Gonzaguinha, o gênio agridoce da MPB

“Você tem que rezar pelo bem do patrão e esquecer que está desempregado.” “Veja bem, é o amor agitando meu coração. Há um lado carente dizendo que sim, e essa vida da gente gritando que não.” “Fico com a pureza da resposta das crianças: é a vida, é bonita e é bonita.” Em tempos de música cada vez mais nichada ou atada a fórmulas, é difícil imaginar que dureza crítica de Comportamento Geral (1973), o lirismo doído de Grito de Alerta (1979) e o otimismo puro de O Que É o Que É? (1982) vieram da mesma pessoa. Mas a diversidade de temas e estilos, tendo como ponto em comum a alta qualidade, era uma das características de Luiz Gonzaga Júnior, o Gonzaguinha, que completaria 80 anos nesta segunda-feira.
Em abril de 1991, um acidente numa rodovia do Paraná o matou aos 45 anos, interrompendo uma carreira que, a exemplo do próprio artista, refletia os muitos “brasis” por onde cantou. “Era um ser humano extremamente gentil”, lembra o amigo, empresário e produtor Renato Costa, que sobreviveu por pouco ao desastre no Paraná. “Gonzaguinha tinha uma sensibilidade humana que ultrapassava o contexto do da normalidade”, completa.
Essa sensibilidade era afetada pelo clima de repressão pós-golpe de 1964, refletindo-se em canções de protesto, quase sempre, como Comportamento Geral, voltadas para o conformismo exigido dos mais pobres. A ponto de alguns asseclas do regime na crítica musical passarem a chamá-lo de “cantor rancor”. Evidente injustiça. Como no famoso slogan, Gonzaguinha se endureceu, mas sem perder a ternura jamais.
Pivete olhando a cidade
Como o nome indica, Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior era filho do grande Luiz Gonzaga (1912-1989), o Rei do Baião, mas essa paternidade sempre foi um tema espinhoso. Gonzagão seria estéril e teria registrado como seu o filho da primeira esposa, a cantora, compositora e dançarina Odaléia Guedes dos Santos, que morreu de tuberculose quando o menino tinha apenas dois anos. Como a nova esposa do pai não aceitava o enteado, Gonzaga deixou o filho aos cuidados dos padrinhos, Odina e Henrique “Baiano do Violão” Pinheiro, que viviam no Morro de São Carlos, no Estácio, Centro do Rio. O pai garantia o bem-estar material e os estudos, mas o contato entre os dois era esparso.
No São Carlos Gonzaguinha passou a infância, aprendeu com o padrinho os acordes do violão e mergulhou no samba até os 16 anos, quando foi morar com o pai na Ilha do Governador, na Zona Norte. Gonzagão queria acompanhar de perto os estudos e a saúde do filho, tido como aluno indisciplinado e já tendo passado por uma internação com tuberculose. O pai bem que tentou convencê-lo a migrar para a sanfona, mas, por rebeldia ou fidelidade às raízes, ele jamais largou o violão.
Indisciplinado ou não, formou-se em Ciências Econômicas, o que seria útil anos depois, quando tornou-se artista independente. Mas, a rigor, sempre foi músico. Em 1969, venceu o Festival Universitário de Música Popular da TV Tupi com a canção O Trem. Ao lado de jovens talentos como César Costa Filho (1944-2022), Ivan Lins e Aldir Blanc (1946-2020), integrou o Movimento Artístico Universitário (MAU), que culminaria em um programa na TV Globo apresentado por Elis Regina e pelo próprio Ivan.
O trem da alegria partiu agora
Sua estreia em disco aconteceu em 1973, em um álbum autointitulado que o mostrava como compositor maduro e diverso, sem se prender a rótulos. Ali está Comportamento Geral, seu primeiro sucesso e sua primeira grande encrenca com a censura. Mas também estão o “blueslero” Românticos do Caribe, a quase autobiográfica Moleque e o funk (calma, o ritmo então era algum muito diferente do que hoje conhecemos por esse nome) A Felicidade Bate A Sua Porta, à qual voltaremos depois.
