Edição de Sábado: De noite na cama…

“Meu gemido foi ainda mais alto quando ele começou a explorar o meu sexo. Seu dedo médio abriu meus grandes lábios, seguindo até o meu clitóris e rodeando a minha entrada, fazendo com que eu ficasse ainda mais úmida." Essa é Tatiana Fisher. Ela é estagiária no escritório de Deborah Lennox, a promotora que lhe servia de inspiração. Quem a acaricia é Tyler Lennox, irmão de Deborah, um respeitado e cativante juiz. O affair lascivo entre eles resultou numa gravidez. Mas Tyler, poderoso mas ordinário, duvidava que a criança fosse sua. E, assim, enquanto se discute o caráter de Tyler e a carreira de Tatiana, vão se entremeando cenas de sexo tórrido.

Essa é a fórmula do livro O bebê do juiz, de Jéssica Macedo, uma das mais populares autoras de literatura hot no Brasil. E de quase todas as obras do gênero. É erótico? Sim. Tem sexo explícito? Opa. Mas tem um enredo em que as relações sexuais acontecem? Sempre. Porque, em larga medida, é assim que o desejo feminino se manifesta. Pode vir completamente desavergonhado, depravado até. Desde que faça sentido naquela trama. Há um mercado literário inteiro criado em torno dessa lógica. E, com a facilidade da publicação e da leitura no ambiente digital, ele prospera. Os romances eróticos vendem milhões de páginas mensalmente em plataformas digitais como o Kindle, ocupando quase toda a lista dos e-books mais baixados e vendidos. Escrito majoritariamente por mulheres e para mulheres, o gênero ganhou mais força durante a pandemia, quando surgiram novas autoras e leitoras.

Os romances apimentados levam mulheres a descobrir o prazer de ler e de ter uma vida sexual mais livre, quebrando tabus. Tudo isso numa zona de conforto de equipamentos eletrônicos que, por não exibirem as capas dos livros, não revelam a “indecência” da leitora para o mundo. O biopsicólogo evolucionista Marco Varella, professor visitante e pós-doutorando de Psicologia Experimental na USP, diz que sempre que estamos em contextos menos vigiados por outros ou mais distanciados dos outros temos uma sensação de anonimato que desinibe comportamentos reprimidos por aceitação social, o que inclui a sexualidade. “Ler livros eróticos digitais abre a possibilidade de se levar a obra a qualquer lugar. A capa do livro não vai ficar à mostra, o que dá um gosto a mais de fazer algo socialmente proscrito em público, no metrô, por exemplo, sem consequências pessoais negativas.”

A autora Jéssica Macedo é mineira, tem 27 anos. Ela escreve desde os 14, quando lançou Magia, uma fantasia infanto-juvenil, inspirada no universo de vampiros e lobisomens. Nesses 13 anos, publicou 119 livros, sendo 102 romances hot. Sua estreia nesse gênero aconteceu já no formato digital, em 2015, com Do sangue ao desejo — ainda no campo da fantasia, mas com personagens mais velhos e detalhes picantes. O título ficou entre os cem mais baixados por alguns dias na Amazon.

O foco nos livros hot veio da percepção mercadológica de Jéssica de que era ali que estava o interesse e, portanto, a grana. Em 2020, como um dos efeitos da pandemia, o número de leitores aumentou. A demanda pelos livros picantes também. “A inspiração vem do que está ao redor. A escrita é um produto do meio. As temáticas são as que o público quer. Vejo as tendências, os temas de interesse. É mais sobre o público do que sobre mim.” Funciona. Várias obras de Jéssica aparecem entre as cem mais baixadas ou compradas na Amazon. Lançado em janeiro de 2021, Virgem prometida tem 458 páginas. Desde então, contabiliza 17 milhões de páginas lidas. É como se o livro tivesse sido lido na íntegra mais de 37 mil vezes. Essa contabilização pode parecer estranha, mas é por página lida que os autores são remunerados quando optam por exclusividade do e-book na Amazon ao entrar no programa de assinatura mensal Kindle Unlimited, que custa para os leitores R$ 19,90 por mês. Outros números de Jéssica impressionam: seus mais de cem livros levaram, até este mês, à leitura de meio bilhão de páginas, além de ter vendido mais de 210 mil e-books. Não é à toa que, em dezembro de 2021, ela foi listada pela Forbes Under 30, como destaque do mundo literário.

