Edição de Sábado: Política movediça

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Os ventos do Norte podem não mover muitos moinhos. Mas a intervenção operada por Donald Trump na política brasileira, via tarifaço, Magnitsky e ameaças, produziu pelo menos um vendaval: Jair Bolsonaro está preso. Na jovem democracia brasileira, com todas as suas conquistas e falhas, testemunhar a prisão de um ex-presidente pode ser um momento histórico, mas não é inédito. E a comparação com as anteriores — e com suas consequências políticas — torna-se exercício quase imediato.
O que vem acontecendo com Bolsonaro pode ter o mesmo desfecho dos processos de Lula? Para além das questões jurídicas, daqui a poucos anos, podemos ter um ambiente político propício para o desmonte dos julgamentos que devem colocá-lo preso por mais tempo? Para discutir esses cenários, buscamos a sensatez de um dos maiores politólogos do Brasil, Sérgio Abranches. “No caso do Bolsonaro, se ele ficar um bom tempo preso, incomunicável, incapaz de agir politicamente, isso vai acabar com a liderança dele de uma vez por todas”, ele crava.
Abranches avaliou as mudanças profundas que os campos ideológicos estão enfrentando e devem se acentuar com o ocaso dessas duas figuras políticas enormes, mas acredita que elas devem se consolidar em alguns ciclos eleitorais. Fala do rearranjo no Congresso e dos erros de Gilberto Kassab em firmar seu PSD num caminho alheio à extrema direita. E analisa ainda que o Supremo Tribunal Federal deve retomar sua vocação colegiada o quanto antes, mas sem que isso se dê a partir de uma retaliação do Legislativo. A conversa está disponível na íntegra em vídeo para você, assinante premium do Meio, em nosso streaming. E aqui estão os principais trechos da entrevista.
Com a prisão de Bolsonaro, muita gente se pergunta se o que aconteceu com o desmonte da Lava Jato não é algo politicamente cíclico. O que aconteceu no ambiente político para que a Lava Jato, uma quase unanimidade nacional, desmoronasse? Aquilo pode se repetir com Bolsonaro?
Há várias diferenças importantes entre os dois casos. A primeira delas é que no caso do Lula, sobretudo a condenação por conta daquela cobertura no Guarujá, tinha pouca prova, pouco fundamento para a decisão, ainda mais tão forte quanto a prisão. Já a tentativa de golpe foi toda explícita, documentada, comprovada, tem imagem, som, cores, depredação diante dos olhos perplexos de toda a sociedade brasileira. Então, do ponto de vista jurídico são casos muito diferentes. E também do ponto de vista ético e moral.
A outra diferença importante é que, no caso do julgamento do Lula, ele desmoronou no momento em que ficou claro que havia uma contaminação das decisões do juiz Sergio Moro por seu envolvimento político prévio com Bolsonaro. O processo fazia parte de uma conspiração que redundou na tentativa de golpe. Essa relação absolutamente inaceitável entre o juiz e uma pessoa que estava fazendo um movimento de oposição nos subterrâneos da sociedade brasileira para chegar ao poder tornou completamente ilegítimo um processo que tinha evidentemente muitas provas de corrupção, não do presidente Lula, mas de várias outras pessoas que estavam. Dito isso, por outro lado, o mundo e o Brasil vivem momentos muito instáveis e imprevisíveis.
Como fica a liderança de Bolsonaro caso ele seja preso, como tudo indica?
Não se sabe se num futuro próximo a ordem de coisas se altera e se votam uma anistia ou fazem alguma manobra para que essa decisão seja revertida. Mas a prisão de Bolsonaro terá efeitos políticos bastante mais duráveis do que teve com o Lula, que não desfez sua imagem e não tirou seu peso político. No caso do Bolsonaro, se ele ficar um bom tempo preso, incomunicável, incapaz de agir politicamente, isso vai acabar com a liderança dele de uma vez por todas.
Uma parte relevante dos brasileiros segue considerando Lula é corrupto, retroalimentando o antipetismo. Que tipo de efeito a condenação de Bolsonaro pode gerar?
Lula manteve a base petista, a base lulista de esquerda e também um alto grau de simpatia de não identificados com a esquerda. Bolsonaro tem um núcleo de bolsonaristas que aderiu a ele e não vai abandoná-lo. Agora, Lula tem uma personalidade política com um espaço tão grande que deixou a esquerda sem lideranças novas. Da mesma forma, não houve renovação de lideranças no campo social liberal por conta do tamanho de Fernando Henrique Cardoso. Eles dois dominaram o cenário político até 2018, quando houve a ruptura. Bolsonaro, não. Ele detonou um processo que eliminou a vergonha de ser conservador e criou essa possibilidade de novas lideranças, que estão disputando o campo da direita. A maioria hoje está fazendo um trabalho pusilânime de continuar dando apoio ao Bolsonaro, como se ele fosse a força decisiva para uma eventual eleição no plano nacional. Não será.
É possível ter essa convicção?
Nem Lula, nem Bolsonaro, foram eleitos com voto só de seus campos ideológicos. O eleitorado que decide eleição no Brasil é não alinhado. Isso faz com que a maioria do voto fique em busca de uma candidatura que o convença mais para aquele momento. O voto é sempre conjuntural. Tem muita base material ainda por causa das necessidades do povo brasileiro, está vinculado ao nível de renda real disponível. Tivemos uma ruptura radical tanto política quanto eleitoral em 2018. Ela afetou profundamente as relações entre Executivo e Legislativo, promoveu uma rearticulação partidária, que ainda não se completou, e deixou vazio um campo com o desaparecimento do PSDB. Agora, a disputa pela Presidência da República será sempre bipartidária. Por duas razões. Primeiro, porque não há partido suficiente no Brasil com projeção nacional para disputar a presidência competitivamente. Esse bipartidarismo se acentua, se reforça e se fixa por conta dos dois turnos. Hoje, o único partido que tem alguma chance de ocupar o lugar do PSDB é o PSD de Gilberto Kassab, que tem cometido muitos erros. Mas ele tem uma capilaridade nacional maior do que os outros. Fato é que, depois da ruptura, agora vivemos um momento de transição, de muita indefinição de rumos, porque duas candidaturas estão no seu ocaso.
Lula também?
