Edição de Sábado: Como Haddad entende a economia

Num discurso na última segunda-feira, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, estava se explicando, de novo, sobre a decisão do governo de buscar receitas na taxação de rendimentos de capital no exterior (offshore) e dos chamados fundos exclusivos – coisa de ricos e super-ricos. Ele rechaçava a comparação com o herói fora-da-lei inglês. “Eu vejo muitas vezes, na imprensa, ser tratado como uma espécie de ‘ação Robin Hood’, uma revanche”, reclamou o ministro. “Não é, absolutamente, nada disso.”

Ao seu lado, no palco montado no Salão Oeste do Planalto, Lula o observava, ladeado por Alckmin e pelo presidente da Câmara, Arthur Lira. “Aqui não tem nenhum sentimento que não seja o de justiça social”, disse Haddad, apontando com as mãos o próprio peito. Essas palavras encerraram o discurso. Lira apertou suas mãos. Lula foi efusivo e o convidou para tirar um retrato. Lira ouviu algo que os petistas comentaram e também sorriu. Alckmin, permanentemente risonho há pelo menos um ano, cumprimentou o amigo, que serviu de ponte entre o ex-tucano e o presidente petista. Haddad transitava, confortavelmente, entre expoentes de tudo que é tensão política e econômica das últimas décadas.

O mesmo comportamento que lhe garante essa aceitação política o obriga a, com imensa frequência, ter de explicar quem é. Como pensa. Isso já é atávico da missão de conduzir a economia de um país. Mas, possivelmente, num país com menos barulho antidemocrático, a economia pautasse quase exclusivamente o noticiário e essas concepções já estivessem mais claras. Não só isso. Haddad insiste em não se deixar enquadrar. “Tenho problemas com rótulos. Eles não ajudam a encontrar soluções”, começou ele sua enésima explicação sobre si mesmo no programa Reconversa. Era dia 11 de agosto, uma sexta-feira, e o Brasil estava em polvorosa com a operação da Polícia Federal num endereço do general Mauro Lourena Cid, em Niterói. Naquele mesmo dia, o governo federal, ofuscado pelo escândalo das joias, lançava os termos do novo PAC, no Rio — a versão do programa prevê R$ 1,68 trilhão de investimentos numa mescla de recursos da União e de concessões e Parcerias Público-Privadas (PPPs). “Perguntei ao Lula por que ele tinha reserva em convidar economista ‘padrão’ para a Fazenda”, ele seguiu na entrevista. “E ele me disse que é porque eles são mais fieis à escola de pensamento deles do que ao governo. ‘E eu [Lula], às vezes, preciso tomar decisões que não cabem na caixinha. Então, prefiro alguém com senso prático.’” Pragmatismo: check. Lealdade: check. Não caber numa caixinha: check. A trajetória pública e partidária de Haddad indicava que ele conseguiria o emprego.

Mas havia muito mais em jogo. Lula assumia um país debilitado economicamente; tendo sido eleito sob uma frente ampla ao mesmo tempo em que seria cobrado a atender às demandas à esquerda; e precisando reconfigurar a relação do Executivo com o Legislativo. Haddad segue sua autoavaliação. Declara-se uma pessoa de esquerda, progressista. “Mas eu não acredito em Estado que deve, que não se importa com a dívida.” E, candidamente, afirmou que não consegue entender quem na esquerda defenda essa política. Seguindo seu perfil flexível, ressaltou que é evidente que há situações históricas em que o déficit se justifica, como numa pandemia, numa guerra. Mas, neste momento do Brasil pós-pandêmico, é preciso corrigir os abusos do governo anterior na busca pela reeleição e dar prumo às contas públicas. “Quando Lula me convidou para ser ministro da Fazenda, no Egito, decidi aceitar, porque eu estava com o diagnóstico do que precisava ser dito e feito para o Brasil. E qualquer coisa que saia desse roteiro vai colocar em risco o terceiro mandato do político mais importante da história deste país.”