Jéssica entrou no mundo dos livros de forma independente, pelo papel, com o apoio dos pais. Para isso, dividiu o sonho com outras frentes: cursou Cinema de Animação e Artes Digitais na UFMG e trabalhou por três anos em uma agência de publicidade. A exclusividade às letras só foi possível quando o digital entrou na sua vida. E, durante um tempo, seguiu se dividindo. Escrevia no ônibus e onde mais fosse possível para dar conta de três produções simultaneamente. “Antes, eu pagava para fazer meus livros. Com a plataforma digital, comecei a receber”, conta Jéssica, que, desde 2017, também é dona do Grupo Editorial Portal, que vende seus livros hot em papel e outros gêneros, seus e de outros autores.

Organizadíssima para dar conta de uma produção tão intensa, Jéssica escreve de segunda a sexta, das 9h às 18h. Na última segunda-feira, sua rotina foi interrompida com a chegada de Aurora, sua primeira filha. Mas, nos últimos meses da gravidez, adiantou o trabalho, deixando produções prontas para poder desfrutar de ao menos dois meses de licença-maternidade e não deixar suas fãs esperando por mais uma história.

Os passos de Jéssica são seguidos por outras autoras que descobriram no digital e no erótico o caminho para concretizar o sonho de viver dos livros. É o caso da carioca Lola Belluci, de 29 anos. O nome não é o de batismo. Hoje, ela usa a própria imagem, mas prefere deixar o nome original de lado. O pseudônimo é herança do início de sua jornada, quando ainda dividia a vontade de escrever com as aulas de português e literatura para alunos do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio.

Formada em Letras pela UFRJ, Lola sempre gostou de ler. Com o tempo livre surgido na pandemia, passou a ler mais ainda. Foi quando se perguntou, pela primeira vez, se conseguiria escrever. Tomou coragem e fez um conto — e já começou no erótico. Distribuiu para as amigas que relataram ter sentido o que ela sentira ao escrever. Foi uma primeira tentativa. Mas seguiu apenas como leitora. Um dia, ficou indignada com o fim de um livro hot que estava lendo. Naquele momento, teve a certeza de que podia fazer melhor. Então, sentou e escreveu uma história. Dessa vez, mais longa. Isso foi em abril de 2020.

Em seguida, começou a pesquisar como seria viver da escrita. E descobriu o Wattpad, plataforma onde os livros são publicados por capítulo. É uma ferramenta gratuita para quem publica e para quem lê. “Levei três meses escrevendo e postando. Tive 11 mil leitores, com comentários por parágrafo, por capítulo. Se 11 mil me acompanharam, vou para o Kindle”, conta Lola.

Em outubro de 2020, cheia de expectativa, publicou pelo Kindle Direct Publishing (KDP), a ferramenta de autopublicação da Amazon, o conteúdo que havia sido lido por tanta gente no Wattpad. A realidade na nova plataforma foi outra. Quantos livros foram vendidos? Nenhum. Mas isso não derrubou Lola. Ao contrário. Ela estudou esse mercado. Entrou em grupos de Instagram, Facebook, WhatsApp, em que autores e autoras contavam suas experiências e como conseguiram sucesso. Descobriu que publicar no Kindle é totalmente diferente. Em março de 2021, tinha um plano de ação. Criou seu pseudônimo — uma escolha totalmente aleatória e só depois descobriu ser homônima de uma atriz pornô — e investiu no marketing e na divulgação. “Criei um perfil no Instagram, uma comunidade. Comecei do zero. Em dois meses, já tinha 300 seguidores”, conta, acrescentando orgulhosamente que hoje tem mais de 17,5 mil, além de grupos de WhatsApp e no Facebook.