Lula no máximo consegue mais um mandato. Além da idade, há um desgaste na sociedade. Nem por causa da Lava Jato, mas por fadiga de material, pelo tempo em exposição e uma redução da base de esquerda. Essa ruptura ainda produz muita incerteza e instabilidade. Não boto a minha mão no fogo de que tudo vai continuar de uma determinada maneira por muito tempo. Seja a prisão do Bolsonaro, seja qualquer outra coisa. Mas Bolsonaro vai ficar preso tempo suficiente para que se fortaleçam outras outras lideranças competitivas e se apague a sua. Ele está jogando seus últimos momentos. E essa ação final da família de provocar uma intervenção dos Estados Unidos vai ser um tiro no pé. Não por causa da questão da soberania, que não é uma coisa que o povo brasileiro entenda muito. Mas por conta dos efeitos econômicos.
As lideranças da direita, especialmente os governadores, primeiro mostraram apoio às tarifas de Trump, depois retrocederam. Essa turma está perdida?
que a família Caiado manda em Goiás desde a fundação do Estado de Goiás. É uma das Caiado. É, é uma das oligarquias dominantes antes. E, é, ele, ele é tipicamente aquele aquele caso de degeneração geracional, né? A A medida que vai reproduzindo, vai piorando, ao invés de melhorar. Eu acho que ele é um mal político.
Há uma diferença entre eles. Ronaldo Caiado é um mau político. Sua família manda em Goiás desde a fundação do estado e ele está faz tempo suficiente na política para saber agir, mas comete erros primários, e mostra que é tipicamente aquele caso de degeneração geracional. Já Tarcísio de Freitas e Romeu Zema são neófitos. Têm demonstrado claramente que não são políticos, não têm o treino nem o faro necessários para serem mais ambiciosos. Foram eleitos numa onda que não era deles e, se forem eleitos para mais alguma coisa, será por acaso, por falta de alternativa. Eduardo Leite e Ratinho Jr. também são políticos muito novos. Ratinho parece ser um bom administrador, mas não tem se mostrado um político muito brilhante. Agora, disputando a possibilidade de ocupar o espaço do Bolsonaro, todos andaram ouvindo gente demais, conselhos errados e fizeram bobagem. Se tivessem olhado pesquisas, se tivessem comprado pesquisas, teriam visto que se você consegue construir uma candidatura de direita democrática, você consegue uma base maior. A extrema direita vai seguir com você por falta de opção.
É o raciocínio inverso do que eles estão fazendo, não?
Sim, é o contrário. Você não pode montar uma candidatura com base num setor minoritário e achar que ele vai alavancar seu ganho para a maioria dos conservadores. Com Bolsonaro foi diferente, porque ele montou essa coisa de ser referência de um grupo radical durante muitos anos. Quando ele emergiu, já era uma onda pronta. Não é um caso fácil de repetir. Mesmo Lula foi crescendo por anos, perdeu várias eleições antes de emplacar vitórias. O cenário atual é o seguinte: houve várias mudanças na sociedade que deslocaram forças sociais, e essas mudanças vão aumentar em progressão geométrica daqui para frente. Você não sabe mais como é que as pessoas se orientam a respeito das coisas. Há muita insatisfação, insegurança, medo e você pode captar esses sentimentos tanto para a esquerda quanto para a direita. Depende de quem está sendo mais rejeitado naquele momento. É um contexto ideal para se criar novas lideranças que consigam captar as emoções e as demandas dessa sociedade em mutação.
Mas se essas lideranças da direita estão cometendo tantos erros não é justamente esse o ambiente fértil para que se clame pela volta de Bolsonaro e se produza uma reversão de seu julgamento?
Leio esse contexto de uma forma diferente. O Brasil teve uma liderança efêmera, mas forte, que foi Bolsonaro. Ele chegou a ombrear com Lula. Mas Bolsonaro está em declínio. Lula também está em seu ocaso. O Congresso vai igualmente passar por muita mudança. As eleições vão produzir uma nova mudança partidária, porque essa estrutura atual é insustentável com esse grau não só de fragmentação, que tende a diminuir, mas de bancadas de tamanho muito parecidos, e todas elas completamente fisiológicas, amorfas, sem a menor capacidade de mobilização além daqueles estados em que têm os chefetes mais fortes. Essa configuração não é durável. Até porque se durar a gente vai viver uma crise de governabilidade gravíssima daqui para frente. Mas um contexto de lideranças em declínio e de muita transformação social é propício para o surgimento de novos líderes, para surgimento de novas ações políticas. Como isso não está pintando, embora essas coisas nem sempre sejam visíveis, nós estamos caminhando para um ou dois ciclos eleitorais de governos instáveis, meio provisórios. Vai ser eleito alguém numa situação que ninguém estava muito afim de eleger, aí na próxima, troca. O Congresso também vai ficar mudando. Até que essas lideranças se acertem.
O que pode acontecer já em 2026 no cenário presidencial?
Tem uma coisa que me deixa desconfortável com relação às pesquisas eleitorais, nas quais eu não acredito muito por estar cedo. Considero um erro grave a impressão que essas pesquisas criam de que só existem Lula e os candidatos da direita. De que na verdade é uma disputa para ver quem consegue levar o Lula para o segundo turno e ganhar dele. Não se testa nenhuma alternativa em outro campo. E eu não acho que isso seja verdade. Eu acho que só não estão testando. Por que não põem o nome da Marina Silva? Ou da Simone Tebet? Do Fernando Haddad? Estamos no escuro sobre como é que anda a apreciação de pessoas que não sejam Lula e não sejam Bolsonaro e direita. Existe um pedaço do eleitorado, que é o que vai decidir a eleição, que está atrás dessa pessoa. Ainda que para depois, no segundo turno, ir para outro lado. Mas falta pesquisar o campo inteiro e não apenas criar uma polarização. Porque é uma polarização criada pela pesquisa, não é criada pela vida.
Você falou que acha que Kassab está cometendo muitos erros, mas pode ocupar o espaço deixado pelo PSDB. Os tucanos tinham quadros vindos do mundo acadêmico, além de grandes economistas, e o PSD não é assim. O que você acha que o PSD é?