Haddad é um ministro da Fazenda peculiar. É formado em Direito, mestre em Economia, doutor em Filosofia. E a própria insistência em não se encaixar numa única escola econômica o torna, para alguns, especialmente em tempos de simplificações sob medida para redes sociais, uma incógnita. Sua formação à esquerda seria preponderante demais para classificá-lo como liberal? E seu zelo fiscal o desqualificaria automaticamente como um representante da esquerda? “Quem tem uma postura dogmática em relação a uma escola de pensamento e não sai daquele quadrado nem quando as evidências demonstram, tem pouca sensibilidade. Não tenho nada contra a escola de pensamento econômico, transito por todas.” Ele já buscava se justificar em dezembro.

Agora, com oito meses corridos de ministério, algumas ideias do economista Haddad estão mais palpáveis. Para avaliá-las melhor, vale percorrer o trânsito que ele tem feito entre escolas. E suas aplicações em sua vida pública.

O marxista crítico

Haddad conta que despertou para temas econômicos a partir da militância estudantil e da presidência do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP. Esse relato está nos agradecimentos de sua tese de mestrado em Economia, defendida no dia 19 de outubro de 1990, e intitulada “O debate sobre o caráter socioeconômico do sistema soviético”. Trata-se de um sobrevoo crítico sobre teorias para tentar determinar o modelo econômico da União Soviética no cerne do processo da Perestroika, iniciado em 1985. E uma tentativa de apontar que nenhuma delas definia integralmente o sistema naquele momento de transição. Numa análise instantânea, estava impressa ali a pulsão haddadiana de questionar os enquadramentos clássicos, pré-estabelecidos. Nos agradecimentos, Haddad menciona, entre outros, Alexandre Schwartsman, que viria a ser diretor do Banco Central, é voz corrente do liberalismo e hoje é duro crítico da condução do ministro. Para o Haddad que se graduava no mestrado, Schwartsman foi descrito como “amigo”, testemunho da convivência acadêmica, próxima e respeitosa, com o contraditório.

O DNA dessa faceta de Haddad está mesmo na crítica. Embora sua formação seja marxista, foram os frankfurtianos Theodore Adorno, Max Horkheimer e Walter Benjamin os autores que mais o influenciaram. A economista Leda Paulani, professora da Faculdade de Economia e Administração da USP e amiga de Haddad há mais de 30 anos, editou com ele por alguns anos, no fim da década de 1990, a revista Praga, de estudos do marxismo. A publicação, criada pelo filósofo Paulo Arantes (orientador do doutorado de Haddad) e que chegou a divulgar textos inéditos de Che Guevara, Antonio Candido e Caio Prado Jr., era não uma defesa do socialismo, mas já um momento posterior, crítico do capitalismo, dado por vencedor em seu formato mais perigoso, o neoliberalismo. Leda explica que o marxismo de Haddad não é “de cartilha”. “É aberto, marchando sempre com a democracia, mas preservando muito do que Marx detectou com imensa precisão sobre o funcionamento do capitalismo e desligado do autoritarismo aplicado pelo stalinismo.”

Talvez decorra dessa leitura a proposta que Haddad lhe contou ter feito a Lula. Em nome de garantir que esse governo seja bem-sucedido o suficiente na economia, “ele disse ao presidente que faria o papel de ‘patinho feio’ para a esquerda, se precisasse, para manter o fascismo afastado”, relata a professora. Na prática, isso se revela no fato de que ele encampou o arcabouço fiscal. Para ela, é mais por Haddad entender que essa era uma imposição política, de décadas de um discurso pró-austeridade, do que fruto de convicção. “Uma coisa é reconhecer a trajetória de dívidas paralisantes. Outra é achar que se não fizer superávit primário não existe país”, diz Leda. “Tenho certeza de que ele concorda que, existindo Lei da Responsabilidade Fiscal (LRF) e regra de ouro, o arcabouço é uma camisa de força que não precisaríamos estar vestindo. Mas, como ministro, ele não pode dizer isso.”