Isso tudo não era só por amor aos livros. “Se cada livro me render R$ 100 por mês, com dez mil páginas lidas mensalmente, quando eu tiver 20 livros, é mais do que ganho como professora, posso pedir demissão”, calculou. E foi com isso na cabeça que, em maio de 2021, publicou Contrato de prazer, após dois meses de foco total no marketing. Em 24 horas, o livro contabilizou 12 mil páginas lidas. “Foi incrível! Entrou nos 100 mais vendidos. Foi o início de um trabalho e comecei a ver meu livro circular entre influencers, autoras, leitoras. Estou indo para o 15° lançamento!” Entre 7 e 30 de maio de 2021, Lola já tinha faturado seis vezes o que ganhava lecionando.

Conversou com o marido, Daniel, e decidiu pedir demissão para dedicar 100% do seu tempo aos textos. Em 17 de junho, lançou O vizinho dos meus sonhos. Quatro dias depois, deixava seu emprego fixo. Em setembro, com o terceiro livro, Contrato de rendição, se consolidou: 4,5 milhões de páginas lidas em um mês. Com isso, pôde desacelerar a produção para elaborar cada vez mais os textos. “Entendi a escrita como um negócio desde cedo. Amo escrever, não me vejo fazendo outra coisa, mas tem que me dar frutos”, afirma a escritora, que tem 150 milhões de páginas lidas no Kindle Unlimited e vendeu 48 mil e-books — número que sobe para 110 mil com as promoções de download gratuito.

Quem também entrou no mundo hot de olho nas oportunidades desse mercado foi a jornalista niteroiense Roberta de Souza. Ela começou a trabalhar no ambiente editorial aos 19 anos. Em 2020, sua assessora literária sinalizou a alta demanda por livros hot na Amazon. E, depois de já ter escrito outras obras, como uma biografia espírita, um livro de poesia e o romance Meninas de 30, decidiu apostar nesse nicho. Foi assim que surgiu Ella, que ficou entre os mais vendidos da Amazon na semana de lançamento.

Diferentemente da maior parte dos livros hot, a protagonista criada por Roberta é forte. “Ella é revelação, é evolução, é revolução. Ella é um símbolo da força feminina. Por mulheres fortes, por mulheres livres, por mulheres firmes!”, descreve a leitora Kenia Costa em sua avaliação na Amazon. A história, assim como acontece com boa parte dos livros do gênero, tem um spin-off: “Tom”.

“A literatura hot faz com que as mulheres se soltem. Eu bagunço a cabeça delas e elas bagunçam a cabeça dos outros. As histórias chamam a atenção, falam de coisas que muitas não têm. Muitos homens não têm a mente aberta para entender nossos sonhos, realizar nossos desejos. Tenho leitores homens e é uma aula para os que se permitem ler”, avalia Roberta.

As histórias de sexo seguem com Roberta. Mesmo não sendo de ficção. Na semana passada, lançou a biografia Exposed. À la Pamella Anderson e Tommy Lee, Cassiana Costa e o marido Túlio tiveram imagens íntimas roubadas e postadas nas redes sociais por um “amigo” que trabalhava com a parte de tecnologia da empresa deles. Ficaram dois anos na Justiça, mas acabaram cansando. E, com os limões, resolveram fazer uma limonada: lucrar com as imagens, abrindo uma produtora de conteúdo adulto.

A biografia recém-lançada por Roberta em breve estará disponível em papel. Mas com conteúdo extra para justificar a escolha por um produto mais caro. Um e-book hot fora do Kindle Unlimited custa, normalmente, R$ 1,99. Um livro físico vale uns R$ 50. Outros títulos do gênero hot usam essa mesma estratégia de bônus para vender a versão física, que sai muito menos do que a digital. Primeiro porque a produção de um livro é cara. Impressão, distribuição, armazenamento custam muito. Na plataforma digital, o custo é limitado basicamente ao design da capa, à revisão do texto e à divulgação. Lola, por exemplo, investiu um total de R$ 700 nos dois primeiros livros lançados pelo KDP. Hoje, para lançar cada título, gasta cerca de R$ 4 mil.