O PSD é o embrião de um partido que pode ser o futuro MDB ou o substituto do PSDB. O PSDB e o PT nasceram na resistência, e ela era uma combinação de políticos e intelectuais, além de operários. Era uma aliança ampla da sociedade contra a ditadura. O PSD é um partido que nasce da cabeça de um político pragmático, tradicional, que tem a visão de fazer um partido nacional. Ele chegou a fazer uma solenidade no Memorial JK para o lançamento da possível candidatura presidencial do Rodrigo Pacheco e eu achei ali ele tinha visto o vazio deixado pelo PSDB e tentaria ocupá-lo. Mas isso foi ocupado provisoriamente pelo Bolsonaro. O erro mais grave que Kassab comete é de se aproximar do Bolsonaro. Isso contamina o partido dele com uma pecha de extrema direita que cria uma rejeição desnecessária. Ele não precisa ser bolsonarista. Kassab tem essa ligação muito estreita com Tarcísio, que tem cometido muitos erros, não sei se por aconselhamento dele ou apesar dos conselhos dele. Tarcísio devia ter sido contra as decisões do Trump imediatamente. Não podia primeiro dar uma declaração aceitando e depois dizer que o Lula é que não quer negociar. Não dá para dois políticos fazerem a carreira ao mesmo tempo mentindo. A mentira é monopólio do Bolsonaro. Kassab apostou demais no Tarcísio e atrapalhou essa trajetória do PSD. Poderia contar com o apoio, por exemplo, dos economistas do antigo PSDB. Kassab tinha de ler os artigos que o José Guilherme Merquior escreveu para o Fernando Collor, que queria criar um partido social-liberal. (Confira os artigos de Merquior aqui, aqui, aqui e aqui). Ali tem claramente o que é um partido social liberal de uma forma muito visionária, porque continua contemporâneo.
É essa a ideologia que falta no Brasil?
No mundo atual, não cabem coisas puras. Não é possível ser só socialista ou só liberal. É um mundo em transformação em que há forças a serem respeitadas que o socialismo não respeitaria e onde há fragilidades sociais a serem contempladas com política social a partir do Estado. Então, ou é a social-democracia ou é o social-liberalismo. E nenhum deles está conseguindo atualizar seus valores e modelos para atender essa nova realidade. Eles insistem num modelo de proteção social que foi criado no pós-Primeira Guerra, e que deu certo no mundo inteiro, mas não dá mais, porque as sociedades não são mais as mesmas. Se eu fosse Kassab, leria Merquior e começava a conversar com os intelectuais para entender o que é ser social liberal. O centro não existe, sempre é dependente e definido pelos polos. Para sobreviver, o centro tem que se aproximar de um deles. Isso redefine a morfologia do sistema ideológico partidário.
E na esquerda? O PT seguirá dominante como partido político?
O PT já não é mais aquele partido ligado ao ABCD, industrial. Ele é hoje e já há algum tempo dominado por assalariados do setor público e do setor de serviços. Isso significa um partido com uma base muito menos organizada do que já foi. A história da social-democracia é a história de um partido que vai pros centros industriais, com muito operário no chão de fábrica, chega lá com o sindicato, faz o proselitismo e traz essa massa para si. Essa história acabou: essa indústria não existe mais. O PT já é uma outra coisa, mais heterogêneo e, com isso, tende a ter muitas divisões. Quando Lula sair de cena, o partido vai rachar. Não sei se vira vários partidos, mas vai ter muito conflito interno, e isso vai atrapalhar a possibilidade de uma nova liderança surgir. A sombra do Lula só produziu uma liderança no PT que é Fernando Haddad, uma pessoa brilhante, bem formada e que sabe que o mundo está mudando e, por isso, não tem posições muito ortodoxas. E que entendeu que a esquerda precisa ter pelo menos um modelo teórico ou analítico dessa transição para orientar suas ações e buscar construir uma nova utopia para o mundo pós-digital.
Você vislumbra como pode ser esse modelo?
Eu conheço bem a literatura marxista, dei aula de leitura de O Capital durante muito tempo. O modelo que está contido no Capital permitia fazer uma análise do capitalismo muito bem feita. Não no sentido de acabar com o capitalismo, não uma análise militante, mas de entender a dinâmica das relações industriais e de classes. De meados dos anos 1980 para cá, deixou de funcionar. Um dos conceitos fundamentais que tem a ver com a relação trabalho x capital, a mais-valia, não funciona mais, porque a mais-valia que o Marx criou era baseada na manufatura. Quando olhava para o funcionário público, por exemplo, ele chamava de trabalho improdutivo. Marx não falava do valor intelectual, que hoje é fundamental. Pela primeira vez a base marxista ruiu com essas transformações. Marx tinha noção disso, porque ele sabia que o processo fundamental de transformação social é a tecnologia. E é a tecnologia que está acabando com esse modelo. Então, para responder a sua pergunta, não tem mais esquerda. A esquerda tem de se reconstruir. Ela é necessária, porque sempre puxa o lado conservador, pró-elite, para uma uma visão mais próxima da sociedade, já que defende a sociedade melhor do que as outras correntes ideológicas. A esquerda está em crise junto com a sociedade que gerou a esquerda. E a direita também. Por isso é que ressurge esse movimento extremista de direita, um movimento muito reacionário que cresce negando a realidade.
Sérgio, faltou falar um pouco de Supremo Tribunal Federal e das transformações políticas do próprio STF. Uma redução do protagonismo político da Corte é uma transformação que também tende a levar mais alguns ciclos eleitorais?
Desde a Constituinte, o modelo de presidência de coalizão tende a produzir um Judiciário mais ativista, porque ele tem uma propensão a conflito entre o Executivo e o Legislativo, mais conflito dentro do próprio Legislativo, que acaba levando à judicialização da política — o que inevitavelmente produz a politização do Judiciário. Por outro lado, essa judicialização tem criado muitos temas urgentes que o Supremo não pode simplesmente deixar na gaveta para ir analisando de acordo com a possibilidade ou com a vontade dos ministros. É uma disfunção do sistema político brasileiro, uma disfunção constitucional. A falta de confiança dos atores políticos, sobretudo na sociedade e no Legislativo, leva à constitucionalização das políticas públicas. Coisas comezinhas, que deveriam estar em lei para serem facilmente modificáveis, estão na Constituição porque um não confia no outro e faz uma PEC. Isso criou uma urgência nas decisões do Supremo e ele foi se autocratizando. As decisões passaram a ser monocráticas, eles legitimaram essas duas turmas, que são muito pequenas para produzir o efeito da teoria clássica do Weber, de criar um colegiado para que a intersubjetividade produza um arremedo de objetividade. O Supremo vai ser cada vez mais criticado por gente que não vai concordar com a decisão, que vai achar que foi arbitrária ou mal fundamentada. Agora, quando você tem os 11 julgando, aumenta a incerteza da decisão. E democracia se constrói com incerteza: a incerteza de quem vai ser eleito, de qual vai ser a decisão. O Supremo vai ter de voltar ao colegiado como órgão supremo mesmo, sem turma, com menos decisão autocrática. Essa mudança só vai poder ser feita — e, em alguns casos, ela vai depender de legislação — depois que tiver um Congresso mais governável. Porque senão vai ser uma decisão baseada na retaliação. E aí é a democracia que perde.
