departamento de pesquisa da Statista, plataforma de dados baseada na Alemanha, a indústria global de bets movimentou US$ 85,62 bilhões em 2023 (aproximadamente R$ 462 bilhões). E a previsão é que esse valor aumente para US$ 133,59 bilhões em 2029 (R$ 726 bilhões). A diferença é que nos Estados Unidos, por exemplo, as apostas online correspondem a 0,4% do PIB, e as empresas faturam 7% dos valores jogados; aqui, segundo o BC, as casas ficam com 15%.

“A gente pensa: futebol é mole, eu entendo disso. Daqui a pouco começa a perder. Aí acha que tem habilidade para ganhar do jogo que foi criado para você perder. Poucos pedem ajuda, acabam no fundo do poço. Isso não é brincadeira. Lá fora as pessoas não falam das suas derrotas, mesmo que estejam arrebentadas por dentro. Aqui temos um programa de honestidade. Aprontei coisas que até Deus duvida. Hoje tenho uma vida útil, íntegra e feliz. É uma vida simples: trabalho, pago as contas, respeito as pessoas. Temos professores, advogados, engenheiros, pessoas que estudaram e que não estudaram. Aqui dentro somos todos iguais.”

Em entrevista ao Meio, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, disse que “esses relatos são casos dramáticos” e que, “embora o vício em jogo não seja uma coisa nova, a velocidade e o aumento da compulsão com a entrada das bets é algo assustador” e se multiplica sem regulação. Na semana que passou, enquanto o presidente Lula estava na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, houve uma reunião coordenada pelo presidente em exercício, o vice-presidente Geraldo Alckmin, com participação das equipes da Fazenda, da Justiça e da Saúde. “Haverá um grupo de trabalho que também terá o Ministério dos Esportes. Mas o que posso dizer desde já é que, sim, as bets são uma epidemia de saúde pública no Brasil, com muita exposição das crianças e jovens, o que requer ainda maior atenção”, disse a ministra. “A comparação que eu faço é com o tabaco. Os avanços no Brasil foram muito grandes a partir do momento em que a regulação da publicidade e a coibição do fumo foram feitas. Temos que caminhar para algo que se aproxime dessa visão.”

“Eu não conseguia ficar um dia sem jogar. No começo, apostava só em futebol, mas logo não tinha mais paciência para esperar o fim de semana inteiro para saber os resultados, então fui aos esportes mais dinâmicos e, depois, entrei na loucura do tigrinho e do aviãozinho. Essa foi a minha desgraça. Tentei controlar, tentei parar, jurei que não jogaria mais e nada adiantou. Trabalho de madrugada no setor de logística dos Correios e tive muitos problemas no emprego por faltas. Ficava em casa em depressão ou passava a madrugada jogando. Não conseguia mais sair de casa. Fui despejado três vezes com minha família por não pagar aluguel. No começo do ano, sofri meu último despejo e fui morar com parentes, em um quartinho improvisado. Até que decidi me afastar do trabalho e me internar em uma clínica psiquiátrica por um mês. Estou há cinco meses sem jogar.”

A professora Vanessa Lucia Arienti, de 42 anos, trocou escolas da elite paulistana para lecionar em Francisco Beltrão, no Paraná. Bets e “jogo do tigrinho” eram novidade para ela quando assumiu 15 turmas de 50 adolescentes da rede pública paranaese. Ao ouvir de colegas que havia alunos viciados em apostas – estudantes dizendo que não precisavam mais estudar, pois estavam ganhando dinheiro jogando –, a professora de sociologia e filosofia quis entender o fenômeno. Até se cadastrou em uma plataforma e jogou quantias módicas, além de conversar com as turmas. A cada intervalo ou momento de distração na aula, via os alunos se juntando para apostar. A falta de concentração era quase absoluta. “Percebi que, em turmas de 50, quatro ou cinco alunos estão comprometidos com apostas. E a impressão que eu tenho é que as crianças em vulnerabilidade social são muito mais atingidas. Isso me desencantou. Sonhava dar a mesma aula para o filho do operário e para o filho do banqueiro, mas o filho do operário, de um modo geral, quer ganhar dinheiro rápido no tigrinho, e os vulneráveis ficam cada vez mais vulneráveis”, reflete Vanessa. “Amo o que faço, tinha esperança de transformar a sociedade pela educação, mas decidi pedir exoneração três meses após passar no concurso público, e 70% disso tem a ver com essa realidade que observei.”