O início do boom digital

O KDP foi lançado em 2007. Mas só chegou ao Brasil em 2012, quando a Amazon iniciou a venda de e-books no Brasil. “Com o KDP, a gente consegue abrir espaço para novos talentos com mais facilidade. Da descrição do livro ao preço, tudo é determinado pelo autor”, afirma Ricardo Perez, gerente geral de livros da Amazon Brasil. “E a produção hot se encaixa melhor no KDP do que no processo tradicional. Muitos títulos são produzidos em um período curto. Tem autor que publica mais de um por mês. E isso não seria possível no modelo físico.”

Para Ricardo, a maior indicação de sucesso desse gênero é a lista dos mais vendidos e mais baixados. Esses livros aparecem praticamente todos os dias no topo, além de ocupar a lista quase toda. “Temos mais de 200 mil livros publicados em português pelo KDP no Brasil. É uma quantidade bem significativa e com um conteúdo bem vasto, com bastante literatura hot. É um público muito fiel e que consome com frequência”, diz.

Uma curiosidade: Cinquenta Tons de Cinza — que serviu de porta de entrada no universo hot para várias leitoras — foi lançado em abril de 2012 como KPD nos Estados Unidos. Começou como autopublicação e até hoje é o e-book em KDP mais vendido no mundo.

“Essas autoras criaram uma legião de fãs. E fomentam isso por meio de outros canais, como WhatsApp e Instagram, potencializando o marketing entre as leitoras”, afirma Ricardo, revelando, sem abrir os números, que muitos homens consomem esse gênero também. Para ele, a facilidade de frequência de publicação, a discrição do ambiente digital e o preço são elementos essenciais para esse fenômeno.

O forte viés comercial dos livros picantes, reconhecido pelas próprias autoras e pela Amazon, é alimentado principalmente pelo serviço de assinatura Kindle Unlimited. A professora e auxiliar administrativa Rosi Bravo, de 54 anos, lê cerca de 130 livros por ano. “Um livro de 600 páginas custa pelo menos R$ 60. Na plataforma, pago R$ 19,90 por mês e leio quantos eu quiser. Além disso, tenho a facilidade de estar com o livro sempre na mão, aonde eu for. Não tem essa de esquecer em casa.”

O universo erótico entrou na vida de Rosi na adolescência, com os clássicos livros de banca. “Sempre gostei desse estilo. Lia Sabrina, Bianca, Julia. Quando descobri o hot, vi logo que é a mesma pegada. Só que é mais atualizada e com a parte quente bem detalhada. Nos de antigamente, não tinha sexo.”

A redescoberta aconteceu em fevereiro de 2021 — de novo, no âmbito da pandemia — com uma série estrangeira de 34 livros. A partir daí, Rosi buscou outros títulos e se encantou pelas autoras nacionais. “Sempre li muito, faz parte da minha vida. Leio por entretenimento e lazer mesmo. Não gosto muito de TV. E, mesmo se não for bom, leio até o fim. Normalmente, em três dias, eu finalizo um livro. Se for muito bom, termino em um dia só, já virei noite lendo”, conta.

Mas a literatura hot, embora permita essa privacidade, tem também uma natureza agregadora. Divorciada após mais de 24 anos de casada, mãe de três e avó de uma menina de nove meses, Rosi transcendeu a leitura digital e caiu numa espécie de irmandade erótica. Fã da autora Zoe X, que produz conteúdos mais pesados, classificados como dark, ela participa de um grupo de WhatsApp com outras 333 mulheres de diferentes lugares, idades e classes sociais. Todas leem hot. E usam o grupo para interagir, indicar livros, conhecer outras autoras, trocar experiências.

“O hot me permitiu entrar em contato com mulheres que transam de forma livre. O empoderamento é muito forte. Mulher tem tesão, sente necessidade de sexo, sim. Os livros mostram personagens que assumem essa libido. Pensar a sexualidade como parte da vida não é algo feio”, afirma, acrescentando que essa liberdade reflete na vida real.