As controvérsias de Alexandre
Sem detalhar quais fatos ou pessoas seriam investigadas, o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli anunciou a abertura do inquérito 4.781, que viria a ser amplamente conhecido como o inquérito das fake news. Era início da sessão da quinta-feira, 14 de março de 2019. Embora não tenha especificado o objeto da apuração, justificou sua decisão com base em ataques à Corte.
“Considerando a existência de notícias fraudulentas, conhecidas como fake news, denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, seus membros e familiares, resolve, como resolvido já está, nos termos do artigo 43 e seguinte do Regimento Interno, instaurar inquérito criminal para apuração dos fatos e infrações correspondentes em toda a sua dimensão”, declarou da tribuna. Em seguida, designou o ministro Alexandre de Moraes como relator do caso, alçando-o ao centro do debate público pelos seis anos seguintes — e contando. Desde então, muitas das decisões de Moraes vêm sendo questionadas por juristas e pela opinião pública.
O Meio ouviu três grandes especialistas para tentar esclarecer as principais. São eles: Gustavo Sampaio, professor de Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF); Davi Tangerino, advogado criminalista e professor de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); e Thiago Bottino, coordenador do curso de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV-Rio).
Entre decisões monocráticas e inquéritos de ofício
As decisões monocráticas tomadas por Alexandre de Moraes à frente dos inquéritos no STF se tornaram parte da rotina, não uma exceção. A prática é comum em casos que envolvem autoridades com foro especial, e a centralização, apesar de criticada, encontra respaldo no funcionamento do próprio tribunal.
“Todas as decisões monocráticas são passíveis de revisão depois por agravo. De um jeito ou de outro, elas são colegiadas no final”, afirma o criminalista Davi Tangerino. Ele vê mais problema na duração indefinida das investigações do que no formato das decisões: “Eu acho muito mais problemático um inquérito originário que não tem fim do que a possibilidade de decisões monocráticas.”
Para Bottino, a responsabilidade pelas decisões no STF costuma ser atribuída exclusivamente ao relator, mas isso não corresponde ao que, de fato, ocorre. “As pessoas tendem a se concentrar na figura do relator, quando ele não é um juiz de primeiro grau. Ele está ali atuando como o responsável pelos atos de gestão, mas várias dessas decisões são tomadas no colegiado.”
Outra crítica recorrente gira em torno dos inquéritos abertos de ofício — ou seja, sem provocação do Ministério Público, como foi o das fake news. Mas, segundo o professor Gustavo Sampaio, esse tipo de iniciativa tem amparo no próprio regimento do STF, desde que os fatos investigados envolvam diretamente a Corte. “Não é que o juiz tenha um poder geral de instauração de inquérito. O artigo 43 do Regimento Interno prevê que, quando crimes ocorrem dentro do Supremo ou em sua cercania imediata, o presidente da Corte pode determinar que a Polícia Federal instaure um inquérito, ou designar outro ministro para isso.” Foi o que aconteceu em 2019. “Havia ameaças à integridade física e moral de ministros e seus familiares. O presidente do Supremo entendeu que o tribunal estava sendo diretamente atacado e designou Moraes para conduzir os desdobramentos. Daí surgiu a percepção — equivocada — de que ele teria instaurado tudo por conta própria.”
Sampaio esclarece que a atuação do ministro Moraes não equivale a uma condução direta das investigações ou da acusação: “Quem investiga é a Polícia Federal, quem acusa é o Procurador-Geral da República, e quem julga é o STF. O ministro Moraes apenas determina que a PF atue, conforme previsto no regimento.”
Tangerino concorda que há base legal, mas faz uma ressalva. “O ordinário seria mandar para o Ministério Público, que é o titular da ação penal. O ideal seria que o Supremo tivesse um papel de supervisão, e não de impulso direto das investigações.”
Concentração de casos
A investigação originada pelo inquérito das fake news, que já teve como alvo políticos, empresários e usuários das redes sociais, permanece em andamento sob sigilo e acabou desencadeando uma série de outras apurações. Dela derivam o inquérito das milícias digitais, a investigação sobre os atos antidemocráticos, os ataques de 8 de janeiro e a consequente tentativa de golpe de Estado atribuída ao ex-presidente Jair Bolsonaro e seus aliados.
Um dispositivo previsto no Regimento Interno do STF garante a prevenção de competência, permitindo que um ministro ou uma turma do tribunal siga responsável por casos relacionados a processos já sob sua relatoria. Em outras palavras, a condução de diversos temas de repercussão nacional passou a se concentrar na toga de Moraes, todos interligados, direta ou indiretamente, ao inquérito das fake news.
Por um lado, a ferramenta visa garantir a uniformidade em decisões relativas a crimes conexos. Por outro, se aplicada excessivamente, pode gerar distorções jurídicas, explica Gustavo Sampaio. Segundo ele, embora o regimento permita a prevenção, o ideal seria que, em casos com objetos distintos, a distribuição da relatoria fosse feita por sorteio, como manda a praxe. “Se os crimes são distintos, o prudente é distribuir a relatoria livremente. Veja, nenhum ministro fica impedido de concorrer à relatoria, nem aquele próprio, mas ele só será relator se, por acaso, o sorteio cair no nome dele. É como jogar um dado em cima da mesa e cair duas vezes no número seis. Não é o mais provável, mas pode acontecer”, comparou.
Ele lembra que, no caso do inquérito das fake news, Alexandre de Moraes foi escolhido diretamente por Toffoli, e não por sorteio. À medida que outras investigações passaram a ser consideradas conexas, a relatoria foi se acumulando com Moraes, por uma decisão que o professor define como “de conveniência lógica”. No entanto, pondera que a prática gerou distorções na percepção de muitos: “no debate público, não há como expor todos elementos técnicos do direito processual penal. Afinal de contas, as pessoas não são obrigadas a ser graduadas em Direito, não é? Daí foi aparecendo aquela ideia de que o ministro seria uma espécie de juiz universal de todas as causas.”