Como ministro, publicamente, o que ele diz é que o arcabouço, que formulou em conjunto com Simone Tebet, ministra do Planejamento, é um avanço. “Nós estudamos 29 países para construir o texto, que depois foi aperfeiçoado no Congresso. Ali, tem um teto móvel, que é uma regra de gasto mais inteligente e uma vantagem sobre a antiga LRF. E tem uma coisa resgatada da LRF, que é a meta de resultado primário. Juntamos as duas coisas. Foi isso que comoveu as agências de risco”, ele defendeu na entrevista ao Reconversa. O presidente Lula sancionou na quinta-feira, com vetos (que devem cair), o texto do arcabouço — entregue ao Congresso meses antes do prometido na PEC da Transição. Na apresentação do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para 2024, Haddad e Simone estavam lado a lado, celebrando esses dois ajustes aprovados pelos parlamentares. Junto com a reforma tributária, essas medidas, que mostram o compromisso fiscal do governo, foram essenciais para o início do processo de corte de juros, iniciado — tardiamente, na visão do próprio Haddad — na última reunião do Copom. Essa agenda do governo foi reconhecida pela agência de classificação de risco Fitch e pela S&P Global Ratings.

O fiscalista

Pode ser que o rigor fiscal de Haddad seja uma imposição política, como diz Leda. Mas há pistas de que venha também de experiências passadas. Num plano mais pessoal, Haddad costuma dizer que aprendeu mais economia na 25 de Março do que na academia. Ele trabalhou na loja do pai, Khalil Haddad, que emigrou do Líbano em 1947 e se estabeleceu como comerciante no coração de São Paulo. “O pai dele é imigrante, ele tem essa vivência de gente que chegou aqui sem muito dinheiro. Tem um conservadorismo financeiro aí. Ele já trabalhou em balcão e fechou caixa no final do dia. Viu o que acontece quando você fica sem crédito. É claro que a economia de um país é diferente da de uma loja, mas, em situações de crise, muitas vezes, as diferenças diminuem bem”, diz Samuel Pessôa, pesquisador do FGV/IBRE e chefe de pesquisa econômica da Julius Baer. Pessôa foi colega de Haddad no colégio e também no mestrado na USP.

Já na administração pública, um outro episódio, quiçá traumático, reforçou o zelo de Haddad por um caixa bem administrado. No dia seguinte à chegada de Marta Suplicy à prefeitura de São Paulo, em 2001, vencia um boleto de uma dívida muitíssimo mal negociada pelo antecessor, Celso Pitta. Haddad era, junto com Leda Paulani, parte da equipe do secretário de Finanças, João Sayad. A fatura era de um valor próximo a R$ 1 bilhão. Nos cofres, havia coisa de R$ 2 milhões. A situação era tão crítica que nem a conta de luz a prefeitura podia pagar. Ficou evidente ali como uma situação de dívida sufoca o orçamento e as ações sociais que ele poderia patrocinar. Quando mais tarde assumiu ele próprio a prefeitura da cidade, uma de suas prioridades foi renegociar essa dívida com a União. E ele conseguiu — com o custo de popularidade que prioridades desse tipo costumam carregar. Reduziu de R$ 79 bilhões para R$ 29 bilhões. “Com muita conversa, como é de seu estilo”, relembra Leda, que foi também sua secretária de Orçamento e Planejamento. Novamente, a administração da economia de uma cidade é bem diferente da de um país, em que se tem as políticas fiscal, monetária e cambial para trabalhar. Ainda assim, há pistas deixadas por essas escolhas.

Para Pessôa, um liberal, a heterodoxia brasileira tem uma interpretação excessivamente otimista da contribuição do britânico John Maynard Keynes. Keynes jamais afirmou que o gasto público tem uma capacidade muito grande de alavancar o crescimento e, no limite, se autofinanciar. Já Haddad teria uma visão mais conservadora em relação à política fiscal, uma preocupação com a estabilidade e solidez do setor público, necessárias para a entrega de políticas públicas. “Minha impressão é de que o Haddad é uma pessoa que tem uma preocupação fiscal genuína. Acho que por isso é chamado de ‘o mais tucano dos petistas’”, afirma. Já Leda Paulani, da escola oposta à de Pessôa, define o amigo como um “otimista” mesmo, mas também um iluminista puro, para quem a razão sempre prevalece. Em comum, Leda e Samuel — assim como todos os próximos de Haddad — têm uma coisa: todos o chamam de Fernando.