Carla de Andrade, de 47 anos, é casada e mãe de uma adolescente de 16 anos. A literatura hot entrou de forma insólita na sua vida. Um teste de conhecimentos gerais na escola onde trabalha tinha uma questão sobre Cinquenta Tons de Cinza. Só que a prova era para alunos do Fundamental I. Evidentemente, a pergunta foi vetada. Mas já havia atiçado a curiosidade de Carla sobre o livro. "Gostei e li a série toda. Mas, para mim, não há nada igual a Peça-me o que quiser, de Megan Maxwell. Tem toda uma parte hot, mas é a história de uma mulher forte. Sou fã, já li tudo dela”, conta.

Para Carla, os livros hot oferecem uma realidade com a qual as mulheres se identificam. E melhoram a vida real. “Leio coisas que eu nunca pensei antes e coloco em prática. Não tenho vergonha. Meu marido sabe que eu leio. Comento com pessoas que gostam de ler também e tudo bem.”

O biopsicólogo Varella destaca que a literatura erótica pode até ser usada em terapia sexológica para aumentar a libido nas mulheres e lidar com outras queixas. Além disso, acrescenta, o texto acaba despertando nas mulheres mais interesse do que obras audiovisuais. “O visual já oferece muito mais informações sobre as pessoas, expressões, ações específicas, locais, cores, texturas, e contextos, o que dá menos espaço para injetarmos nossas preferências pessoais, usando a imaginação. Já a escrita é informacionalmente deserta, o que convida e permite que usemos a imaginação para preencher as lacunas.”

Mas nem todo mundo lida com esse conteúdo de forma tão aberta. Aos 45 anos, uma funcionária pública conta que lê livros eróticos, mas prefere que seu nome siga no anonimato. Esse gênero também entrou na sua entrou vida via Cinquenta Tons de Cinza – “li cada um dos três livros duas vezes!”. E ela sequer precisou comprar os livros. A biblioteca da repartição pública onde trabalha tem os títulos. “Adoro ler. Em 2022, peguei um romance na biblioteca do trabalho. Era um romance hot e eu não sabia. Adorei! Peguei todos. Já li uns oito e tem dois me esperando lá”, conta ela, que já comprou o livro de uma série que faltava no acervo do trabalho e doou. “Para mim, o mais importante é a trama. E as cenas são bem detalhadas.”

Driblando o preconceito

As leitoras dizem não ter vergonha de falar sobre o que leem, mas reconhecem que há preconceito, olhares enviesados. As autoras também. “Quando falo que escrevo hot já perguntam logo se é pornografia. Hot é diferente de pornografia. Hot é usado para apimentar uma história que tem enredo: início, meio e fim”, explica Roberta. Lola afirma que há muito preconceito principalmente vindo dos homens: “Recebemos comentários machistas e misóginos, que tentam reduzir o que fazemos a pornografia. O foco não é só o prazer sexual. Mas não dá para separar o sexo da vida das pessoas. O erotismo nos meus livros é parte de um todo”. Para Jéssica, o preconceito vem mais da academia. “Já sentia isso quando escrevia só fantasia. Escrevo em uma linguagem mais simples desde o primeiro livro e que as pessoas entendem. Fui para a Flip e me perguntaram sobre a rapidez na produção, se não era melhor demorar e fazer uma obra-prima. Escrevo para entretenimento. Escrever para ganhar um Jabuti é diferente.”

O fenômeno do gênero hot ainda precisa ser estudado. É só consumo? É devido ao seu lugar de produção? Qual a relação entre o fenômeno numérico e a qualidade? Esses questionamentos são levantados por Tatiana Pequeno, professora do programa de pós-graduação em Estudos de Literatura da UFF e escritora, que defende que cabe aos cursos de Letras e de Comunicação pensar nesses processos.

“Na academia, há um olhar de dúvida, de questionamento em relação a todos esses fenômenos, que são de consumo. Mas há também um interesse nesse lugar de chegada da leitura. Essas narrativas quase sempre obedecem a certos protocolos de construção. Isso significaria dizer que obedecem a certas formas de organização, de um modelo. Muitas vezes, estão interessadas nessa perspectiva de conquista do mercado consumidor”, diz.

