Meio Político

O lulismo na era da polarização

Faz bem menos de cem dias que o Brasil se livrou do pesadelo do controle bolsonarista sobre o aparato estatal. O complemento nominal é importante, porque não se pode dizer que o Brasil esteja livre do pesadelo bolsonarista enquanto tal — apenas nos livramos do cenário distópico em que ele controlava o aparato de Estado. Como se viu em Brasília em 8 de janeiro, o bolsonarismo continua capaz de causar considerável dano à pólis.

Democracia pela metade

Neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, vai uma pergunta aos homens e mulheres nos espaços públicos: por que é tão difícil se comprometer com a paridade de gênero na política? Quando se fala no assunto, a resposta é no gerúndio ou apontando para o futuro. Nunca aquela fala assertiva típica de campanhas eleitorais: “vamos fazer agora”, “eu prometo”. É sempre um “estamos avançando”, “vamos criar condições para algum dia (quem sabe?), se chegar à divisão igualitária entre homens e mulheres”. E, dominadas por homens, seguem as disputas para todas as instâncias de poder: seja na Esplanada dos Ministérios, nos secretariados Brasil afora, nos partidos políticos, com poucas exceções.

O campeão da democracia

Por força da concepção modernista de ruptura histórica que presidiu sua fundação, pouquíssimo há em Brasília que recorde o passado brasileiro anterior a 1960. Talvez o único elemento arquitetônico vindo da antiga sede do Senado no Rio de Janeiro aproveitado na decoração das partes nobres do Congresso tenha sido o busto de bronze de Rui Barbosa, localizado acima da mesa diretora da câmara alta do Legislativo. A obra não escapou à sanha dos terroristas durante a intentona reacionária de 8 de janeiro, quando foi vandalizado pela horda de bolsonaristas que depredou o edifício. Parte da cabeça do busto foi afundada. Reposto em seu lugar de honra, decidiu-se que ele assim permanecerá, para memória daquele dia da infâmia. São cheios de significação tanto o fato de ser praticamente o único elemento decorativo que sobreviveu do Rio nas dependências nobres do Congresso, quanto o ataque que sofreu dos representantes selvagens do autoritarismo reacionário de Bolsonaro.

A cabeça de Lula

Não é por juros que Lula briga. Ou, melhor: não é apenas por juros. Após um mês e meio de seu terceiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva escolheu três brigas. Não há nada de errado em um presidente escolher brigas — seu trabalho inclui escolher em que brigas entrar, porque elas são inevitáveis. Pois Lula escolheu três pontos de atrito maiores ou menores. Um foi a declaração, em visita à Argentina, de que a ex-presidente Dilma Rousseff havia sofrido um golpe de Estado. A segunda é um apanhado de ataques recorrentes ao mercado e a empresários. E, mais recentemente a terceira, quando em essência pediu a cabeça do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, por questionar sua política de juros.

Tempo de rearranjos

De susto em susto, a atividade política no Brasil vai retomando feições de normalidade, especialmente nas relações entre os Poderes. O Congresso eleito em 2 de outubro de 2022, com o partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, o PL, conquistando as maiores bancadas nas duas Casas, revelava-se o mais conservador da história da Nova República, com um semblante extremista. Mas, conforme o novo Executivo retomou as rédeas da coordenação política e da montagem de sua coalizão em moldes mais tradicionais, os interesses foram se reacomodando. Essa é a avaliação da cientista política Lara Mesquita, professora da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EESP-FGV).