Essa flexibilidade (ou trânsito, para ficar nos termos do ministro) ficou evidente no período em que Haddad lecionou no Insper, escola de negócios e administração próxima do liberalismo. O ministro foi convidado, em 2016, a ajudar a montar o mestrado em Gestão Pública. Licenciou-se da USP e, curiosamente, aproximou-se de Sandro Cabral, coordenador do curso, da mesmíssima forma que havia cercado Leda Paulani. A amiga ele abordou numa cafeteria perguntando sobre sua tese de doutorado a respeito do conceito de dinheiro. O novo amigo, em sua sala, também convidando para um café para discutir o livro Capitalismo de Laços, de Sérgio Lazzarini. A curiosidade intelectual de Haddad é traço fundamental do ministro difícil de enquadrar. É o que rende algumas soluções além-rótulos. Cabral dá o exemplo das Parcerias Público-Privadas, um dos temas das aulas de Haddad no Insper. “O embrião do texto da lei das PPPs é dele. Foi inspirado na taxa do lixo em São Paulo, uma solução engenhosa pra garantir o serviço público, respeitando a lei de concessões.” Haddad era, então, membro da equipe de Guido Mantega no Ministério do Planejamento do governo Lula 1. Chegou a confidenciar para o amigo que a primeira versão do texto era mais “anglo-saxã” do que a que emplacou. Ou seja, mais liberal.

A esquerda, diz Cabral, abraçou as PPPs como instrumento de investimentos em infraestrutura e até gestão de prisões. “Basta ver os governos da Bahia, o Wellington Dias no Piauí”, aponta. O próprio ProUni, na visão dele, é nada mais que um sistema de voucher, “mais liberal impossível”. Isso quer dizer que Haddad é, então, um liberal? “Ele sabe que é importante fazer reserva, ter colchão para intempéries. Tem compromissos de afeto com a esquerda, seu grupo de referência, que evita desagradar. Mas admitia que concordava com Alckmin em 70% das pautas.” Os outros 30%, talvez mais na seara dos costumes, é que os mantinham em partidos diferentes. E, embora formalmente isso permaneça, eles estão mais próximos do que nunca, numa ponte construída pelo próprio Haddad. Dependendo da lente, dá para dizer até que Alckmin anda à esquerda de Haddad, hoje. Cabral tenta resumir se Haddad é liberal ou de esquerda, afinal. “Ele tem mais preocupações sociais do que a esquerda pensa. E mais convicções de como conciliar mecanismos de mercado na gestão pública do que os liberais pensam.”

A gestão como ministro mostra que Haddad tem capacidade de lidar com os dilemas econômicos sem tanta rigidez, incorporando dimensões que muitos petistas tachariam de neoliberais. “Isso é um dos aspectos positivos politicamente”, analisa o cientista político José Álvaro Moisés, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP — e um dos avaliadores da tese de mestrado de Haddad. Eles foram contemporâneos de PT no comecinho do partido. Moisés deixou a legenda em 1989, quando já ocupava cargos diretivos, mas lembra do rapaz que fazia oposição à corrente dominante no partido, pela esquerda. “Mais do que essa abertura, Haddad amadureceu as visões do PT sobre desigualdades. Faz um tremendo esforço para enfrentá-las, insiste na tese central do Lula. Mas, para isso, vai precisar de tempo para dizer de onde vão sair os recursos.”