Apesar de questionar a qualidade das tramas e textos, Tatiana reconhece que há muita potência nesse universo e que o balanço é positivo para o mundo dos livros. É uma porta de entrada para o surgimento de autores, que com o tempo podem tornar seus trabalhos mais complexos, e de leitores, que também podem se desenvolver e buscar novos gêneros.

“O acesso à leitura vai sempre, de algum modo, convidar o leitor a estranhar o seu mundo. Por isso, entendo esse fenômeno como positivo. É possível que isso amplifique o número de autores e dinamize o público leitor, convocando outros sujeitos a partilhar o universo da leitura, que é de acesso, de emancipação. O ato de ler, já dizia Paulo Freire, democratiza nossa posição no mundo, permite que a gente construa pequenos elos, pequenas formas de emancipação”, afirma.

Nem precisa ser em nome de Paulo Freire. A emancipação via literatura hot está a um clique.

Vermelho é a cor mais quente

Sérgio, coach financeiro e palestrante, 32 anos, filho de senador corrupto, mas milionário por pura meritocracia. Cidadão de bem. Noivo de Camila, caçula de uma família de milicianos. Ali nas vésperas do primeiro turno das eleições de 2022, Sérgio é desafiado por seus seguidores a confrontar, numa live, um esquerdalha safado, pervertido, que havia inundado as redes com o seguinte anúncio: “Leon Doutrinador, especialista em dominação completa. Faço carnista virar vegano, ateu virar crente e até mesmo bolsominion virar petista. Valor a combinar.”

Era obviamente uma afronta à família tradicional brasileira e Sérgio, bermuda cáqui, camisa pólo e sapatênis, foi ao clube Kama Sutra, masmorra de Leon, “entrevistá-lo”. Começava ali sua jornada de autodescoberta sexual, amorosa e ideológica, que teria seu ápice romântico (ALERTA DE SPOILER) num beijo apaixonado na festa da vitória de Lula na Paulista. Essa é a trama de Doutrinando um Bolsominion: Quando o Amor Venceu o Ódio, obra hot-política da autora Blame P.T. O livro digital de 461 páginas foi lançado na Amazon no fim do ano passado. A autora anunciou que o lucro dos três primeiros meses de vendas seriam destinados às Cozinhas Solidárias do MTST e à Casa Nem, centro de acolhimento de pessoas LGBTQIA+, do Rio.

Pura tara comunista, evidente. Isso fica claro já no nome dos capítulos, que são 13: “Uma escolha difícil”; “Mas e o PT?”; “Golden Shower”; “A fraquejada”... Blame não economiza nos trocadilhos e nas analogias. A começar pelo nome dos doutrinadores: na equipe de Leon há ainda Che, Stalin e Mao. O fetiche ideológico de que todo bolsominion é um homossexual reprimido é levado às últimas. Na segunda sessão com Leon, que começa com uma longa discussão sobre A Revolução dos Bichos e como os Estados Unidos transformaram a obra em propaganda anticomunismo na Guerra Fria, Sérgio — até ali apenas um heterossexual fazendo uma “putariazinha no sigilo” — descobre que seu dominador é um homem trans. E ainda estuda sociologia, coisa pesada mesmo!

As cenas de sexo são aquele gayzismo todo que os cristãos patriotas imaginam. Há balbúrdias dignas das universidades públicas (e tem até grelo duro). São quentes, capazes de excitar mesmo uma mulher cis hetero progressista, e se passam no mundo BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo). Ou seja, há, sim, uma dose de violência. “Sem vi-o-lên-cia!”, o leitor que viveu 2013 pode pensar. Mas saiba que, como nos ensina Leon, a prática BDSM é absolutamente consensual, respeitosa e, embora teste os limites, jamais os ultrapassa. E nosso herói em transição, Sérgio, gosta de testá-los, viu? Mete-se em tangas de couro, usa cinto de castidade, experimenta um plug anal. Tudo enquanto faz lives pró-Mito e despista sua noiva. Acontece que, enquanto experimenta com suas travas, vai sendo literalmente doutrinado por Leon. Algemado no potro, é comandado a ler Fenomenologia do Espírito, de Hegel. Chicoteado em suas nádegas, deve se concentrar no parágrafo sobre a dialética do senhor e do escravo.