“Como contei, fui para uma clínica psiquiátrica após ser despejado pela terceira vez. Eu estava no fundo do poço, cogitando suicídio, pensava que a vida da minha família seria melhor se eu simplesmente não existisse. Deixei meu filho passar necessidade para jogar e, mesmo assim, ele me via como um herói. Minha geladeira não funcionava, com exceção do freezer, e eu não consertava: todo o dinheiro ia para as apostas. Foi na clínica que eu soube do JA. Nesses cinco meses de recuperação, já paguei R$ 7 mil dos R$ 60 mil de dívidas. Minha alegria hoje são coisas simples: tomar um picolé com minha família, comprar uma pipoca para o meu filho. Finalmente consegui comprar uma geladeira nova. A primeira coisa que meu filho falou foi 'pai, agora a gente pode fazer gelatina'. Eu chorei. Tem uma vida esperando a gente, mas é um dia de cada vez. Só por hoje.”

* Se você está com pensamentos suicidas, procure o CVV pelo telefone no 188, sem custo de ligação e disponível 24h por dia em todo o Brasil, ou por chat e e-mail pelo site.

Proibir ou regular?

Tratar o jogo como vício, comparado ao alcoolismo ou ao tabagismo. Encará-lo como uma questão de saúde pública. Essa é a lógica que passou a prevalecer nos Três Poderes desde que as investigações desencadeadas em Pernambuco identificaram crimes ligados às apostas online, entre eles, o de lavagem de dinheiro. Os alvos da polícia foram celebridades, artistas e influenciadores, o que ajudou a lançar holofotes sobre o problema. Às apurações, somaram-se casos de total desequilíbrio nas contas de famílias em função da febre das apostas, inclusive gente beneficiada pelo programa de distribuição de renda, o Bolsa Família, que, de acordo com o Banco Central, gastaram, via Pix, R$ 3 bilhões em bets (empresas de apostas eletrônicas), no mês de agosto. Diante desses acontecimentos, Executivo, Legislativo e Judiciário passaram a se mobilizar, e pelo menos dois caminhos estão colocados como concorrentes em Brasília. Regulamentar ou acabar com as apostas online?

O presidente Lula ficou abalado com a dimensão do uso de recursos do Bolsa Família para apostas e cobrou providências do ministro de Desenvolvimento Social, Wellington Dias. O ministro afirmou que o monitoramento do CPF dos beneficiários, cruzando-os com o dos apostadores, é o caminho que o governo pretende adotar. “O dinheiro dos programas sociais é para superação da insegurança alimentar, combater a fome, não é para gastar com jogos”, disse ao Meio. “O cartão Bolsa Família é um cartão de débito. Tecnicamente é possível adotar o limite zero para pagamento de jogos no sistema dos cartões.”  Dias, no entanto, não explicitou se o governo vai suspender do programa o usuário que for identificado nas apostas. Lula chamou uma reunião para a próxima quarta-feira para definir as ações e limites da repressão à atuação das bets.

O Executivo investe na defesa do tratamento, ou seja, na regulação. Se antes encarava o volume de recursos gastos em apostas como mais uma chance de arrecadação, agora o governo precisou olhar com mais humanidade para o problema. Entendeu que a questão é mais complexa e envolve dimensões menos exatas. O próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad, adotou o cuidado de encarar a febre como uma “pandemia nacional” e, portanto, digna de ser tratada também pelo Ministério da Saúde, entre outras pastas.

Em setembro, a Fazenda publicou uma portaria que prevê o bloqueio, a partir do próximo mês, de plataformas que não solicitarem autorização formal ao governo para operar no Brasil e criou a Secretaria de Prêmios e Apostas. Agora, pretende interditar o uso de cartões de crédito para apostas, estabelecer limites para a publicidade e disponibilizar recursos para que a Saúde tenha ações voltadas para o tratamento da dependência. Não que a ideia de incrementar a arrecadação tenha sido abandonada, mas o ministro precisou considerar que cuidados (e gastos) com essa questão são inevitáveis e necessários.

Haddad diz esperar o reconhecimento de que o governo tentou regulamentar as apostas por meio de uma medida provisória que não foi aprovada pelo Congresso e que isso iria “botar ordem no caos que se instalou no país com essa verdadeira pandemia”. A medida provisória não foi votada e caducou. “Aproveitamos um outro projeto de lei e, no final do ano passado, conseguimos incluir nele o texto da medida provisória que tinha caducado, justamente para botar ordem no assunto.” Entre as medidas a serem tomadas estão o monitoramento de “CPF por CPF” dos apostadores e impedir que casas de apostas de fora do Brasil possam ser acessadas no país. “Tudo isso só será possível porque nós agimos. Infelizmente, isso não aconteceu no governo anterior. Infelizmente, houve um grande descaso com esse assunto”, reclamou o ministro.