O político

Para enfrentar o desafio descrito por Moisés, e garantir o trânsito entre o fiscalista e o marxista crítico, o ministro precisa primordialmente de dinheiro e apoio político. Só isso. Tudo isso. E, aí, a tendência a recorrer a mecanismos que se encaixam mais no protecionismo da esquerda é imensa. O governo tem estudado, por exemplo, um imposto de importação mínimo de 20% para encomendas internacionais. Como não quer reduzir os gastos, precisa aumentar a arrecadação. Nada mais impopular. Mas naquele discurso de segunda-feira, o do Robin Hood, Haddad mostrou suas cartas nessa frente. Ao falar da sua “profunda consideração” pelo Congresso e da espera por “parceria” e “respeito”, o ministro reivindicou o reconhecimento de que sabe articular. No primeiro semestre, Haddad não poupou esforços para fazer aquele meio de campo com deputados, senadores, prefeitos e governadores. Resultado: apesar das rusgas do Planalto com o Centrão de Lira, o governo conseguiu aprovar toda pauta.

Esse empenho tornou Haddad um favorito do Congresso. Com mais prestígio entre deputados e senadores do que a chamada “cozinha” do Planalto, que tem os ministros Alexandre Padilha e Rui Costa na dianteira. Os líderes de partidos do Centrão na Câmara o têm em alta conta. Chegam a pintá-lo como um “ministro da Fazenda articulador”. E se tem uma coisa que não dá para poupar na administração pública é atenção para parlamentar “carente”. “Ele passa o celular e pede pra ligar a qualquer momento. Ele está sempre disposto a receber relatores de matéria de interesse do governo em seu gabinete. Tem deputado que nunca havia pisado na Fazenda”, disse um interlocutor de Lira. O telefone de Rui Costa, da Casa Civil, por exemplo, tem deputado que não tem.

Para sua equipe, Haddad deu ordem direta de atender bem os parlamentares. A orientação passada no início do ano para o ex-secretário executivo Gabriel Galípolo — hoje diretor de Política Monetária do Banco Central — é a mesma repassada a seu substituto, Dario Durigan. “Essa não era a imagem que a classe política, principalmente representantes do Centrão, tinham dele”, derrete-se o representante do Lirismo. Mais que atender o telefone, Haddad tem se mostrado sensível às questões dos deputados. Ele sabe que, sem emendas, ninguém se reelege e se mostra disposto a acomodar algumas demandas nas destinações orçamentárias.

Só que o suspense em torno da troca de ministros não ajuda essa articulação. Lula tem esticado a corda. Lira e seus aliados consideram que a demora na distribuição de cargos para os partidos não se trata de “batidas de cabeça” dentro do governo, mas de método. “Ganhar tempo” seria a palavra de ordem de Lula. Sem essa retaguarda, dizem os parlamentares, de nada valerá o esforço de Haddad. Para pressionar o governo, a Câmara pode colocar em votação a reforma administrativa, gestada por Paulo Guedes. Tudo que o governo não quer.

Fazer caber esse apetite por emendas e a gana petista por dinheiro pra investimento vai exigir pragmatismo, lealdade, não caber em caixinha, ser articulador e tudo mais que Haddad tiver a oferecer. Mas ele tem se mantido fiel à própria flexibilidade. Enfrentando a voz corrente em seu partido, seguiu defendendo déficit zero nas contas do governo para 2024. Déficit zero é, resumidamente, a equivalência entre receitas e despesas primárias. O Estado não gasta mais do que recebe. A presidente nacional do partido, Gleisi Hoffmann, advoga abertamente que seja admitida a variação prevista no próprio arcabouço, que pode chegar a 0,25 ponto percentual sobre a receita. Para Gleisi, isso permitiria mais investimentos do Estado. Haddad discorda. Ele ecoa Simone, que garante que as estimativas da Receita estão conservadoras demais e a conta vai fechar. E está endossado por Lula. “O governo não vai mudar e vai tentar aprovar os projetos tributários”, disse o deputado petista Carlos Zarattini, coordenador do governo na Comissão Mista de Orçamento (CMO), ao Meio. Esses “projetos tributários” são os que miram no aumento da receita.

Enquanto isso, Haddad vai colhendo críticas, mas também resultados. Aumentou sua aceitação no mercado. O crescimento da economia no segundo trimestre superou as expectativas. Ao celebrar, comedidamente, o resultado, Haddad transitou. “Há ainda, com naturalidade, muitos questionamentos sobre como vai ser o ano de 2024.” Repisou o quanto precisa das medidas enviadas ao Congresso. E, então, repetiu a trinca que tem norteado suas explicações. “Só com crescimento podemos alcançar um equilíbrio fiscal, social e ambiental. Com o crescimento, tudo fica mais fácil.”