Segundo ele, os excessos de conexão, de relatoria em torno do ministro, “só foram dando combustível para que o STF fosse transformado em adversário, colocado no âmbito das relações políticas como uma espécie de perseguidor — e não como um órgão imparcial de julgamento”. Para Sampaio, esse cenário contribui para o desgaste da imagem e da confiabilidade da Corte.
Desgaste, aliás, medido em pesquisas de opinião. Divulgado no fim de junho, um levantamento do Datafolha apontou que 58% dos brasileiros dizem sentir vergonha dos ministros do Supremo, enquanto 30% expressam orgulho. Mais recente, na terça-feira, 5, o mesmo instituto revelou que 36% classificam o trabalho do STF como “ruim ou péssimo” — um salto de oito pontos percentuais em relação à pesquisa anterior, de março de 2024.
Cautelares e prisão domiciliar
Os dados dessa última sondagem foram colhidos antes de o magistrado decretar a prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro, réu no processo que apura a tentativa de golpe de Estado que culminou nos ataques de 8 de janeiro de 2023, mas preso por descumprir medidas cautelares em outro inquérito: o que investiga a atuação de Eduardo Bolsonaro nos Estados Unidos para que Donald Trump interfira na política brasileira e, consequentemente, nos processos contra o ex-presidente. cautelares, debatidas no meio jurídico e criticadas por apoiadores de Bolsonaro, fomentaram atos em defesa do ex-mandatário no dia 3 de agosto em capitais como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Salvador, Belém e Campo Grande.
A determinação da prisão domiciliar ocorreu após Moraes concluir que Bolsonaro descumpriu as cautelares ao participar, por chamada de vídeo, de um ato com apoiadores em Copacabana e na Av. Paulista. Dias antes, o ministro já havia sinalizado possível descumprimento ao comentar a presença de Bolsonaro em uma entrevista coletiva no Congresso Nacional, na qual ele falou com jornalistas e as imagens circularam amplamente nas redes sociais.
O vídeo da manifestação em Copacabana foi publicado pelo filho de Bolsonaro, o senador Flávio Bolsonaro, o que, na avaliação de Moraes, reforçou a violação da proibição de uso das redes sociais, direta ou indiretamente. O de São Paulo, pelo deputado Nikolas Ferreira, do PL de Minas. “A cautelar imposta acabou virando uma certa armadilha. Pessoalmente, sou contra essa cautelar justamente porque ela tem cheiro de censura prévia”, analisa Davi Tangerino. Juristas explicam que medidas cautelares, por definição, não devem funcionar como penalidades, mas sim como garantias para o regular andamento do processo.
Antes da prisão domiciliar, a Polícia Federal (PF) havia solicitado a prisão preventiva do ex-presidente, sob alegação de risco de fuga e tentativa de obstrução de justiça. O procurador-geral da República, Paulo Gonet, reconheceu os riscos apontados, mas avaliou que a prisão seria uma medida excessiva. Em seu parecer, defendeu a imposição de medidas alternativas. Moraes seguiu a recomendação e, em 18 de julho, impôs o uso de tornozeleira eletrônica, restrições de contato com autoridades e investigados, proibição de acesso a embaixadas e consulados, além da vedação do uso de redes sociais — diretamente ou por meio de terceiros. O ministro ainda alertou que o descumprimento de qualquer uma dessas condições implicaria a decretação da prisão.
Foi o que ocorreu na segunda-feira, dia 4, quando Moraes determinou a prisão domiciliar de Bolsonaro, sob o entendimento de que ele violou as medidas. A decisão foi referendada pela maioria da Primeira Turma do STF.
Para Tangerino, a cautelar foi pensada como uma alternativa intermediária, menos severa do que a prisão preventiva, mas acabou se tornando o “epicentro de toda essa agudização recente”. Ele destaca que a proibição de conteúdo em perfis de terceiros, por exemplo, pode ser compreendida dentro de um contexto específico, já que Moraes teria considerado o modus operandi sistemático de Bolsonaro, que frequentemente utiliza canais de aliados para se comunicar. Por esse precedente, não vê gravidade nessa parte da decisão. Já outros episódios, como a participação de discursos de Bolsonaro no Congresso, não configurariam violação da cautelar, na avaliação do professor. “Ele estava em um espaço público, falando com jornalistas, e aquilo foi parar nas redes. Hoje em dia a comunicação é assim.”
Tangerino conclui sua crítica de forma direta: “Acho que a cautelar que o Alexandre queria dar era para o Jair não ser o Jair. Tipo: ‘pode falar, mas não ataca ninguém’; ‘pode falar, mas não incite o ódio’. Não existe isso. Essa é a essência dele. Se a intenção era impedir esse tipo de manifestação, mais coerente teria sido proibi-lo de falar, o que seria flagrantemente inconstitucional. Então, ele criou uma cautelar meio esquisita — e deu no que deu.”
Thiago Bottino traz um ponto de vista técnico distinto sobre o tema. Ele lembra que o ordenamento jurídico brasileiro prevê, no artigo 319 do Código de Processo Penal (CPP), um rol de nove medidas cautelares — entre elas, monitoramento eletrônico, recolhimento domiciliar noturno e proibição de contato com determinadas pessoas ou acesso a certos locais. Na visão dele, esse rol deveria ser seguido à risca. “Particularmente, eu sou partidário do grupo que entende que é um rol taxativo. Ou seja, nada além do que a lei previu. Mas sou minoritário”, admite.
Segundo Bottino, na prática, essa interpretação mais restrita não se sustenta: “Todos os juízes de primeiro grau no Brasil acabam criando medidas cautelares alternativas à prisão. E, embora muitas dessas medidas não estejam previstas em lei, as defesas geralmente não recorrem, porque consideram melhor do que a prisão. Por exemplo, a proibição de falar com outros investigados… isso não existe na lei, e é super comum de vermos.”
Diante desse cenário, ele reconhece que há precedentes jurisprudenciais, inclusive no STF e no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que permitem aos juízes, desde que fundamentem adequadamente, aplicar medidas não previstas no CPP, respeitando ainda os princípios da proporcionalidade e da legalidade.