No Congresso, o “tratamento” para a “pandemia” animou a bancada evangélica, que reativou suas esperanças na proibição radical das bets. A defesa da proibição — por ferir preceitos morais das igrejas — já havia sido feita em 2018, no final do governo de Michel Temer, quando a liberação foi aprovada. Os religiosos endossam as posturas do senador Omar Aziz (PSD-AM) e de Cleitinho (Republicanos-MG). O amazonense entrou com uma representação no Ministério Público Federal (MPF) pedindo uma ação para que o Supremo Tribunal Federal (STF) suspenda os sites de apostas no país, da mesma forma que o ministro Alexandre de Moraes suspendeu as atividades da plataforma X. “Já sabemos que tecnicamente é possível e, a meu ver, é o caminho mais rápido. Melhor do que esperar o trâmite no Legislativo, principalmente nesse período eleitoral. Na minha visão, a regulação não é o melhor caminho. Tem que proibir. Também não é justo o governo ficar pensando em arrecadação diante de um problema desse. Vai arrecadar de um lado e gastar do outro, com o tratamento de viciados e toda miséria que o jogo causa para as famílias”, disse um membro da bancada religiosa, em reservado, ao Meio.

Enquanto evangélicos sonham em proibir os jogos, a base de Lula toma o caminho da regulamentação, restringindo ao máximo os apostadores e as casas de apostas. A presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, reconhece que o Congresso e o governo subestimaram os danos das bets para a população. “Quando o projeto foi apresentado pelo governo e aprovado no Congresso, não tínhamos ainda a dimensão mais ampla dos riscos e prejuízos causados pela atividade das bets. Isso tem se revelado nos últimos meses, por meio de estudos e métricas da movimentação financeira com apostas. Como atividade que induz ao vício, apostas devem ter tratamento semelhante ao que a lei confere às bebidas alcoólicas e ao fumo. Temos restrições à publicidade de remédios e de produtos de consumo infantil, não pode ser diferente com as apostas. O Congresso e o governo precisam atuar sobre o problema”, disse Gleisi ao Meio.

Toda a pressão recai agora sobre os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Tanto os evangélicos pedem que Lira paute projetos que proíbem os jogos quanto os governistas querem que Lira faça andar as propostas que, além de proibir a propaganda, também vetam a utilização de cartões de crédito e contas bancárias do Bolsa Família em apostas, projeto apresentado pelo deputado Reginaldo Lopes (PT-MG).

Envolvidos nas eleições nos estados e em meio a um recesso informal do Congresso, Lira e Pacheco ainda não sinalizaram sobre pautar esses assuntos. Mas terão de emitir opinião já que, em meio ao impasse, o ministro Luiz Fux, do STF, chamou uma reunião para o dia 11 de novembro com vários atores do segmento das apostas online. E ambos estão na lista de convidados.

O ataque às urnas não morreu

Cartórios e postos da Justiça Eleitoral de todo o país começaram na terça-feira, dia 23, a carregar os sistemas eleitorais e os dados de todos os candidatos e eleitores registrados no Brasil nas urnas eletrônicas que serão usadas no dia 6 de outubro. O assunto virou uma nota no site e nas redes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e teve pouco destaque na mídia nacional. Ao que tudo indica, os holofotes e microfones estão quase exclusivamente voltados para a cobertura da violência política vista, sobretudo, na campanha municipal de São Paulo. Mas, faltando cerca de uma semana para o primeiro turno, é hora de dizer com todas as letras que, nas redes sociais e nos aplicativos de mensagem, as urnas eletrônicas são assunto quente, e o volume de desinformação sobre elas assusta até quem lida com isso há anos.

Dados da Palver, parceira da Lupa no monitoramento de mais de 80 mil grupos públicos de WhatsApp e Telegram do Brasil, mostram que, desde o início da campanha deste ano (em 16 de agosto), mais de 920 mil usuários desses dois aplicativos foram impactados por mais de 750 mensagens únicas que mencionam pelo menos uma das três expressões a seguir: “urnas auditáveis”, “fraude eleitoral” ou “voto impresso”. Os três termos são comumente usados por quem produz conteúdo que ataca as urnas.

Dentre essas mensagens, pelo menos 39 chegaram a um ponto de viralização tão alto no WhatsApp que receberam da Meta a seta dupla, símbolo que indica que um conteúdo foi fartamente reencaminhado dentro da plataforma.