Blame P.T. define a obra como hot de humor e paródia política. Então, a certa altura, Sérgio é ordenado por seu dominador a tomar leite condensado naquela mamadeira inventada pela extrema direita, para compreender a indecência que é espalhar fake news. Num outro momento, depois de ser açoitado por um flogger com estrelas de couro nas pontas, “parou em frente ao espelho, examinando as marcas: ostentava uma dezena de estrelinhas vermelhas sobrepostas por sua bunda, pernas, costas e braços. Estava mais vermelho que o Foro de São Paulo”. Mas há momentos em que, ainda que em situações absolutamente inverossímeis, a autora tenta imprimir alguma sensibilidade à narrativa. Conforme começa a tomar contato com a infância infeliz e a lembrar da doméstica que o criou com tanto carinho, decide procurá-la e se depara com a realidade de uma mulher periférica, que perdeu o filho para a Covid e não tem dinheiro para dar de comer aos netos.

A paixão por Leon é correspondida e eles passam a enfrentar a aventura de se desvencilhar do invólucro reacionário que aprisionava Sérgio. Há crimes, suspense e, para não dar mais spoilers, deixe-me acrescentar apenas que o final envolve até o “sítio do Lula” em Atibaia. Vale a leitura para quem fantasia com patriotas caindo publicamente na “putariazinha sem sigilo” e reconhecendo o mal que provocam ao mundo com seu moralismo. Não é das mais populares (na sexta-feira estava apenas na posição 165 entre os eróticos mais vendidos da Amazon), mas tem seus fãs, que já produziram até fan art dos personagens. Nota: quatro foices.

Um outro hot político que acabou vendendo mais — mas na categoria Política, não Erótica — é o Ministério do Prazer: O Ministro do STF e a Filha do Senador Patriota, de Lola Fox. É um conto bem mais curto, de 61 páginas. E tem basicamente uma longa cena de sexo explícito, com alguma dose de caretice. O ministro é Alexandre Cássio de Alencar. Ele é careca. Há um aviso logo no início de que o conto é, sim, inspirado em Xandão e, segundo a autora, uma crítica “às autoras de romance hot que lucram muito dinheiro escrevendo livros com cenas eróticas, dedo no cu — e outras coisas mais — e se consideram conservadoras de direita. Conservadora onde? Nossa mocinha representa a hipocrisia de cada uma”. A heroína é Eva, ex-aluna de Alexandre, com quem já teve um affair e até um filho, que ela optou por não criar. Eva é também moça de bem, filha de um senador que está preso por ter participado dos atos golpistas de 8 de janeiro. E ela está ali, ajoelhada diante do magistrado, implorando para que ele liberte o pai. Como sabemos, ajoelhou, tem que provar que, quanto mais recatada e do lar, na literatura hot de esquerda, mais devassa. É prazer mais cru, com uma trama menos trabalhada. Mas pode satisfazer os punitivistas. Nota: três martelos.

O que a A24 tem?

“São tramas que beiram o bizarro de uma forma bem positiva.” É assim que o estudante de Arquitetura e Urbanismo Leonardo Amorim define as obras cinematográficas da produtora independente A24. Fundada em 2012 por três amigos, os veteranos do cinema Daniel Katz, David Fenkel e John Hodges, a americana é responsável por filmes considerados alternativos pelos estúdios tradicionais, como os longas Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (trailer), Aftersun (trailer) e A baleia (trailer). Os três consagraram a companhia como a primeira da história a vencer todas as categorias principais de um Oscar. Mas não foram só as estatuetas que conquistaram a quantidade de pessoas que se dizem fãs da produtora. Entre elas, Amorim. “Em abril de 2021, já acompanhava assiduamente os trabalhos da A24. Quando pesquisei alguma página brasileira que falasse exclusivamente sobre ela, não encontrei. Fiquei tão decepcionado que resolvi criar a minha”, conta o jovem que, aos 23 anos, fundou o portal A24 Brasil. Só no Twitter, a página é acompanhada por 95 mil usuários, em sua maioria jovens.