Davi Tangerino reforça que, mesmo com críticas às cautelares impostas, uma vez decretadas e validadas pela Primeira Turma do Supremo, elas devem ser cumpridas — sob pena de prisão: “Nós podemos discordar de todos os passos até a cautelar. Mas, uma vez que foi dada e validada pela turma, com aviso claro: ‘se descumprir, vou prender’, e Bolsonaro vai lá e, escancaradamente, descumpre… o tribunal precisa agir para não ficar desacreditado. Porque, se dá uma ordem, alguém a desobedece abertamente e nada acontece, está dada a senha para ninguém mais obedecer, né?”
Ainda assim, Bottino discorda da decisão que culminou na prisão domiciliar: “A prisão domiciliar, pela lei, é uma alternativa restrita: prevista para quem tem mais de 80 anos, está extremamente debilitado de saúde ou tem filhos menores de 12 anos — o que não é o caso do ex-presidente, que estava saindo na rua normalmente, indo para lá, para cá. Então, mesmo diante da violação das cautelares, não caberia essa forma de prisão. Se por um lado, em um determinado momento, Moraes não seguiu estritamente a lei, culminando em algo ruim para Bolsonaro... por outro lado, agora, não seguiu estritamente a lei e o beneficiou”.
Diante disso, Gustavo Sampaio vê um possível cálculo estratégico por parte do Supremo: “O tribunal pode estar criando antecedentes lógicos para outras situações. As ações penais relacionadas ao 8 de janeiro envolvem, em sua maioria, réus idosos, com comorbidades. O próprio ex-presidente já passou por várias crises de saúde. Acredito que o ministro Moraes optou por um passo mais econômico, que pode ser replicado adiante”.
Mas caberia ao STF mesmo?
O movimento nas ruas em defesa de Bolsonaro ecoou no Congresso, onde seus aliados protagonizaram um ato inédito: ocuparam as mesas diretoras da Câmara dos Deputados por 36 horas e do Senado por 47 horas. Entre as principais exigências para encerrar o motim estava o fim do foro privilegiado.
Pelas regras atuais, autoridades públicas são julgadas por tribunais superiores, como o STF, quando os crimes ocorreram durante o exercício do cargo e têm relação com suas funções. Esse entendimento, recente, passou a vigorar após uma mudança da Corte em março, que ampliou a competência do Supremo para julgar autoridades mesmo após o término do mandato, desde que os crimes estejam ligados ao exercício da função pública. A oposição, por sua vez, pede a transferência dos processos para instâncias inferiores.
Segundo o professor Gustavo Sampaio, embora hoje a competência para julgar Bolsonaro, de fato, caiba ao STF conforme a interpretação mais recente, há um problema estrutural mais profundo: a oscilação constante nos entendimentos da própria Corte. “É preciso fazer uma crítica firme ao Supremo por conta dessa inconstância hermenêutica. Estamos falando de cláusulas que estão na Constituição, não apenas no Regimento Interno. Quando o Supremo altera esse entendimento repetidamente, passa a ocupar um lugar de escolha política, e não apenas de interpretação constitucional.”
O histórico ajuda a entender esse dilema. Até 2018, prevalecia o entendimento de que o foro especial era mantido mesmo após o fim do mandato, desde que o crime tivesse sido cometido durante o exercício da função. No entanto, naquele ano, com o julgamento da Ação Penal 937, relatada pelo então ministro Luís Roberto Barroso, o STF restringiu essa prerrogativa: só seriam julgados pela Corte crimes cometidos durante o mandato e em razão do cargo — o chamado critério in officio et propter officium. A mudança, justificada pela sobrecarga de ações penais derivadas do Mensalão, permitiu que cerca de 90% dos processos fossem redistribuídos para a primeira instância.
Mas o cenário voltou a mudar nos anos seguintes, especialmente após a reabertura do caso do assassinato da vereadora Marielle Franco. A investigação apontou o possível envolvimento de um deputado federal, mas os indícios se referiam a fatos ocorridos antes do início de seu mandato — o que, pelas regras de 2018, colocaria o caso fora da alçada do STF. Para contornar esse impasse, o Supremo reviu novamente sua posição, ampliando sua própria competência: passou a considerar que poderia julgar crimes anteriores ao mandato, desde que a investigação ou o processo tivessem sido iniciados enquanto o investigado ainda estivesse no exercício do cargo. Essa guinada foi consolidada em nova mudança de entendimento, em 2025.
Para Sampaio, alterações jurisprudenciais fazem parte do processo, mas o ritmo e a profundidade dessas mudanças preocupam. “A sociedade é dinâmica, evolui. Agora, mudar de entendimento em intervalos curtos é problemático. Uma mudança dessa magnitude poderia ocorrer a cada 50 anos. O próprio Supremo acaba alimentando os argumentos contrários ao foro especial”, observa. Ainda assim, ele defende a prerrogativa de função como uma cláusula legítima do sistema constitucional. “Mas é preciso reconhecer: a crítica da direita ao foro, hoje, não é teórica nem doutrinária. É reativa. É uma tentativa de escapar das condenações no STF, onde o índice de sentenças desfavoráveis tem aumentado.”
Essa percepção sobre as mudanças constantes na interpretação do Supremo é compartilhada por outros especialistas. “Infelizmente, o Supremo tem pouca deferência aos próprios precedentes. O problema nem sempre é mudar o regimento — pior do que isso é mudar a interpretação”, afirma Thiago Bottino, professor da FGV-Rio.
Turma ou pleno
Outro ponto que gera controvérsia é a instância de julgamento. Segundo Bottino, a questão sobre o caso de Bolsonaro ser analisada pela Primeira Turma e não pelo plenário também revela um tensionamento entre norma escrita e construção interpretativa. “A regra sempre foi que a ação penal tramita no plenário. Depois mudou para as turmas, voltou ao plenário, e depois voltou novamente para as turmas. Hoje, a norma regimental é clara: deve ser julgado pela turma, exceto quando se trata do presidente da República em exercício.”
Bottino reconhece que a presença de um ex-presidente como réu pode sugerir uma exceção, mas pondera: “O próprio foro por prerrogativa foi mantido para evitar manobras, como renunciar ao cargo para escapar do STF. Nesse contexto, argumenta-se que, por envolver um ex-presidente, o caso deveria permanecer no plenário. Mas, entre seguir uma norma escrita e uma construção argumentativa, eu prefiro seguir a norma escrita.”
