A virada gospel
Jonas Villar, Clóvis Pinho, Kira Garcez, Aline Barros, Kemilly Santos, Leidy Murilho, Colo de Deus, Renascer Praise, Kemuel, Eli Soares, Banda Dominus, Paulo César Baruk, Ao Cubo e André e Felipe. Do axé ao hip-hop Gospel, neste final de semana, ídolos da música cristã tomarão os palcos da 18ª edição da Virada Cultural de São Paulo. No evento que tem como objetivo promover a cultura na capital paulista, seus shows marcam presença em todas as regiões da cidade. Em entrevista ao Meio, o antropólogo Juliano Spyer, criador do Observatório Evangélico e autor do livro Povo de Deus — Quem são os evangélicos e por que eles importam, analisou o peso dessas apresentações em uma das celebrações culturais de maior importância do país. E recomendou fortemente o trabalho das pesquisadoras Raquel Sant’Ana e Olívia Bandeira para quem quiser mergulhar mais a fundo nesse universo. Confira os principais trechos da conversa.
Qual a função da música gospel dentro da prática religiosa?
Tenho a impressão que o gospel é aquilo que junta a imensa colcha de retalhos que é o mundo evangélico. Há muita variedade dentro desse nicho. Podemos começar a olhar a partir da Igreja Batista, que se dirige mais à classe média; depois passamos pela Adventista, até entrarmos no baião de diversidade que é o mundo Pentecostal, incluindo as milhares de Assembléias de Deus espalhadas pelo país. Sem falar na explosão neopentecostal que abarca a Universal e instituições como Deus é Amor. Cada uma dessas vertentes adapta a religião para sua visão, segmento de público, interesses e propósitos. Algumas se ligam a grupos mais escolarizados, outras se dirigem aos mais pobres. Então, nessa colcha de retalhos, o gospel é o espaço em que todas essas pessoas se encontram. Inclusive, fisicamente falando. Muitas vezes os fiéis que leem bíblias diferentes e enxergam o mundo a partir de perspectivas distintas, saem de suas igrejas, bairros e se encontram em eventos gospel, acampamentos, marchas e shows. Essa é a importância do estilo, condensa as visões e os ensinamentos.
Como o gospel se faz presente na vida dos crentes?
Nesses tempos de Spotify, consumimos a música toda quebradinha. De um jeito extremamente individualizado. Escutamos faixas que gostamos, não discos completos. Enquanto isso, os louvores, mais que entretenimento, são um elemento da liturgia coletiva. As pessoas não escutam gospel apenas para ficar alegres, como consumimos outros estilos musicais, mas faz parte do ritual. Dentro da tradição protestante, vinculada ao mundo evangélico, a música sempre foi aquilo que costura as várias partes do culto. É algo que está ligado à experiência da relação com o místico. Além disso, frequentemente, igrejas oferecem aos jovens de seu entorno recursos como a dança, as artes marciais e, especialmente, a música. Assim, ela acaba servindo como porta de entrada para a religião. E não é incomum que a música sirva também como o ganha pão dessa criança no futuro. Com frequência, aqueles que recebem o treinamento musical se tornam músicos da Orquestra Sinfônica ou corais que não têm a ver com a religião. Portanto, a música dentro da igreja é também uma importante chave de acesso. No mundo evangélico brasileiro, dos anos 1990 para cá, o gospel se tornou um mercado impressionante. Aliás, nós, classe média escolarizada, pensamos que esse estilo é feito por evangélicos para evangélicos. No lugar onde fiz pesquisa de campo, no entanto, o gospel é trilha sonora de todo mundo. Nas playlists, há desde o pagofunk a hits grandes do mundo gospel. Nos bairros pobres do nosso país, ninguém diz que é ateu. As pessoas acreditam, muitas vezes, em várias coisas juntas. Neste contexto, a música gospel deixa de ser a música dos crentes e se torna a música de todos.
Neste sentido, o gospel tem furado a bolha evangélica e servido de atrativo de novos fiéis?
O mundo evangélico brasileiro já não é uma bolha. Mas, usando essa analogia, podemos dizer que essa bolha está explodindo em todos os sentidos. Outro caso interessante é da indústria da roupa. Os evangélicos têm a ambição de casar a moda com as regras de vestimenta, o que produz uma indústria. As pessoas precisam usar a saia até certa altura, blusas sem tanto decote… num universo brasileiro de mais de 70 milhões de crentes, isso se torna uma coisa enorme. Então, as lojas que originalmente produziam produtos voltados para os evangélicos passam a atingir outros públicos, como executivas, que buscam roupas neste perfil, com determinado decoro. Ocorre exatamente a mesma coisa com o gospel. Não há mais como traçar uma fronteira específica sobre o que é o público evangélico que escuta gospel e o não crente.
O que significa essa considerável presença do gospel em um evento de grandes proporções, como a Virada Cultural?
Tenho sentido que, finalmente, esse tema está sendo tratado com o devido respeito. É quase enlouquecedor perceber que, geralmente, é ignorado algo tão importante para, pelo menos, um em cada três brasileiros, para a tradição religiosa que está em curso de se tornar a predominante no Brasil, desbancando inclusive o catolicismo, que veio para cá junto com os colonizadores. Portanto, um fenômeno dessa dimensão integrar um grande evento cultural não é bacana, é o óbvio. Você está cego se não dá espaço, voz e atenção para isso. Não estamos falando de um pequeno nicho, é algo que está presente na vida da maioria dos brasileiros. Só não está presente nas dos intelectuais da minha ou da sua universidade.
E por quê?
Quando analisamos essas questões, o principal fenômeno não é que o cristianismo evangélico tem o tamanho que tem… é que as pessoas que estão em posição de liderança no Brasil em todos os âmbitos — indústria, comércio e entretenimento — não têm ideia disso. Essa segregação cultural é enlouquecedora. Você não precisa estar de acordo ou ouvir gospel, mas precisa reconhecer sua importância. Exatamente por isso a Virada Cultural não está de parabéns, é um ‘até que enfim’. A Virada também não está validando o gospel como manifestação cultural, mas está se validando porque, se não concedesse esse espaço, seria incompleta. Não dar esse tipo de atenção, num extremo, olhando de forma positiva, é no mínimo ignorância. Já do ponto de vista mais crítico, beira à segregação cultural. Você estaria alienando um determinado público, o impedindo de frequentar um evento teoricamente criado para fomentar as mais diversas formas de manifestação cultural.