E um mergulho nessas 39 mensagens únicas deixa claro que, assim como costuma acontecer com outras narrativas falsas, a que tenta convencer o eleitor de que as urnas brasileiras (ou as eleições como um todo) não são confiáveis também sofre mutações.

Em 2018, o que viralizava eram críticas a um (falso) fabricante das urnas. Em 2020, a ideia de que a urna poderia ser hackeada via internet e que não permitiria recontagem. Em 2022, que um simples “chupa-cabra” poderia ser usado para tirar os votos de um candidato e dar a outro e que peritos da Polícia Federal haviam constatado de forma definitiva que as urnas não eram confiáveis usando uma lei da matemática. Agora, em 2024, a política internacional é usada “como prova” de que o voto impresso é vital, pois a urna eletrônica é falha.

Num dos picos mais recentes de conversas de WhatsApp e Telegram sobre o assunto, desinformadores distribuíram pelos apps um vídeo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva comentando o desfecho da última eleição venezuelana. Na gravação, Lula diz que é preciso ver os boletins de urna do país (algo que o governo Maduro omite há meses) para confirmar o vencedor do pleito. Junto com esse vídeo, viralizaram mensagens irônicas, que comparavam realidades eleitorais (e máquinas) totalmente diferentes: “O Luladrão deixou claro que sem voto impresso as urnas não são confiáveis, como fica o TSE agora?” ou “Olhem o canalha confirmando que as urnas sem voto impresso não são confiáveis!”.

Nesta semana, o conteúdo anti-urna que mais bombou nos apps de mensagem foi um vídeo de um comunicador português que diz que os votos do Brasil não são votos porque são “uma coisa que vai para dentro de uma máquina abstrata e que se esfumaça no ar”. Na lógica do indivíduo — que também ataca as vacinas, o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes e o presidente Lula —, o Brasil vive há anos imerso na ilegalidade por não oferecer aos seus cidadãos uma contagem pública dos votos. Essa informação é falsa. A contagem promovida pelo TSE é pública e eletrônica. Pode ser acompanhada de qualquer lugar do mundo. E seu resultado pode ser (e é) contrastado com os boletins de urna impressos por cada seção de votação.

Esse ataque não se restringiu a WhatsApp e Telegram, mas também se espalhou por redes sociais. No X (suspenso no Brasil desde 30 de agosto), o material foi amplificado por mais de dez perfis que se comunicam em português. O engajamento numa plataforma bloqueada surpreende.

Um movimento aparentemente novo — que mobiliza canais públicos de WhatsApp de pelo menos oito estados do país — tem distribuído, por exemplo, material visual (cards) para uma campanha que pretende pedir à Justiça Eleitoral que não só use o voto impresso como também promova a contabilização dos votos em cada uma das seções em futuras eleições. Ignorando o tamanho do país e as portas que se abririam para fraude se isso virasse realidade, as mensagens do movimento estão entre as mais virais observadas pela Lupa.

Enganam-se, portanto, os que pensam que esse tipo de conversa acabou ou só circula em bolhas. A narrativa de fraude nas urnas está no cerne dos ataques contra a democracia brasileira.

Dados do NewsWhip, ferramenta que monitora conteúdos publicados em sites, blogs e em redes abertas como Facebook, YouTube e Instagram, mostram que, desde o início da campanha, quase 2 mil artigos citando “urnas auditáveis”, “fraude eleitoral” ou “voto impresso” foram publicados no Brasil, uma média de mais de 47 textos por dia. A maioria acumula mais de mil interações (curtidas, comentários e compartilhamentos).

Pela mesma ferramenta, também fica claro como conteúdos sobre urnas estão migrando de uma rede para outra, para atingir cidadãos digitais com perfis diferentes. Vídeos do TikTok vão parar no YouTube e vice-versa. Posts do X, no Facebook ou no Instagram. Esse é um dos sinais vermelhos da disseminação de conteúdos falsos.

Para contrapor esse movimento, há muito pouco. Uma busca no Google por notícias relativas à ministra Cármen Lúcia, atual presidente do TSE, mostra, por exemplo, que ela tem sido enfática ao criticar a violência na campanha eleitoral. Que pediu que os candidatos tomem tenência e ressaltou que não vai tolerar pugilato. Tudo isso fartamente amplificado pela mídia.

Mas uma busca sobre a última vez que a xerife das eleições deste ano se pronunciou publicamente sobre as urnas eletrônicas indica que isso ocorreu há mais de duas semanas. O flanco está aberto.