Além de questionar a competência da Corte para julgar Bolsonaro, a oposição também acusa o ministro Alexandre de Moraes de atuar como “relator, juiz e vítima” nos inquéritos que envolvem o ex-presidente. Para o criminalista Davi Tangerino, no entanto, essa crítica não encontra respaldo jurídico. “Esses ataques ao Alexandre só começaram depois de ele ser nomeado relator. E o Código de Processo Penal é claro: não se pode alegar impedimento com base em fatos que aconteceram depois da designação. Se a animosidade surgiu posteriormente, isso não é fundamento para afastá-lo”, explica.
Ele acrescenta que permitir esse tipo de argumento abriria um precedente perigoso: “Se fosse assim, bastaria atacar ou ameaçar um juiz para tentar tirá-lo do caso. E isso a lei quer justamente evitar.” Para Tangerino, ainda que o caso envolva questões sensíveis e grande tensão política, do ponto de vista jurídico, a atuação de Moraes não apresenta irregularidades. “É um tema delicado, mas estou convencido de que, nesse ponto, não há nada de errado.”
O futuro ao STF pertence
“Eu vou te mostrar um fato que o Alexandre de Moraes não quer que você veja.” É assim que o deputado federal Eduardo Bolsonaro inicia um vídeo publicado na quarta-feira, 6, e que circula entre apoiadores no Telegram. Pelos minutos seguintes, discorre sobre a chamada “Vaza Toga 2” — uma matéria assinada pelos jornalistas americanos Michael Shellenberger, David Ágape e Eli Vieira, que apresenta um suposto dossiê acusando a existência de um gabinete paralelo do ministro Alexandre de Moraes. Segundo a reportagem, haveria uma troca informal de informações entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), utilizada para embasar a prisão de manifestantes bolsonaristas durante e após os atos de 8 de janeiro de 2023. Não está claro ainda se essas informações foram usadas nas condenações e ficaram fora do alcance das defesas dos réus.
Mas o caso e as outras críticas acumuladas até aqui sugerem pergunta inevitável: existe risco de anulação dos processos conduzidos por Moraes?
“Nós estamos falando de decisões do próprio Supremo Tribunal, muitas vezes tomadas pelo ministro, mas referendadas pela Corte. Será que o STF vai anular uma decisão tomada por ele próprio? Vai desconsiderar as escolhas feitas por ele próprio? Não há nenhum tribunal acima do STF. Então, acho muito improvável, a não ser que haja uma mudança brusca na composição da Corte nos próximos anos. O que, na minha avaliação, não deve ocorrer”, conclui Sampaio.
Economia criativa, de noite e de dia
Neste ano, Alê Youssef abriu duas novas casas no Centro de São Paulo. No primeiro semestre nasceu a Laje do Baixo, um lugar mais diurno para valorizar o samba, aproveitando o embalo do sucesso do bloco de carnaval do qual foi um dos fundadores em 2009, o Acadêmicos do Baixo Augusta. E, com Ale Nastacci e Facundo Guerra, acaba de inaugurar a Formosa Hi-Fi, um bar de áudio que ocupa o subsolo do Viaduto do Chá. Ex-secretário de Cultura na gestão Bruno Covas, além de empresário da balada, Alê é um dos maiores especialistas em economia criativa, mantendo uma coluna no UOL. Nos encontramos para um drink no Formosa Hi-Fi e depois fizemos esta conversa por telefone para falar sobre os rumos da política cultural no Brasil e, claro, dos dois novos projetos paulistanos. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Nós passamos pelo maior ataque à cultura com o governo Bolsonaro. Esperava-se que o governo Lula desse mais importância para essa área ao reinstalar o MinC. Mas até agora não vimos avanço significativo. Há um descaso federal com o potencial da economia criativa??
Olha, não se viu um avanço significativo porque, infelizmente, não houve uma atualização do que nós entendemos como política cultural. A gente tem uma maneira de pensar muito ultrapassada. A política cultural é restrita e pouco conectada com os novos tempos e especialmente com as novas gerações. Existe uma incompreensão do que significa a economia criativa. Existe uma estigmatização por parte de movimentos que estão presos a dogmas um pouco mais sectários, antigos, de que a economia criativa seria uma ameaça à pureza, entre aspas, da cultura, que só poderia se financiar através do dinheiro do orçamento público direto. Por outro lado, neste ano foi criada pelo governo federal a Secretaria de Economia Criativa, que é um avanço. Mas esse quadro maior gera uma confusão, uma guerra de narrativas, uma disputa de poder e de espaços no universo cultural, o que faz com que essa atualização fique cada vez mais atrasada.
Por conta das disputas do próprio setor cultural?
As próprias linguagens disputam entre si porque concorrem por um cobertor muito curto que é o orçamento público direto. É um contrassenso. As pessoas não querem ampliar o leque de possibilidades de alcance da política cultural para aumentar o dinheiro disponível porque têm receios ideológicos, às vezes protecionistas em relação ao Estado, muito por conta do acesso que já têm a determinado subsídio. Mas ao mesmo tempo brigam entre si para garantir esse fomento. É uma situação estranha e que parece não ter solução, porque se perpetua de forma muito contundente. O setor cultural é o único que não consegue se atualizar. Fica aí rodando em círculos há tantos anos em torno da mesma política. E não é um problema só desse governo, isso já vem há algum tempo.
Hoje o PIB da cultura já é maior do que o da indústria automobilística. Mas não chega nem perto de receber os mesmos incentivos fiscais. Existem modelos mais eficientes do que as leis de renúncia fiscal?