O mundo novo e os rescaldos do velho

Ontem chegou ao fim o mais longo mês de janeiro da história política do Brasil. A posse de Lula para seu terceiro mandato logo no seu primeiro dia já parece remoto, tal a quantidade de acontecimentos relevantes desde então. O novo incumbente tratou então de assinalar o mundo novo que trazia consigo por diversos gestos de alta carga simbólica. A presença do vice Geraldo Alckmin no Rolls Royce presidencial, numa ampla frente republicana sobre rodas, contrastava com a imagem de Bolsonaro há quatro anos acompanhado somente pelo filho no banco de trás, símbolo do triunfo exclusivo da própria família. Na composição do ministério, Lula entregou o que prometeu: políticos de centro, como Alckmin, Marina e Simone Tebet, representando a frente ampla; gente como Silvio Almeida, Margareth Menezes e Sônia Guajajara, afirmando a diversidade de gênero e raça; o equilíbrio entre política econômica socialdemocrata e responsabilidade fiscal, com Fernando Haddad na Fazenda e Tebet no Planejamento. A centro-direita do Centrão também foi contemplada para ajudar a angariar uma maioria governista no Congresso. Convém lembrar em todo caso que, sendo os piores ministros do governo Lula, os centrônicos eram os melhores do governo Bolsonaro, tal era o nível indizivelmente péssimo dos demais. Lula também se dedicou a uma extensa agenda voltada para a reinserção do país no circuito internacional, tendo recebido em quatro semanas um número de dignatários estrangeiros quase equivalente aos de Bolsonaro em anos.

A Justiça sob as luzes da ribalta

É com uma linguagem teatral que Rogério Arantes, cientista político que estuda instituições e a relação entre Justiça e política, descreve o estado de coisas da democracia brasileira. No cenário, define como moldura as reais ameaças ao regime democrático no Brasil e no mundo. Elenca os atores que protagonizam esse enfrentamento. No caso brasileiro, há um protagonista inquestionável: o ministro Alexandre de Moraes, que presidiu o Tribunal Superior Eleitoral durante o pleito presidencial. Arantes narra o clímax desse enredo, o dia em que Moraes “salvou a democracia brasileira”, e aponta como o ministro esteve sozinho em cena pela omissão de alguns de seus coadjuvantes. E antevê que, com a alternância do governo, um novo elenco, bem mais atuante, tende a trazer de volta as instituições para o palco.

Terrorismo?

A palavra terrorismo está na ordem do dia. Foi utilizada pelo presidente Lula para descrever o ataque às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro. Foi também assim que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, definiu. Parte do jornalismo adotou. Ainda assim, de acordo com a lei brasileira, terrorismo tem definição — e a ameaça de golpe que depredou os três palácios não caberia nela. E a questão não está apenas na lei. Não se usa essa palavra no Brasil desde que os militares a adotaram para se referir às guerrilhas revolucionárias de esquerda no tempo da Ditadura.

Ecos do extremismo

Não há como dourar a pílula: o que aconteceu em Brasília no domingo foi um ato de extremismo violento, de terrorismo. O objetivo claro era a ruptura da ordem democrática. E se há alguém que não hesita em nomear os processos de radicalização da direita é a pesquisadora Michele Prado. Ela monitora e estuda os extremistas há tempo suficiente para identificar naquele grupo os padrões de radicalização que vê acontecendo pelo mundo. Nesta entrevista, Michele descreve como essas pessoas foram capturadas e transformadas em agentes propagadores de teorias conspiratórias que, com o tempo, convertem-se em pretextos para a busca de um governo autocrático — por meio da violência. Agora, cá estamos, três dias depois, assustados com a possibilidade de novos ataques.

Pau que nasce torto morre torto

O governo Bolsonaro foi coerente até o fim em sua anormalidade congênita. Quando estão para terminar, governos normais reconhecem o resultado eleitoral e se limitam a tocar a rotina administrativa, limitando suas ações políticas em facilitar o advento do novo governo. O presidente que sai cede protagonismo ao que entra. Mas não poderia terminar normalmente um governo que se elegeu em circunstâncias anormais e viveu na anormalidade e de anormalidade. Hoje está mais do que claro que Bolsonaro nunca passou de um parasita; um reacionário muito limitado intelectual e emocionalmente, que encontrou na lacração reacionária um meio de viver da política e o ensinou aos filhos. Natural que acreditasse, portanto, que sua mais do que improvável chegada ao cargo mais elevado da República, que aliás ocorreu por muitos fatores aleatórios, resultasse de alguma forma dos insondáveis desígnios do Senhor.