*Cristina Tardáguila é fundadora e sócia da agência Lupa. Este texto faz parte da parceria do Meio com a Lupa, que mapeia o que está fervendo em 80 mil grupos públicos do WhatsApp e do Telegram sobre as eleições municipais deste ano e publica na newsletter Ebulição.

Invenção para além das receitas

Três reality shows estabeleceram as principais dinâmicas das competições culinárias: o MasterChef, criado na Inglaterra em 1990 e exportado para o mundo todo a partir de 2005, com provas para cozinheiros amadores; o Iron Chef, criado no Japão em 1993, em que um chef desafiava um expoente da culinária; e o Top Chef, criado pela Bravo em 2006, em que jovens chefs profissionais competiam. Ao longo de mais de 30 anos, muitos novos formatos foram criados. Alguns deles fizeram escola, como é o caso de ChoppedPesadelo na Cozinha, Duelo com Bobby Flay, A Batalha dos Carrinhos, The Taste, Bake-off e Food Truck: A Grande Corrida, só pra citar alguns disponíveis no Brasil.

Parece impossível encontrar dinâmicas inovadoras para esse tipo de reality, mas neste ano surgiram dois novos programas que são viciantes. Pensando neles, elaboramos uma lista das cinco competições de culinária mais inventivas que estão no streaming.

1. 24 em 24: O último Chef em Pé (Max): A proposta é radical — tirar todos os artifícios que existem nas gravações desse tipo de programa e colocar chefs para realizarem 24 desafios em 24 horas. Uma operação de guerra em que talento, resistência e resiliência têm de andar juntos. É eletrizante.

2. Guerra Culinária (Netflix): Cem chefs de diferentes estilos que atuam na Coreia do Sul foram escolhidos para a competição. Desses 100, 20 são mestres em suas propostas culinárias, vários dirigindo restaurantes com estrelas Michelin, o Oscar da gastronomia. Os outros 80 têm de assegurar um lugar para competir com esses 20 ases.

3. Next Level Chef (Max): Cozinheiros amadores, chefs profissionais e celebridades das redes sociais competem em um cenário de três andares. Quanto mais alto o andar, melhores os equipamentos para cozinhar. O vencedor, além de levar um prêmio em dinheiro, recebe um ano de mentoria com três chefs renomados: Gordon Ramsey, Nyesha Arrington e Richard Blais.

4. Grandes Chefes: Torneio dos Campeões (Max): Apresentado por Guy Fieri, é um programa que divide os melhores chefs que atuam nos EUA em duas chaves, uma com profissionais da Costa Leste e outra da Costa Oeste. Organizado em mata-matas, apenas um chef sai vencedor. O charme aqui é o randomizer, uma espécie de roleta que impõe as combinações de ingredientes, estilo, tempo e utensílios em cada batalha.

5.  Todos Contra a Chef Alex (Max): A Ironchef Alex Guarnaschelli enfrenta sempre três chefs diferentes, de estados americanos distintos. Cada episódio traz chefs de uma determinada especialidade culinária. Quem conseguir vencê-la, leva um prêmio em dinheiro.

Veja com calma a aula Inaugural do curso Crise Climática: A História do Século 21

Para ver com calma: a Aula Inaugural do curso Crise Climática: A História do Século 21, com Pedro Doria entrevistando o ambientalista Sérgio Besserman foi um evento que mostrou o buraco quente em que nos metemos. Ela está gravada e pode ser acessada na página do curso. Veja a aula e, se interessar, faça o curso com 20% de desconto porque você é premium e merece.

Nesta semana, a tecnologia esteve em alta, a pesquisa do Meio seguiu super acessada e os campeões de audiência Ponto de Partida e Panelinha voltaram a brilhar. Veja os mais clicados:

1. The Verge: O novo projetor feito pela Panasonic que pulveriza uma névoa fina e faz com que as imagens flutuem no ar.

2. Meio: Nossa pesquisa anual para conhecer melhor o leitor, agora encerrada. Agradecemos a todos os que responderam.

3. The Verge: Os óculos inteligentes Ray-Ban da Meta superaram as expectativas em um ano em que dispositivos de inteligência artificial fracassaram.

4. Meio: No Ponto de Partida, Pedro Doria junta dois assuntos aparentemente distintos: as disputas municipais em São Paulo e Belo Horizonte e a saída de Tallis Gomes do G4 Educação.

5. Panelinha: Um jeito rápido e delicioso de fazer um curry de peixe branco.

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