Crescimento não é trivial de produzir. O governo não depende só do ministro da Fazenda. Governo de frente ampla, que inclui esquerda desenvolvimentista, liberais salpicados e o Centrão fisiológico não tem como ser elementar na condução. O trabalho, para Fernando Haddad, só começou.

Caminho da Índia

A missão Chandrayaan-3 foi uma conquista e tanto para a Índia. Não apenas por tornar o país o quarto a fazer um pouso bem-sucedido na Lua, mas também por ser o primeiro a chegar ao polo sul lunar, uma região inexplorada. Enquanto o mundo olha com admiração o feito inédito indiano, o Brasil relembra a maior tragédia da história de seu programa espacial: a explosão em terra do primeiro lançador de satélites brasileiro, que matou 21 pessoas em Alcântara (MA), há 20 anos. Desde então, o programa foi suspenso e o país só consegue lançar satélites com foguetes estrangeiros, incluindo indianos. A comparação é inevitável. Afinal, os programas espaciais brasileiro e indiano começaram quase ao mesmo tempo. Mais do que isso, os dois países foram considerados promessas de crescimento econômico no início dos anos 2000. A expansão brasileira não fez jus às expectativas. Já a Índia se consolidou como uma das potências mundiais em Tecnologia da Informação (TI), e executivos indianos são figurinha carimbada nas principais empresas mundiais, inclusive no comando das gigantes de tecnologia como Alphabet, dona do Google, IBM e Microsoft. Por que o Brasil não caminhou na mesma direção?

Até a década de 1980, os dois países tinham uma trajetória de industrialização semelhante, com substituição de importações, ativismo estatal e alto intervencionismo do Estado, com o governo participando e até controlando certos setores econômicos. Entretanto, desde o começo dos anos 1990, a Índia teve taxas médias de crescimento anuais de 6% e manteve o ritmo, enquanto o Brasil enfrentou baixo crescimento e viu sua economia enfraquecer a partir de 2010, agravada pela crise econômica e política de 2014 a 2017. De 1998 a 2008, só houve dois anos em que o Brasil cresceu mais que a Índia: 2000 e 2008, segundo dados compilados pelo Banco Mundial.

Historicamente, a Índia tinha uma economia em grande parte agrária. A partir da independência do domínio britânico, em 1947, o governo do primeiro-ministro Jawaharlal Nehru (1947-1964) adotou uma política de desenvolvimento autônomo, com investimento em planejamento, indústria pesada, substituição de importações e proteção do mercado interno. Na mesma época, grandes companhias, como o Grupo Tata, beneficiaram-se dos incentivos governamentais e da política econômica. Mais tarde, o Tata, que atua em diversos segmentos, como produção de sal e desenvolvimento de software, tornou-se o maior conglomerado industrial privado da Índia e um dos maiores do mundo. Os anos iniciais pós-independência foram fundamentais e ajudam a explicar as características que marcaram a economia da Índia e seu desempenho econômico até hoje.

Desde o rompimento com os britânicos, a Índia tem como preocupação central o desenvolvimento científico e tecnológico, afirma o professor Marco Antonio Rocha, do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Isso vem de uma visão de grandiosidade em relação à civilização Hindu, principalmente no campos das ciências e da matemática. Essa relação com o passado precisava ser recuperada e deveria fazer parte do patrimônio nacional e histórico que ajudaria a unificar o país”, explica Rocha. Além disso, os conflitos fronteiriços com o Paquistão e uma possível ameaça chinesa também ajudaram a impulsionar a industrialização. O desenvolvimento das marinhas da Indonésia e do Paquistão, após a retirada da Marinha Real Britânica do Oceano Índico, foi visto com preocupação pelos indianos. Com isso, o país começou a construir um complexo industrial e de defesa, que deu origem ao programa espacial indiano. Era uma questão de soberania nacional e recuperação de um passado civilizatório. Um cenário bem diferente do brasileiro.