A economia criativa, no mundo inteiro, passa por ações estratégicas de crédito. Apesar de uma coisinha ou outra, de algum tipo de ação meio paliativa, não existe um financiamento do BNDES para um setor que representa 3,11% do PIB. É o setor que mais gerou emprego recentemente. Como é que você não faz uma análise ponderada desse potencial e investe com esse olhar de economia criativa? Então, de fato, achar que a política de cultura tem de ser restrita a incentivo fiscal, é simplificar demais a capacidade de abrangência que ela tem. Quando se faz uma política de crédito, você tem a capacidade de ser muito, mas muito mais capilar do que quando você faz uma política de incentivo, porque o incentivo tem regras, complexidades e processos que acabam beneficiando quem já tem a expertise de se relacionar com o mercado e de fazer processos com esse mecanismo. O crédito é mais ágil e mais democrático. A gente tem quase 200 mil CNPJs derivados da economia criativa. Se você fizer um cálculo de quantos prêmios de fomento ou de incentivo foram pagos versus esse número de CNPJs, aí você já vê o tamanho do déficit, da inacessibilidade de recursos que existe hoje no nosso setor. Dar crédito seria também uma maneira de dialogar com esse novo empreendedorismo criativo, que me parece que é um desafio não só dessa área, mas para todas as áreas do governo. Sem juízo de valor, existe uma nova realidade que se impõe e a gente precisa se adaptar a ela.
Muito se fala em descentralização das verbas da cultura. Há a célebre frase de Gilberto Gil, de quando era ministro de Lula, de que era necessário fazer um Do-In na cultura brasileira, significando levar verbas para outros lugares que não os grandes centros. Você acha que essa ainda é uma visão válida ou teriam outros caminhos?
Essa teoria é obviamente importante, dado o nosso abismo social. Entretanto, com a revolução tecnológica , com a hiperconectividade e também com o hiperadensamento das periferias dos grandes centros urbanos, fica muito complexo você simplesmente fazer uma divisão de aqui pode, aqui não pode. Há vulnerabilidades em todos os lugares. Como é que você explica para uma massa de jovens das periferias do Rio, de São Paulo, de BH, de Brasília que não vai fazer uma linha porque vai descentralizar para o outro que está precisando mais? As elites têm um acesso à cultura extraordinário numa cidade como São Paulo, mas a gente sabe do déficit que a periferia da cidade tem. O mapa da Rede Nossa São Paulo sempre mostra o acesso a cinema, teatro, museus, tudo isso é muito complexo mesmo numa cidade tão impressionantemente rica culturalmente como São Paulo. Essa atualização de visão passa pela compreensão de qual é o protagonismo do jovem nesse processo. As produtoras de funk têm uma capilaridade, uma força tão impressionante no território e elas se fazem totalmente independentes, sem qualquer tipo de apoio. Como é basicamente toda a história das culturas periféricas no Brasil, né? Quando você territorializa essa narrativa de que precisamos antagonizar quem teve recurso com quem nunca teve, e lê a letra fria do percentual de valores que cada cidade recebeu, tanto de incentivo como de fomento, você ignora que esses valores estão no centro rico, onde as grandes produtoras estão sediadas.
Agora vamos falar de coisas bacanas. Você abriu duas novas casas no Centro. Quais são as histórias da Laje do Baixo e do Formosa Hi-Fi?
A Laje era um sonho antigo nosso, desde os tempos da Casa do Baixo Augusta, que era um espaço de múltiplos usos, uma escola livre de economia criativa, de eventos e um lugar de ativismo pelo direito à cidade, e fechou na pandemia. A gente queria reviver um pouco essa experiência, mas sem aquele conteúdo todo. A melhor notícia cultural de muitos anos é o que aconteceu recentemente no Brasil com as rodas de samba e nós queríamos mostrar isso. Essas rodas foram apropriadas pelas novas gerações e estão acontecendo no Brasil inteiro, inclusive no Centro-Oeste, em lugares de muita expressão da música sertaneja. Elas transformaram o hábito cultural do brasileiro. Na pesquisa de hábitos culturais recentemente publicada pela JLeiva, o samba e pagode estão em segundo lugar, quatro pontos percentuais apenas atrás do sertanejo. E nas plataformas de streaming, na última aferição feita, o samba passou o sertanejo depois de oito anos. Tudo isso tem um pouco a ver com aquele movimento que aconteceu nos grandes centros urbanos brasileiros de retomada dos carnavais ou de criação dos carnavais de rua, especialmente em São Paulo. A gente fazer uma casa de samba no Centro é um jeito de prestar homenagem ao samba da nossa cidade e de colocar a visibilidade do bloco do Baixo Augusta a serviço desse movimento do samba o ano todo.
E ali perto você acaba de inaugurar a Formosa Hi-Fi, que é para um outro público, não?
Tem uma diversidade nos dois projetos. Mas a Formosa tem um aspecto, digamos assim, dedicado à questão da excelência de sonorização, do hi-fi, do som em alta definição, que também cumpre um papel de representação nessa miscelânea cultural que é a nossa cidade. A Formosa surge a partir de um encontro meu e do Ale Natacci com o Facundo [Guerra]. Nós estávamos de olho naquele subterrâneo do Viaduto do Chá para fazer essa experiência que acabou se concretizando na Laje, e o Facundo tinha um projeto já de anos de fazer uma casa de altíssima qualidade sonora. Nós juntamos as duas expectativas e desejos e criamos esse projeto que tem várias camadas históricas, ao retomar o projeto original do Mário de Andrade, que projetou o espaço para ser uma extensão do Theatro Municipal para danças populares, com gastronomia paulistana, uma mistura de comida brasileira empratada à francesa, aquela visão futurista do Mário. Mas ele saiu da Secretaria de Cultura e esse projeto nunca se concretizou. A Elis Regina ensaiou o show do Falso Brilhante lá, o Teatro da Vertigem fez aquela peça inspirada no Deleuze naquele túnel. Decidimos fazer o bar de audição com esse peso histórico e colocamos isso no nosso cardápio, nos nossos drinks. E, claro, também com a coincidência histórica maravilhosa de fazer 20 anos da abertura do Vegas e do Studio SP neste ano.
Aproveite o final de semana para assistir à aula inaugural do curso Teoria Econômica para Diálogos Construtivos. Está no ar em nosso YouTube! Uma aula para quem não é economista mas se interessa pelo assunto. Vale o play: assista aqui.
Olha, até teve uma fraldinha no meio, mas os leitores quiseram mesmo é saber da prisão de Bolsonaro e do que pensam os colunistas deste Meio:
1. YouTube: Ponto de Partida - O que Bolsonaro não diz.
2. YouTube: Ponto de Partida - Quem é a direita não-bolsonarista?
3. Globo: Direitos e deveres de Bolsonaro na prisão domiciliar.
4. Panelinha: Hmmm, uma boa fraldinha… assada na cerveja.
5. YouTube: Cá entre Nós - Quem vai parar Xandão.