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A rainha afro-grega que o Renascimento branqueou

O que Judi Bowker, Alexa Davalos e Rosamund Pike têm em comum? São atrizes, são lindas e interpretaram a princesa Andrômeda, par de Perseu, na franquia Fúria de Titãs. Ah, e todas têm a etnia errada para o papel, já que Andrômeda era negra.

“Como assim? Andrômeda é uma personagem da mitologia grega. Os gregos eram brancos. Querer transformar uma personagem grega em negra é lacração politicamente correta.” Se for, é uma lacração com mais de três mil anos e que só foi desfeita a partir do século 17 da era atual. Brincadeiras à parte, Andrômeda, sim, era negra.

Dizer isso pode provocar esgares entre os racistas que protestam, por exemplo, contra a presença de atrizes negras entre as amazonas dos filmes da Mulher Maravilha e da Liga da Justiça, mas a questão é que o “mundo grego” e a África subsaariana dialogavam intensamente.

A civilização cretense mantinha relações comerciais com os egípcios e conhecia os núbios. Para os gregos da civilização micênica (1600-1100 a.e.a.), da qual se originam as histórias mitológicas, o mundo era plano e no seu limiar ficava a Etiópia, terra de um povo de pele negra para além do Egito. Essas pessoas eram fartamente representadas na arte grega.

Mas voltemos ao mito que origina este artigo. Perseu, junto com os menos badalados Cadmo e Belerofonte, é um dos primeiros heróis gregos, filho de Zeus (sempre ele) com a princesa de Argos Dânae. Exilado com a mãe em Sérifos, ele é desafiado a realizar uma tarefa impossível, matar Medusa, a única mortal entre as três górgonas. Como meritocracia já era uma falácia na época, ele recebe toda a ajuda possível dos parentes divinos – uma espada indestrutível, um escudo espelho, um elmo da invisibilidade etc. Medusa, todos sabem, transformava os homens em pedra com o olhar. Para chegar à morada das górgonas, Perseu passa pelo jardim da Hespérides, filhas do titã Atlas, que lhe confeccionam um saco para guardar a cabeça da vítima.

E onde a África entra na história? Exatamente aí. Após cumprir sua missão, Perseu volta ao jardim e jacta-se a Atlas, que sustentava nas costas o céu*. Como o titã não acredita, Perseu mostra-lhe a cabeça, cujo olhar o transforma em pedra, surgindo assim a Cordilheira de Atlas, cujo pico é o Monte Toubkal, no Marrocos – logo, o citado jardim ficava no Norte da África.

Mas não para por aí. No caminho de volta a Sérifos, Perseu passa pelo reino da Etiópia, onde a rainha Cassiopeia provocara a ira de Poseidon ao dizer que a filha Andrômeda era mais bela que as nereidas, as ninfas do mar. O deus manda o monstro Ceto (não, não era Kraken) atacar o país até que a princesa fosse sacrificada. Perseu mata o monstro, salva a moça, casa com ela e juntos fundam Micenas, centro da primeira grande civilização na Península Helênica.

Ou seja, Andrômeda era etíope, africana, negra. E durante séculos isso foi ponto pacífico. No século 1 a.e.a., o poeta latino Ovídio (43 a.e.a-18 e.a.) escreveu em Hoeroides: “Andrômeda agradou Perseu, com a pele escura da terra de seu pai Cefeu (Etiópia)”. E ainda no século 14 o italiano Francesco Petrarca (1304-1374) escreveu em seus Triunfos (pdf em italiano): “Perseu era um, e gostaria de saber como na Etiópia a virgem de pele escura Andrômeda o seduziu com seus belos olhos e cabelos”. Em 1515, Piero de Cosimo ainda a pintou com um tom de pele mais escuro.

Então como essa beleza africana se metamorfoseou nas europeias que vemos no cinema? A culpa não é de Hollywood. Segundo a historiadora da arte britânica Elizabeth McGrath, houve um intenso debate no século 17 sobre a etnia de Andrômeda. Por um lado, o Renascimento devolvera à arte grega o papel de modelo do belo. Por outro, o eurocentrismo tornava inadmissível que alguém da África, vista como uma terra selvagem a ser explorada por riquezas e escravos, pudesse ter a beleza louvada pelos gregos.

Os antagonistas da Andrômeda negra se baseavam em As Etiópicas, obra mais famosa do escritor e bispo cristão Heliodoro, escrita entre os séculos 3 e 4 da era atual. O texto diz que, embora filha dos reis etíopes, a princesa Caricleia nascera branca, e sua mãe a comparava a Andrômeda. Foi a senha para os renascentistas mudarem sua etnia.

Quem sabe algum cineasta com coragem e conhecimento da mitologia reconta o amor de Andrômeda e Perseu estrelada por Lupita Nyong, Zendaya, Natalie Emmanuel ou Amanda Stenberg?

Quer conferir as Andrômedas do cinema? Aqui estão os trailers das versões de Fúria de Titãs de 19812010 e 2012.

* Antes que me corrijam, não, Atlas não segurava a Terra (Gaia), ele segurava o Céu (Urano). Para os gregos micênicos, a terra era plana e o céu redondo. Zeus temia que Gaia e Urano produzissem uma nova geração de titãs, então obrigou Atlas a impedir que se tocassem.

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