Embora Brasil e Índia tenham tido processos de industrialização semelhantes em relação ao protecionismo e ao papel do Estado, o desenvolvimento do sistema nacional de inovação indiano foi muito mais precoce e recebeu mais atenção, ressalta o professor da Unicamp. “A partir dos anos 1980, a Índia passa a olhar também para as tecnologias de vanguarda, como a informática, serviços de informação e comunicação e a indústria aeroespacial”, diz.

Mas essas não foram as principais contribuições para o PIB da Índia. Nas últimas décadas, a economia indiana também foi puxada pelo aumento no consumo das famílias por conta da expansão do crédito, da urbanização e do investimento público e privado em infraestrutura. A Índia é o país mais populoso do mundo, com 1,428 bilhão de habitantes. As taxas de pobreza também são expressivas e maiores do que as do Brasil, apesar de estarem em queda. “O investimento vem justamente na tentativa de resolver problemas de falta de infraestrutura urbana em saneamento, transporte e habitação. Isso tem movimentado uma parte considerável da economia da Índia”, explica Rocha. Em relação a outros indicadores sociais, Brasil e Índia empatam na concentração de renda dos 10% mais ricos. Por outro lado, o Brasil tem um índice de desenvolvimento humano (IDH) – 0,754, equivalente à posição 87 — melhor do que o da Índia — 0,633, que corresponde ao 132ª posição no ranking —, segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).

Apesar das diferenças culturais e econômicas, Brasil e Índia são bons parceiros comerciais, além de estarem juntos nos Brics. Em 2022, a relação bilateral foi recorde, graças a uma série de ações promovidas pelas chancelarias dos dois lados: US$ 15,1 bilhões, com superávit indiano. Para a Índia, o Brasil tem tudo para ser um parceiro estratégico no chamado Sul Global.

Mas e os CEOs indianos nas gigantes de tecnologia? Alguns dados mostram que parte dos diretores-executivos do Vale do Silício nascidos na Índia fazem parte de um grupo minoritário que se encontra entre os mais ricos e educados nos Estados Unidos. Obviamente, o fato de os indianos falarem inglês facilita sua integração na indústria tecnológica americana e de outros países. Mas é bem mais do que isso. Em entrevista à BBC em 2021, o empresário multimilionário americano de origem indiana Vinod Khosla, cofundador da Sun Microsystems, disse que “a diversa sociedade da Índia, com tantos costumes e idiomas, fornece [aos gestores nascidos no país] a capacidade de navegar por situações complexas, particularmente quando se trata de fazer crescer as organizações”. Parece ser o “jeitinho indiano”.

Os e-sports bombam

Concentração. Olhos que pouco piscam por cerca de 20 a 50 minutos, a duração média de uma partida de League of Legends (LOL). Sentados em frente às telas de computador, os jogadores que integram dois times controlam personagens que atacam, avançam e recuam usando poderes, itens, combos e rotações únicas. Tudo com o objetivo de avançar no mapa e destruir a base adversária. Vence a equipe que primeiro atingir o feito. Lançado em outubro de 2009 pela desenvolvedora Riot Games, o game online de estratégia acumula, no mundo, mais de 140 milhões de contas ativas. Todos os jogadores integram um ranking e os melhores colocados têm, no jogo eletrônico, um caminho profissional aberto — assim as equipes LOUD e paiN Gaming embarcam agora rumo a Recife. Em 9 de setembro no Ginásio de Esportes Geraldo Magalhães, o Geraldão, os atletas se enfrentam pela terceira vez consecutiva na final do Campeonato Brasileiro de League of Legends (CBLOL), um dos maiores torneios nacionais de e-sports. Nas duas decisões anteriores, a LOUD saiu vencedora. Além da classificação para o Worlds 2023, o Campeonato Mundial de LOL, o time campeão fatura R$ 115 mil.