Uma das estratégias da A24 é mirar no público mais novo, como explica o crítico e pesquisador especializado em cinema Pedro Butcher. “Faz muito tempo que uma produtora não consegue criar uma marca, uma assinatura própria. Por isso, um dos principais diferenciais dela é atrair os jovens, aqueles que estão muito conectados.” Além de consumir as obras, os fãs, literalmente, vestem a camisa da empresa. Em uma grande jogada de marketing, a A24 abriu uma loja online em seu site oficial, vendendo itens que pertencem ao universo dos filmes. Entre eles, por exemplo, blusas, bonés, coleiras e até uma réplica da pedra de “Todo Lugar”, que pode ser adquirida por US$ 35 (cerca de R$ 180).

Combinando uma estratégia de marketing voltada 95% para o digital ao orçamento descentralizado e distribuído entre vários produtos, passando por longas a séries, a A24 tem conseguido se encaixar na televisão convencional, ser reconhecida pela Academia de Hollywood e se fazer presente no streaming. Nem tudo se deve à publicidade. De acordo com Butcher, a empresa tem se destacado na cena audiovisual pela liberdade que dá aos diretores. Desenterra o cinema autoral enquanto os grandes estúdios hollywoodianos apostam todas suas fichas em blockbusters, como filmes de super-heróis e terror sobrenatural.

“Gosto muito da frase: ‘na indústria criativa, a indústria precisa produzir aquilo que o público ainda não sabe que quer ver’. Se você só produz o que as pessoas querem ver, chega um ponto de esgotamento. Às vezes, no audiovisual, saber demais sobre o público pode se tornar um problema. Com produções pouco convencionais, a A24 está ocupando um espaço que foi abandonado e que, não necessariamente, estava morto.” Algumas plataformas de streaming até tentaram seguir por caminhos excêntricos. “A Netflix foi uma delas, mas segue mantendo um controle muito rigoroso sobre seus produtos. É conhecida como uma companhia que coloca executivos dentro dos sets de filmagem. Eles acompanham as gravações, intervêm nos roteiros… tudo isso engessa as produções”, diz o pesquisador. Apesar do sucesso conquistado batendo de frente com as grandes do setor, é exagero considerar que a A24 está revolucionando o cinema. “Não tem nenhuma invenção. Talvez, a única coisa nova seja uma combinação de fatores que ainda não tinha sido feita. Estão conciliando o selo de filme de arte, ou seja, o capital simbólico, com as enormes bilheterias. Isso num momento de muito pé atrás. Em um período de tendência mais conservadora, estão conseguindo dar uns passos adiante.”

O pesquisador defende que o mercado audiovisual está, em geral, mais cauteloso porque atravessa um tempo de incertezas, de mudança paradigmática. Com a ascensão de tecnologias como a internet quântica e o Metaverso, não se sabe como o público vai consumir filmes e séries no futuro próximo. Para as grandes companhias, é arriscado aplicar verba em produções mais criativas. “Nós vemos que estúdios independentes como a A24 vêm ganhando cada vez mais espaço. Outro nesta pegada é a Neon, que produziu Parasita. Mesmo assim, ainda não dá pra afirmar que existe uma nova onda voltada para o cinema independente. Mas sei que, pelo menos, o espaço para filmes diferentes, possibilidade de renovação… esse espaço está garantido”, conclui. Surfando nesta quase-onda, o último lançamento da A24, o longa Beau Tem Medo (trailer) acabou de registrar a maior estreia independente de 2023.

Memes, Tiradentes e a obra do imortal benemérito Mauricio de Sousa. Eis os mais clicados da semana:

1. UOL: Sim, são eles, os memes do depoimento de Bolsonaro à PF.

2. YouTube: Ponto de Partida — O Brasil Paralelo e a falsificação da realidade.

3. Omelete: A Turma da Mônica Jovem live action.

4. Cambly: Assinante do Meio teve desconto para aprender inglês na plataforma.

4. g1: Vem ver a menor lua de Marte.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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