Seus discos seguintes seguiram a mesma linha, com política e romantismo, MPB, samba tradicional e outros ritmos e até reverências ao pai, como uma magnífica regravação de Assum Preto, uma das canções mais tristes da música brasileira. Gonzagão não concordava com o posicionamento político do filho, mas apoiava sua carreira, gravando algumas de suas canções. Os dois se reaproximaram, gravaram e cantaram juntos — o dueto deles em A Vida do Viajante, de Gonzagão e Hervé Cordovil, do álbum Gonzaguinha da Vida (1979), foi um sucesso em todo o país.
Gonzaguinha delas
Ao longo dos anos 1970, Gonzaguinha se notabilizou também como compositor preferencial das grandes cantoras da MPB. Maria Bethânia foi sua interprete mais assídua, transformando Não Dá Mais Pra Segurar (Explode Coração) e Grito de Alerta em enormes sucessos. Simone gravou, entre outras, Petúnia Resedá e Começaria Tudo Outra Vez. Elis Regina brilhou como sempre em Redescobrir, com sua irresistível frase “Como se fora brincadeira de roda”. Gonzaguinha foi parar até nas pistas de dança. Em 1977, as Frenéticas botaram o Brasil para sacudir com uma versão disco de A Felicidade Bate A Sua Porta – uma das integrantes do grupo era Sandra Pêra, segunda esposa de Gonzaguinha e mãe da também cantora Amora Pêra, terceira filha dele. Os dois mais velhos, Daniel e Fernanda, filhos de Ângela Gonzaga, são igualmente cantores talentosos, enquanto a caçula Mariana, filha de Luise Margarete (Lelete) Martins, é médica.
O que é, o que é, meu irmão?
A década de 1980 e a abertura política suavizaram um pouco a obra de Gonzaguinha, que emplacou uma sequência de sucessos comerciais, com destaque para O Que É, O Que É, de 1982, e Lindo Lago do Amor, de 1984. Esta, pop e dançante, foi inspirada pelo Lago da Pampulha, em Belo Horizonte (MG), para onde o cantor se mudou com Lelete. Não que a política tivesse deixado de ser um tema caro a Gonzaguinha, como lembra Renato Costa. “Em 1989, na eleição em que Lula enfrentou Fernando Collor, ele se engajou muito, participou de vários showmícios para o PT”, conta. “Gonzaguinha tinha uma visão clara da questão filosófica da política, da liberdade, da independência e do que que era ser cidadão”, completa.
O amigo recorda que, em seus últimos anos, Gonzaguinha se viu mais “ciumento” das próprias canções, evitando entregá-las a outros cantores “Ele dizia ‘agora é minha vez de ser intérprete de mim mesmo’”, lembra Renato. O que não impediu de liberar o uso de Começaria Tudo Outra Vez para um comercial de fraldas geriátricas, aliás.
Em 1991, Gonzaguinha percorria o Brasil tocando tanto em grandes centros quanto em cidades do interior, tinha total controle sobre seu trabalho e, mesmo com o início da dominação do sertanejo sobre as rádios, ainda tinha uma gigantesca contribuição a dar à cultura brasileira. Tudo terminou, porém, em uma estrada do interior paranaense.
Para lembrar a obra de Gonzaguinha, preparamos três listas de canções, com links do Spotify:
Gonzaguinha essencial
A Vida do Viajante com Luiz Gonzaga, canção de Luiz Gonzaga e Hervé Cordovil
Gonzaguinha Lado B
Picadeiro – Tudo Pro Meu Próprio Bem
Assum Preto, música de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira.
A Triste Partida (YouTube) com Luiz Gonzaga, música de Patativa do Assaré
Gonzaguinha por elas
Redescobrir (Elis Regina)
De Volta ao Começo (Nana Caymmi)
Grito de Alerta (Maria Bethânia)
Começaria Tudo Outra Vez (Simone)
A Felicidade Bate A Sua Porta (As Frenéticas)
Eu Apenas Queria Que Você Soubesse (Amora Pêra)
Sangrando (Elba Ramalho)