“As expectativas estão baixas, mas, no fundo, o coração sempre guarda a fezinha de que a paiN vai dar a volta por cima e mostrar que pode e consegue superar tudo isso. Vou sofrer, mas nunca deixarei de acompanhar e apoiar o time”, conta Victor Tanigushi. O jovem torcedor da paiN relata que conheceu a equipe há uma década, assistindo à final de 2013. “É uma paixão. Formamos uma família. A torcida é claramente o sexto jogador da paiN”. Em seu perfil no Instagram, ele exibe os autógrafos que conseguiu dos e-atletas: “relíquia”. Também lamenta que não acompanhará presencialmente a final deste ano, mas reitera que, pela Twitch, não perderá nenhum segundo das partidas. Os jogos serão transmitidos ao vivo em diversas plataformas — contando com o comentário de streamers e influenciadores. Por trás das equipes, há ainda psicólogos, fisioterapeutas, o corpo técnico e investidores. Cada vez mais profissionalizado, o ramo de e-sports arrasta fãs, já sacode a economia e promete impactos ainda maiores no Brasil.

Além do LOL, outros títulos desenham suas cadeias de negócios — entre os mais populares estão Valorant, Fortnite, Fifa e CS:GO (Counter Strike: Global Offensive). Ao todo, a receita de videogames e esportes eletrônicos no país deve atingir cerca de US$ 2,8 bilhões em 2026, segundo pesquisa Global de Entretenimento e Mídia da PwC Brasil. O relatório também aponta que, em 2021, o setor movimentou aproximadamente US$ 1,4 bilhão. “No início lidamos com estruturas amadoras, mas houve um avanço enorme, principalmente nos últimos seis anos. As publishers, que são as desenvolvedoras dos jogos, têm trabalhado em um modelo de governança centralizado com as ligas, trazendo, inclusive, os times para dentro, para serem sócios dos produtos”, explica Pedro Oliveira, especialista no mercado de e-sports e co-fundador da OutField Consulting. Isso força a profissionalização da cadeia inteira, ele diz. "desde os atletas muito bem assessorados por escritórios, representantes e empresários, aos times que têm oferecido uma infraestrutura de mais alto nível aos competidores e staffs.”

Não à toa a holandesa Team Liquid, uma das mais tradicionais organizações internacionais de e-sports, que pertence à Dell Technologies, abriu em São Paulo seu maior centro de jogos eletrônicos do mundo. O prédio de treze andares foi pensado especialmente para atender às necessidades dos atletas, fornecendo espaço para treinos, competições e criação de conteúdo. “Outras marcas enormes, como Coca-Cola e Gillette, estão patrocinando o CBLOL, por exemplo. Isso faz parte, justamente, do movimento de grandes e tradicionais anunciantes enxergarem nos jogos eletrônicos a possibilidade de se conectar com um novo consumidor”, pondera Oliveira.

Ao mesmo tempo em que o público nichado dá ao mercado uma possibilidade interessante, também representa um desafio à modalidade, como afirma o estrategista. “O público que atingimos é hardcore, de alto engajamento, consome os games, acompanha os atletas, torce em campeonatos, adquire produtos e afins. Mas ainda não firmamos uma base casual, como nos esportes tradicionais, quando algumas pessoas ligam a TV e consomem futebol pelo entretenimento.” Há mais um entrave indisfarçável: a falta de regulamentação. A lei brasileira sequer especifica se e-sports são considerados esportes, abrindo margem para interpretações. No início do ano, a ministra do Esporte, Ana Moser, chegou a declarar que a modalidade eletrônica não se enquadra na categoria e, portanto, não receberia investimento público. Para mudar o cenário de incertezas, o Marco Legal dos Games foi aprovado na Câmara em outubro do ano passado. O texto está parado no Senado, que o retirou da pauta no último mês. Mas fãs e atletas não estão nada dispostos a esperar.

Conhece aquela do ministro da esquerda conservador? Eis os mais clicados pelos leitores desta semana:

1. Panelinha: Uma granola caseira.

2. Folha: Janja e o meme do Zanin.

3. YouTube: Ponto de Partida — Como nasce a corrupção.

4. g1: Sua íris por uma criptomoeda.

5. YouTube: Ponto de Partida — Zanin pode virar pior erro de Lula.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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